segunda-feira, 11 de janeiro de 2021

A capa da Isto É e a sociedade psicopata

 


Em 28/10/2018 um psicopata foi eleito presidente do Brasil. Já tivemos outros psicopatas ocupando este cargo em nossa história, Médici talvez seja o principal exemplo. Mas nunca havíamos tido um psicopata chegando ao poder através do voto popular, com a chancela da maior parte da população. Aproximadamente 60% da população votou no psicopata ou então anulou o voto. Mais do que ser psicopata, Bolsonaro chegou ao poder com uma trajetória e uma campanha psicopatas. Até aquele momento, nossa sociedade tinha eleito apenas seres humanos sem esta patologia, com qualidades e defeitos, para o cargo mais alto da nação. Todos somos assim, afinal. Alardeamos nossas qualidades e tentamos esconder nossos defeitos. Políticos são como nós. Bolsonaro foi o primeiro a, sem ter qualidades para apresentar, converteu o que qualquer sociedade não psicopata considera ser defeitos inaceitáveis em qualidades. Não, Bolsonaro não tem qualidades de verdade. Nem mesmo aquelas qualidades de classe média, tipo ser “trabalhador, bom pai e bom marido”. Ele é um vagabundo, criou filhos vagabundos e já afirmou em entrevista que tinha um apartamento em Brasília exclusivamente para “comer mulher”. Em sua campanha presidencial, Bolsonaro fez o que havia feito a vida toda como deputado: prometeu metralhar a oposição, destruir reservas indígenas, exaltou torturadores, foi machista, racista, homofóbico. Apresentou uma visão de mundo paranoica, prometeu tirar o Brasil da ONU e do Mercosul, criou uma rede de notícias falsas que transformou a vida de seus adversários num inferno. Não há justificativa para o voto em Bolsonaro. Sim, houve diversos casos de corrupção no governo petista, não vou entrar no mérito da veracidade ou não das acusações. Mesmo que a pessoa assumisse que Haddad, Alckmin, Ciro e os outros fossem corruptos, entre um corrupto e um psicopata qualquer pessoa que não tenha perdido a humanidade vota no corrupto. “Ah, mas Bolsonaro se aliou a projetos econômicos liberais e eu defendo privatização, votei no Paulo Guedes !”. Não importa, entre um psicopata e um não-psicopata, o voto deve ser no não-psicopata. Sempre que há uma eleição, o que uma sociedade razoável faz é separar psicopatas de não-psicopatas, excluindo-se inicialmente a possibilidade de voto nos psicopatas, analisando a partir daí as propostas dos não-psicopatas. Um pouco mais de dois anos depois, principalmente após a pandemia, vemos o fenômeno do arrependimento de uma parte das pessoas que votaram no psicopata. O psicopata, afinal, agiu neste período de pandemia como um psicopata. Uma parcela das população não se importava com a psicopatia do psicopata quando a vítima eram os “outros”. Negros, pobres, índios, movimentos sociais, enquanto estas eram as vítimas, não importava. Temos diversos monumentos espalhados por SP que homenageiam assassinos de índios pela cidade, mas isto não incomoda a sociedade. Os arrependidos começaram a se importar quando viram que eles também não importavam para o psicopata. Ele não se importa também com a sua mãe de 70 anos ou com o seu avô de 90 anos. “Todos temos que morrer”, disse o psicopata. Ele vai pescar, tira férias e promove aglomerações enquanto vivemos a maior tragédia da nossa geração. De repente, uma parcela da população aliada ao psicopata descobriu que do mesmo jeito que a economia importa mais do que a vida do indígena, do negro, do operário, do camponês, ela também importa mais do que a vida do parente idoso e doente. A economia não pode parar, mas seu parente pode morrer. As lojas não vão fechar porque sua mãe pode morrer. As pessoas continuam querendo ir para a balada mesmo com 200 mil mortos na pandemia, com o incentivo do presidente. “Temos que entender que a vida não tem valor infinito”, disse certa vez Nelson Teich, um dos ex-ministros da Saúde durante este caos. Para eles não importa. Realmente não importa.

Antes do triunfo do psicopata nas urnas em 2018, tivemos o triunfo de um psicopata nas telonas dos cinemas nacionais em 2007. A sociedade vibrou com o Capitão Nascimento. Víamos em tela grande um homem branco vestindo farda botando terror na “bandidagem”. Nascimento torturava, mentia, matava, mas foi visto pela sociedade como o herói. Não revi o filme para este texto, mas acredito que todas as suas vítimas eram negras e pobres. Nenhuma delas tinha chance de defesa ou direito a um julgamento justo. A nenhuma delas era dada oportunidade de recuperação. Nascimento chegava e matava. Duas cenas ficam na memória. Na primeira, Nascimento e sua gangue invadem a casa de uma pessoa de forma ilegal, começam a revirar sua casa e encontram um par de tênis caro. Mesmo sem nunca ter conversado com o investigado, sem saber o que ele fazia e quem ele era, isto já é suficiente para que Nascimento deduza que ele é “bandido”. O mesmo que acontece com os diversos relatos de pessoas negras que foram abordadas por policiais na rua que desconfiaram porque ela estava em um carro. Festa no cinema da classe média. “Como Nascimento é esperto”. Na cena seguinte, o “bandido” é levado para um canto, Nascimento e sua gangue colocam um saco em sua cabeça e vemos as veias do nariz do negro pobre e favelado explodindo na tela grande. Nascimento consegue desta forma a informação que precisava e larga o jovem torturado em qualquer canto. Como se abandona um saco de lixo. Nascimento não enxerga naquela pessoa um ser humano. No enredo do filme, Nascimento quer procurar uma nova pessoa para substituí-lo no cargo de psicopata-mor no BOPE. O escolhido é o jovem Matias, mas antes Nascimento precisa realizar o processo de desumanizá-lo. É isto que passamos duas horas vendo na tela. Na cena seguinte à descrita anteriormente, Nascimento e Matias encontram o traficante graças à informação do jovem torturado e o encurralam. Com a arma de Matias apontada para sua cabeça, o traficante pede ao policial que ele não atire na cabeça, “para não estragar o enterro”. O filme acaba com Matias atirando na cabeça. O processo de desumanização de Matias termina. O processo de desumanização do público segue. Nascimento é o "herói". Abre-se espaço para o surgimento de um “Nascimento da vida real”.

No mesmo ano de 2007, em outubro, o apresentador Luciano Huck foi assaltado em SP. Os assaltantes levaram seu relógio de R$ 48 mil. Eis o que escreveu o apresentador em sua coluna no jornal Folha de São Paulo no dia seguinte: "Onde está a polícia? Onde está a 'Elite da tropa'? Quem sabe até a 'Tropa de elite'! Chamem o comandante Nascimento! Está na hora de discutirmos segurança pública de verdade". Nascimento era a solução. Segundo o global, ele recuperaria o relógio. Isto é, segundo ele, “discutir segurança pública de verdade”. Como Nascimento o recuperaria? Todos sabem, enfiaria um saco de plástico na cabeça do assaltante ou simplesmente daria um tiro na sua cabeça. Huck estava disposto a ver algumas pessoas morrerem para poder andar em “paz”. A vida dos assaltantes valia menos que este relógio. É óbvio que os assaltantes deveriam ser presos pelo roubo cometido, mas não era exatamente isto que Huck queria ao clamar por Nascimento. Não lembro se Nascimento realiza alguma prisão no filme, aliás. Se em 2007 Huck pedia que um psicopata matasse o ladrão de seu relógio, em 2018 apoiou o psicopata-candidato no segundo turno. Viu no homem que exaltava torturadores a chance de “ressignificar a política”. Bom, a política foi ressignificada.

Em dezembro de 2019, a revista Isto É elegeu o governador João Doria Jr como brasileiro do ano na política. Na semana anterior ao prêmio, a polícia militar chefiada por Doria havia matado nove jovens negros durante um baile funk na favela de Paraisópolis. Doria foi eleito governador em 2018 surfando na onda da psicopatia. Tendo uma gestão mal avaliada na capital, onde era prefeito, ele se transformou durante a campanha numa versão Daslu do psicopata que liderava a corrida presidencial. Chamou seu adversário, que foi vice do governo do seu padrinho político, de comunista, disse que este iria transformar SP na “Venezuela” e que em seu governo a polícia mandaria os bandidos para o cemitério. Prometeu autorizar policiais a atirarem para matar, na cabeça. Disse também que pagaria de seu próprio bolso os melhores advogados para defender policiais que fossem processados por crimes cometidos enquanto “trabalhassem”. Os policiais de Paraisópolis acreditaram na promessa. Não sei se Doria cumpriu a promessa de pagar os melhores advogados aos policiais, só sei que um ano após o massacre nenhum deles foi punido. Assim falou João Doria Jr na entrega do prêmio: ““Queria começar homenageando os familiares das nove pessoas que faleceram nessa tragédia em Paraisópolis e também a minha solidariedade aos amigos e familiares como governador de São Paulo. Iremos apurar tudo o que aconteceu para que não haja impunidade”. Um ano depois, Doria se recusou a receber um grupo de familiares que o procurou para cobrar punição aos envolvidos no crime.

A mesma Isto É havia criado o prêmio de juiz do ano em 2017. O premiado foi Sérgio Moro, futuro ministro da Justiça do psicopata. Disse ele na premiação: ““Em 2018, devemos rever em quem vamos votar. Isso será um ponto decisivo na mudança do nosso País”. Assim como Huck, Moro queria ressignificar a política. Para dar uma forcinha neste processo de “ressignificação”, prendeu o candidato que liderava a corrida eleitoral e que representava o maior risco à eleição do psicopata. No segundo turno da eleição, tornou pública uma série de delações sem provas com acusações contra o adversário do psicopata, delações que viriam a ser consideradas falsas posteriormente. Nesta época, disse o atual ministro da Economia, Moro já havia se encontrado com o psicopata e combinado com ele que assumiria o ministério da Justiça do novo governo, cuja eleição já era dada como certa. Como ministro, Moro se desentendeu com o psicopata quando este não quis deixá-lo escolher o chefe da Polícia Federal. Exaltação à tortura, racismo, homofobia, machismo, ameaças físicas a opositores, nada disso incomodou Moro. O que o incomodou foi não poder escolher o chefe da Polícia Federal. Como último ato em sua atuação como ministro, Moro trabalhou para que presos com pouco periculosidade ou com problemas de saúde tivessem direito à prisão preventiva durante a pandemia. A solução apresentada pelo ex-ministro era o aluguel de containers para colocar estes presos caso eles ficassem doentes.  

Doria, Moro, Huck. Todos eles agora querem criar uma frente ampla para enfrentar o psicopata que puseram no poder em 2022. A Isto É desta semana traz na capa uma foto em que Capitão Nascimento segura o colarinho de Bolsonaro e grita “pede pra sair!”. O “político do ano”, o “juiz do ano”, o “apresentador de TV do ano”. Todos juntos com o “herói” fictício tão real na nossa tragédia diária. Uma ressignificação da ressignificação. Sem abandonar o componente principal desta loucura que vivemos, a psicopatia.


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