Na terça-feira de carnaval de
2020, após uma séria análise, cheguei à conclusão de que fecharia o meu
carnaval em um bloco no Bixiga, na Praça Dom Orione. O Bixiga é provavelmente
meu lugar preferido de SP. É um dos poucos lugares do centro da cidade que ainda
não estão sendo completamente tomados pela gentrificação, embora já comecemos a
ver mesmo por lá barbearias chamadas de barber shop e padarias com o nome de
boulangerie. Após atravessar um bloco de reggae que havia no caminho e que me
deixou doidão por alguns minutos, cheguei à Praça Dom Orione. Tudo que havia lá
eram umas cinco mulheres mexendo no celular, dois ambulantes vendendo cerveja e
duas crianças jogando bola. O bloco havia mudado para a Vila Madalena.
Na época eu morava no centro de
SP e a minha relação com o Carnaval era sempre a mesma. Animação extrema na
sexta, saco cheio absoluto na terça. As minhas últimas sextas de carnaval foram
marcadas pela empolgação com o bloco Ilú Oba de Min, que é provavelmente junto
com o bloco Unidos do Swing um dos poucos que eu realmente gosto. Ver este
bloco de carnaval me fez perceber que SEMPRE chove na sexta de carnaval.
Sempre. Espero que chova hoje para que eu me sinta menos depressivo, aliás. O
pior fim de semana possível para se morar no centro de SP é o fim de semana
seguinte ao carnaval, o do pós-carnaval. O Bloco da Daniela Mercury desce a
Consolação com trocentos trilhões de pessoas dispostas a chutar o balde porque
o próximo carnaval só virá depois de um ano. Neste ano sinto saudade até disto.
Outro dia me vi pensando que talvez até neste bloco eu iria no ano que vem. Mas
no fundo sei que não irei porra nenhuma. Provavelmente estarei reclamando, mas
não sei. A perspectiva mudou.
Naquela mesma terça-feira de
carnaval recebi uma mensagem de uma amiga que havia me visto no bloco que não
aconteceu me convidando para um café no dia seguinte. Nos encontramos na frente
da Primeira Leitura do Shopping Light, onde eu havia ido para trocar um livro.
Almoçamos num quilo hiper barato na Galeria Metrópole e demos uma volta por lá.
Conversamos sobre o Faustão, chamamos o Moro de filho da puta e exaltamos o
Lula. Sair com pessoas que gostam do Lula é a melhor coisa do mundo. Há sempre
um momento na conversa, sempre, em que falamos como seria se um dia o Lula
voltasse à presidência. Nem tanto o dia em que ele voltasse, mas o dia em que
ele ganhasse a eleição. Eu costumo dizer que eu desceria a Rua Augusta rolando
de bêbado. Mas sei que provavelmente não faria nada. Do mesmo jeito que não vou
no Bloco da Daniela Mercury no ano que vem. A cada dia me parece mais claro que
a volta de Lula é um sonho impossível. Se ainda não anularam o julgamento dele
depois que mensagens mostram o juiz combinando com a acusação, não vão anular
por nada. Mas às vezes acho que os sonhos mais legais são os impossíveis. Outro
dia vi uma entrevista do Neymar dizendo, após comprar uma Ferrari, que havia
realizado o sonho da sua vida. Achei um sonho besta. Acho besta sonhar em
comprar algo. Eu particularmente acho mais legais estes sonhos mais subjetivos.
Tipo melhorar o mundo, sei lá. Mas respeito pessoas que fazem sacrifícios extremos
para realizar desejos como comprar uma casa. É uma sociedade de merda em que
ter um lar é para muitos um sonho impossível, aliás. Ter uma casa não deveria
ser sonho pelo fato de que todos deveriam ter uma. Bom, depois de umas duas
horas de almoço, minha amiga foi trabalhar e eu também, tinha um aluno
particular que atendia no Sesc 24 de maio. Aquela foi a última vez que saí com
um amigo ou com uma amiga. Aquela foi a última aula particular presencial que
dei. Aquela foi a última vez que fui no Sesc 24 de maio. Na manhã daquele mesmo
dia, a quarta-feira de Cinzas, acordei com a notícia de que o primeiro caso de
Covid havia sido confirmado no Brasil.
O livro que eu havia ido trocar
era A Falência, de
Júlia Lopes de Almeida. Eu fui trocar o livro porque eu o havia comprado e
chegando em casa descobri que já o tinha. É extremamente vergonhoso quando isto
acontece. Resolvi comprar aquele livro porque havia entrado em um cursinho
popular em Itaquera onde seria responsável pelas aulas de inglês e seria o
professor substituto de literatura. Eu estava comprando os livros de literatura
que ainda não tinha da Fuvest e da Unicamp para fazer tipo uma bibliotequinha
do cursinho em que eu iria controlar entrada e saída. O cursinho ficaria num
prédio da Unifesp em Itaquera que eu sinceramente não sabia até aquele momento
que existia. As gerações mais jovens talvez não saibam, mas houve um momento
não tão distante da história do Brasil em que o país era governado por seres
humanos. Embora não fosse perfeito, este governo de seres humanos tratava seres
humanos como seres humanos e fazia alguns investimentos para que estes seres humanos
se tornassem seres humanos com mais oportunidades. Ampliou o número de vagas em
universidades públicas e criou um sistema que permitiu que o sonho de milhares
de seres humanos se tornasse realidade. Acho este, por exemplo, um sonho bem
mais legal do que o sonho do Neymar, aliás. Um grupo de seres não tão humanos
(de filhos da puta), porém, assumiu o governo e resolveu acabar com aquilo.
Este campus da Unifesp de Itaquera estava quase completamente abandonado e a
universidade resolveu que tentaria usar o prédio para alguma coisa para impedir
que, sei lá, aparecesse um grupo de babacas por lá fazendo um vídeo dizendo que
aquilo era “dinheiro jogado fora”. Mandaram para lá o curso de graduação de
geografia e aceitaram emprestar o prédio para o cursinho popular aos sábados. O
sábado seguinte ao carnaval foi o primeiro e seria também o penúltimo dia de
aulas. Eram umas 60 pessoas tendo a aula de inglês às 8 da manhã. Eu e a outra
professora nos olhamos e não fazíamos ideia de como dar aula para 60 pessoas, não
tínhamos esta experiência. Demos um jeito. Passaria, aliás, 2020 inteiro dando
jeitos para fazer as coisas funcionarem de algum jeito. O cursinho em geral não
deu certo. A galera que organizava brigou, os 60 alunos de inglês da aula
inicial se transformaram em três combatentes que seguem tendo as aulas de forma
virtual até hoje. Dois dos alunos perderam o emprego durante o ano. Uma delas
entrou na faculdade e resolveu estudar letras. Foi uma das melhores notícias do
meu 2020.
No dia seguinte ao início das
aulas do cursinho eu comprei uma bicicleta. 2020 foi o ano em que voltei à
faculdade e toda minha vida estava planejada em torno deste recomeço. O Brasil
é um lugar em que a maioria das pessoas ainda não tem nem a oportunidade de
começar, recomeçar então é o privilégio dos privilégios. Apesar do excelente
trabalho dos governo dos seres humanos, ainda são poucos que podem efetivamente
ter o poder de escolher o que farão das vidas. Programas como o Bolsa Família e
um auxílio permanente são importantes por isto. Democratizaria o poder da
escolha sobre o que fazer com a própria vida. Eu nunca fui muito feliz com a
escolha que fiz de economia. Mas em 2018 não consegui mais aguentar. Boa parte
dos meus colegas de faculdade se mostraram nazistinhas filhos da puta dispostos
a “comprar” um capitão genocida que prometera expulsar e matar opositores
porque ele dissera que iria vender as estatais. Duvido que algum deles leia
este texto, mas se algum deles ler, saiba que eu quero que você se foda. Os
maiores responsáveis por esta merda que vivemos são estas pessoas, as “bem
informadas” que enxergaram neste genocida uma oportunidade de negócios. Vão se
foder de novo. Voltando a 2018, também estava muito infeliz com a vida de
escritório. Passava cinco dias por semana, das 8 às 18, na frente de um
computador, bem vestido sem nenhuma razão, ouvindo pessoas brancas de classe
média falando todo tipo de barbaridade entre conversas sobre trânsito. Eu acho
que boa parte da tragédia que vivemos vem deste estilo que a classe média
escolheu para viver. Ou que não escolheu, sei lá. Meus colegas eram basicamente
pessoas que passavam uma hora num trânsito ouvindo a galera da jovem pan falar
muita, mas muita merda, chegavam ao trabalho já pilhados, passavam dez horas
fazendo planilhas de excel pelas quais seriam humilhados pelo chefe quando este
descobrisse um errinho de fórmula, voltavam para casa com mais trânsito e jovem
pan, deitavam na cama e dormiam. O dia nestes escritórios me pareceram naquele
momento uma grande prisão das quais as pessoas tinham enorme medo de sair. Este
estilo de vida cria um cidadão ansioso, com medo e com raiva, que não à toa cai
no papo furado de um picareta que soube explorar a ansiedade, o medo e a raiva
das pessoas não para questionar o sistema, mas para intensificá-lo. O sistema
de certa forma é desenhado para que as pessoas enxerguem esta enorme
infelicidade como algo normal e aqueles que tentam fugir disto como loucos a
serem combatidos. O capitão genocida e o juiz picareta souberam explorar este
povo como ninguém. Voltando à narração, resolvi em 2018 abandonar este emprego
e tentar trabalhar com educação, desenvolvi há uma década um gosto por idiomas
e comecei a tentar arrumar algo com isto. Deu até que certo e no mesmo ano
decidi prestar ENEM para voltar à faculdade. Deu errado, caguei na redação.
Sim, se por acaso você gosta dos meus textos, saiba que eu tirei 480 na redação
do ENEM de 2018, o valor mínimo para entrar em boa parte das federais é de 500.
Fui arrogante, não me dei ao trabalho de ler o manual da prova e não sabia que
era necessário apresentar uma solução para o problema apresentado. Achei que
bastava ficar divagando e falando que está tudo errado, como faço na vida.
Aprendi razoavelmente a lição e fiz a Fuvest em 2019. Passei, mas fui meio mal
na redação de novo, tirei um pouco mais do que 5. “Talvez eu escreva mal”,
disse eu para um amigo. “E daí?”, ele respondeu. “Pode crê”, eu pensei.
Nem lembrava mais que o parágrafo
anterior tinha começado com o lance da bicicleta. Mas bom, comprei a bicicleta
porque tive a ideia de fazer o trajeto entre o metrô Butantã e a FFLCH de bike.
Tem um bicicletário do lado da estação, show de bola. As pedaladas duraram duas
semanas. Após a segunda semana de aula, a reitoria da universidade decidiu
suspender as aulas por duas semanas, voltaríamos em abril. Um ano depois ainda
não voltamos. No meu segundo dia de aula vi alguma intercambista asiática indo
assistir às aulas de máscara. “Nossa, que histeria”, pensei eu. Ela estava
certa.
Na segunda em que começaram as
aulas, minha mãe foi internada. Ela estava com uma veia meia entupida no
coração e precisava fazer uma cirurgia para colocar uma pecinha que iria
desobstruir esta veia. Esta cirurgia, normalmente, exigiria abrir o peito da
pessoa, o que por sua vez, em caso de sucesso, exigiria pelo menos um mês de
UTI. Desenvolveu-se, porém, um novo método para realização desta operação sem a
necessidade de abrir o peito da pessoa. Não entendo porra nenhuma de medicina e
ter uma irmã médica me tornou uma pessoa extremamente relapsa sobre o assunto.
Sei que na hora do vamos ver ela vai entender tudo e me explicar, mas acho isto
ruim. Uma das muitas coisas em que preciso melhorar. Mas bom, esta cirurgia era
mais cara, porém o tempo de recuperação era de 3 dias. Um mês na UTI se
transformaria em 3 dias no quarto. A operação mais moderna, embora mais cara,
sairia mais barata para o convênio de saúde privado dela, uma vez que não
teríamos o mês de UTI gerando enormes custos para a empresa. Em razão disto,
achávamos que não teríamos grande problema, apesar deste novo método ainda não
ter sido cadastrado no SUS. O SUS cadastra este tipo de coisa apenas uma vez
por ano, não sei em que mês, mas se for, sei lá, em abril e alguém desenvolver
algo em maio, a autorização só virá depois de 11 meses. Mas é mais barato no
total, não estávamos tão preocupados. O funcionário de classe média do
convênio, porém, que passa o dia inteiro na frente de um computador e que chega
no trabalho com raiva ouvindo Jovem Pan não conseguiu chegar a esta conclusão.
Se uma cirurgia custa 20 e a outra custa 100, não importa que a de 20 gera 200
de custo depois. 20 é menos do que 100, então é esta que o convênio deve
aprovar. Com minha mãe internada, entramos na justiça com um pedido de liminar
para que ela fizesse a cirurgia mais moderna. A juíza negou e ainda nos deu uma
lição de moral no patamar, quis nos dar uma aula de economia. Uma filha da puta
imbecil e arrogante.
Enquanto tudo isto acontecia, o
INCOR, onde minha mãe estava internada, começava a se preparar para uma
operação de guerra. O hospital começava a se preparar para a tragédia que se
anunciava. Minha ficha caiu mais firme quando, descendo as escadas para fumar,
encontramos um colega dela. No meio do bate-papo, um olhou para o outro e falou
“estamos fodidos”. Um detalhe besta que me veio à cabeça é que aquele foi o
último cigarro que fumei, aliás. Já que o texto é sobre última vez das coisas.
Mas bom, começou a rolar um desespero. Precisávamos tirar nossa mãe de lá o
mais rápido possível e a porra do convênio queria deixá-la um mês na UTI de um
hospital que se preparava para receber doentes de uma doença extremamente
contagiosa e que se mostrava especialmente fatal para pessoas mais velhas, como
é o caso da minha mãe. Enquanto minha irmã se juntava a outros médicos para
montar um parecer na tentativa de um último recurso na justiça, eu começava a
montar planilhas para mostrar para os imbecis do convênio que era mais barato
três dias no quarto do que um mês na UTI. Não precisamos, a juíza concedeu a
liminar autorizando a cirurgia e obrigando o convênio a bancar. O convênio
entrou com recurso e o caso está parado no STF. Mas minha mãe fez a cirurgia,
então foda-se. Minha mãe deixou o hospital na segunda-feira em que começou a
quarentena em SP.
A pandemia mudou a relação como
eu lido com o tempo. Coisas que aconteceram há um ano parecem que foram há um
século. Parece que faz tempo, por exemplo, que o então ministro Sérgio Moro
quis isolar presos com sintomas de Covid dentro de containers ou que o
presidente genocida saiu correndo atrás de uma ema com uma caixa de remédio que
não serve para esta doença. Parece que faz um século também que fiquei com o cu
na mão porque não achava a cloroquina que minha mãe usa para uma doença para a
qual o remédio faz efeito em farmácia nenhuma. Rodei boa parte do centro de SP
para achar uma caixa pelo dobro do preço porque esta coisa que nos preside
convenceu o bando de sei lá o quê que o segue a comprar este remédio como
prevenção à doença. O mais assustador, porém, é a forma como nos acostumamos a
ver mais de 1000 pessoas morrendo por dia. Ontem, 11 de fevereiro de 2021, 1400
pessoas morreram de Covid no Brasil. E isto não é nem assunto. Nada. A coisa
que atualmente nos preside inclusive disse que não é hora de ficar chorando. É
hora de chorar sim. É hora de chorar para caralho. Procuramos distrações para
não ficar triste. Mas o que temos é que ficar tristes. E putos. Muito tristes.
E muito putos.
Perdemos muita coisa em 2020. O
bloco não aconteceu. E continua não acontecendo em 2021. 236.201 mortos até o
dia 12/02/21, momento em que escrevo o texto. Algumas pessoas querem voltar ao
chamado “normal”. O que tínhamos não era um normal. Bolsonaro já era o cara que
corria atrás de ema antes de correr atrás da ema. Apenas achou a possibilidade
ideal para correr atrás de uma ema. Somos a sociedade que elegeu como
governador um cara que prometeu em campanha autorizar policiais a atirar na
cabeça de suspeitos, sem chance. “Mandar para o cemitério”, segundo suas
palavras. Este filho da puta não foi preso quando disse isto. Deveria.
Flagrante por incentivo a prática de crime por agentes públicos. Menos de um
ano depois, nove jovens eram assassinados em Paraisópolis e este filho da puta
está aí. Não há porquê querer voltar para este normal. Para o normal da vida
preso no escritório.
Vejo a vida não como algo que
temos, mas algo do qual fazemos parte. Boa parte das transformações pelas quais
lutamos não veremos. Acontece. A maioria das pessoas que lutaram pela inclusão
de jovens pobres nas universidades públicas não viram esta transformação,
afinal. É assim que encaro meu futuro sombrio frente a uma sociedade que
priorizou compras de Natal e festa de fim de ano à saúde dos demais. É isso ou
pirar. Continuar fazendo algo, mesmo que não dê em nada.
Falamos muito pouco sobre aqueles
que salvaram vida. Não falo apenas dos médicos e dos enfermeiros, mas daqueles
que procuraram ficar em casa este tempo todo. Óbvio que nem todos podem e que
há situações em que é impossível criticar quem saiu. Cada um tem sua realidade,
cada um viveu a pandemia do seu jeito. Mas sou eternamente grato àqueles que
transformaram este período num momento de sacrifício, que não participaram de
aglomerações e de viagens desnecessárias, que verdadeiramente se sacrificaram
pela vida dos outros. Nunca saberemos quantas vidas foram salvas graças a este
ato de heroísmo. Ninguém está batendo palmas para você, mas eu bato. Muito
obrigado. Uma destas vidas salvas pode ter sido a da minha mãe. A sociedade não
vai te reconhecer, ela desaprendeu a reconhecer os verdadeiros heróis.
Continua um dia...
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