sexta-feira, 12 de fevereiro de 2021

O bloco de carnaval que não aconteceu e o ano sem fim



Na terça-feira de carnaval de 2020, após uma séria análise, cheguei à conclusão de que fecharia o meu carnaval em um bloco no Bixiga, na Praça Dom Orione. O Bixiga é provavelmente meu lugar preferido de SP. É um dos poucos lugares do centro da cidade que ainda não estão sendo completamente tomados pela gentrificação, embora já comecemos a ver mesmo por lá barbearias chamadas de barber shop e padarias com o nome de boulangerie. Após atravessar um bloco de reggae que havia no caminho e que me deixou doidão por alguns minutos, cheguei à Praça Dom Orione. Tudo que havia lá eram umas cinco mulheres mexendo no celular, dois ambulantes vendendo cerveja e duas crianças jogando bola. O bloco havia mudado para a Vila Madalena.

Na época eu morava no centro de SP e a minha relação com o Carnaval era sempre a mesma. Animação extrema na sexta, saco cheio absoluto na terça. As minhas últimas sextas de carnaval foram marcadas pela empolgação com o bloco Ilú Oba de Min, que é provavelmente junto com o bloco Unidos do Swing um dos poucos que eu realmente gosto. Ver este bloco de carnaval me fez perceber que SEMPRE chove na sexta de carnaval. Sempre. Espero que chova hoje para que eu me sinta menos depressivo, aliás. O pior fim de semana possível para se morar no centro de SP é o fim de semana seguinte ao carnaval, o do pós-carnaval. O Bloco da Daniela Mercury desce a Consolação com trocentos trilhões de pessoas dispostas a chutar o balde porque o próximo carnaval só virá depois de um ano. Neste ano sinto saudade até disto. Outro dia me vi pensando que talvez até neste bloco eu iria no ano que vem. Mas no fundo sei que não irei porra nenhuma. Provavelmente estarei reclamando, mas não sei. A perspectiva mudou.

Naquela mesma terça-feira de carnaval recebi uma mensagem de uma amiga que havia me visto no bloco que não aconteceu me convidando para um café no dia seguinte. Nos encontramos na frente da Primeira Leitura do Shopping Light, onde eu havia ido para trocar um livro. Almoçamos num quilo hiper barato na Galeria Metrópole e demos uma volta por lá. Conversamos sobre o Faustão, chamamos o Moro de filho da puta e exaltamos o Lula. Sair com pessoas que gostam do Lula é a melhor coisa do mundo. Há sempre um momento na conversa, sempre, em que falamos como seria se um dia o Lula voltasse à presidência. Nem tanto o dia em que ele voltasse, mas o dia em que ele ganhasse a eleição. Eu costumo dizer que eu desceria a Rua Augusta rolando de bêbado. Mas sei que provavelmente não faria nada. Do mesmo jeito que não vou no Bloco da Daniela Mercury no ano que vem. A cada dia me parece mais claro que a volta de Lula é um sonho impossível. Se ainda não anularam o julgamento dele depois que mensagens mostram o juiz combinando com a acusação, não vão anular por nada. Mas às vezes acho que os sonhos mais legais são os impossíveis. Outro dia vi uma entrevista do Neymar dizendo, após comprar uma Ferrari, que havia realizado o sonho da sua vida. Achei um sonho besta. Acho besta sonhar em comprar algo. Eu particularmente acho mais legais estes sonhos mais subjetivos. Tipo melhorar o mundo, sei lá. Mas respeito pessoas que fazem sacrifícios extremos para realizar desejos como comprar uma casa. É uma sociedade de merda em que ter um lar é para muitos um sonho impossível, aliás. Ter uma casa não deveria ser sonho pelo fato de que todos deveriam ter uma. Bom, depois de umas duas horas de almoço, minha amiga foi trabalhar e eu também, tinha um aluno particular que atendia no Sesc 24 de maio. Aquela foi a última vez que saí com um amigo ou com uma amiga. Aquela foi a última aula particular presencial que dei. Aquela foi a última vez que fui no Sesc 24 de maio. Na manhã daquele mesmo dia, a quarta-feira de Cinzas, acordei com a notícia de que o primeiro caso de Covid havia sido confirmado no Brasil.

O livro que eu havia ido trocar era A Falência, de Júlia Lopes de Almeida. Eu fui trocar o livro porque eu o havia comprado e chegando em casa descobri que já o tinha. É extremamente vergonhoso quando isto acontece. Resolvi comprar aquele livro porque havia entrado em um cursinho popular em Itaquera onde seria responsável pelas aulas de inglês e seria o professor substituto de literatura. Eu estava comprando os livros de literatura que ainda não tinha da Fuvest e da Unicamp para fazer tipo uma bibliotequinha do cursinho em que eu iria controlar entrada e saída. O cursinho ficaria num prédio da Unifesp em Itaquera que eu sinceramente não sabia até aquele momento que existia. As gerações mais jovens talvez não saibam, mas houve um momento não tão distante da história do Brasil em que o país era governado por seres humanos. Embora não fosse perfeito, este governo de seres humanos tratava seres humanos como seres humanos e fazia alguns investimentos para que estes seres humanos se tornassem seres humanos com mais oportunidades. Ampliou o número de vagas em universidades públicas e criou um sistema que permitiu que o sonho de milhares de seres humanos se tornasse realidade. Acho este, por exemplo, um sonho bem mais legal do que o sonho do Neymar, aliás. Um grupo de seres não tão humanos (de filhos da puta), porém, assumiu o governo e resolveu acabar com aquilo. Este campus da Unifesp de Itaquera estava quase completamente abandonado e a universidade resolveu que tentaria usar o prédio para alguma coisa para impedir que, sei lá, aparecesse um grupo de babacas por lá fazendo um vídeo dizendo que aquilo era “dinheiro jogado fora”. Mandaram para lá o curso de graduação de geografia e aceitaram emprestar o prédio para o cursinho popular aos sábados. O sábado seguinte ao carnaval foi o primeiro e seria também o penúltimo dia de aulas. Eram umas 60 pessoas tendo a aula de inglês às 8 da manhã. Eu e a outra professora nos olhamos e não fazíamos ideia de como dar aula para 60 pessoas, não tínhamos esta experiência. Demos um jeito. Passaria, aliás, 2020 inteiro dando jeitos para fazer as coisas funcionarem de algum jeito. O cursinho em geral não deu certo. A galera que organizava brigou, os 60 alunos de inglês da aula inicial se transformaram em três combatentes que seguem tendo as aulas de forma virtual até hoje. Dois dos alunos perderam o emprego durante o ano. Uma delas entrou na faculdade e resolveu estudar letras. Foi uma das melhores notícias do meu 2020.

No dia seguinte ao início das aulas do cursinho eu comprei uma bicicleta. 2020 foi o ano em que voltei à faculdade e toda minha vida estava planejada em torno deste recomeço. O Brasil é um lugar em que a maioria das pessoas ainda não tem nem a oportunidade de começar, recomeçar então é o privilégio dos privilégios. Apesar do excelente trabalho dos governo dos seres humanos, ainda são poucos que podem efetivamente ter o poder de escolher o que farão das vidas. Programas como o Bolsa Família e um auxílio permanente são importantes por isto. Democratizaria o poder da escolha sobre o que fazer com a própria vida. Eu nunca fui muito feliz com a escolha que fiz de economia. Mas em 2018 não consegui mais aguentar. Boa parte dos meus colegas de faculdade se mostraram nazistinhas filhos da puta dispostos a “comprar” um capitão genocida que prometera expulsar e matar opositores porque ele dissera que iria vender as estatais. Duvido que algum deles leia este texto, mas se algum deles ler, saiba que eu quero que você se foda. Os maiores responsáveis por esta merda que vivemos são estas pessoas, as “bem informadas” que enxergaram neste genocida uma oportunidade de negócios. Vão se foder de novo. Voltando a 2018, também estava muito infeliz com a vida de escritório. Passava cinco dias por semana, das 8 às 18, na frente de um computador, bem vestido sem nenhuma razão, ouvindo pessoas brancas de classe média falando todo tipo de barbaridade entre conversas sobre trânsito. Eu acho que boa parte da tragédia que vivemos vem deste estilo que a classe média escolheu para viver. Ou que não escolheu, sei lá. Meus colegas eram basicamente pessoas que passavam uma hora num trânsito ouvindo a galera da jovem pan falar muita, mas muita merda, chegavam ao trabalho já pilhados, passavam dez horas fazendo planilhas de excel pelas quais seriam humilhados pelo chefe quando este descobrisse um errinho de fórmula, voltavam para casa com mais trânsito e jovem pan, deitavam na cama e dormiam. O dia nestes escritórios me pareceram naquele momento uma grande prisão das quais as pessoas tinham enorme medo de sair. Este estilo de vida cria um cidadão ansioso, com medo e com raiva, que não à toa cai no papo furado de um picareta que soube explorar a ansiedade, o medo e a raiva das pessoas não para questionar o sistema, mas para intensificá-lo. O sistema de certa forma é desenhado para que as pessoas enxerguem esta enorme infelicidade como algo normal e aqueles que tentam fugir disto como loucos a serem combatidos. O capitão genocida e o juiz picareta souberam explorar este povo como ninguém. Voltando à narração, resolvi em 2018 abandonar este emprego e tentar trabalhar com educação, desenvolvi há uma década um gosto por idiomas e comecei a tentar arrumar algo com isto. Deu até que certo e no mesmo ano decidi prestar ENEM para voltar à faculdade. Deu errado, caguei na redação. Sim, se por acaso você gosta dos meus textos, saiba que eu tirei 480 na redação do ENEM de 2018, o valor mínimo para entrar em boa parte das federais é de 500. Fui arrogante, não me dei ao trabalho de ler o manual da prova e não sabia que era necessário apresentar uma solução para o problema apresentado. Achei que bastava ficar divagando e falando que está tudo errado, como faço na vida. Aprendi razoavelmente a lição e fiz a Fuvest em 2019. Passei, mas fui meio mal na redação de novo, tirei um pouco mais do que 5. “Talvez eu escreva mal”, disse eu para um amigo. “E daí?”, ele respondeu. “Pode crê”, eu pensei.

Nem lembrava mais que o parágrafo anterior tinha começado com o lance da bicicleta. Mas bom, comprei a bicicleta porque tive a ideia de fazer o trajeto entre o metrô Butantã e a FFLCH de bike. Tem um bicicletário do lado da estação, show de bola. As pedaladas duraram duas semanas. Após a segunda semana de aula, a reitoria da universidade decidiu suspender as aulas por duas semanas, voltaríamos em abril. Um ano depois ainda não voltamos. No meu segundo dia de aula vi alguma intercambista asiática indo assistir às aulas de máscara. “Nossa, que histeria”, pensei eu. Ela estava certa.

Na segunda em que começaram as aulas, minha mãe foi internada. Ela estava com uma veia meia entupida no coração e precisava fazer uma cirurgia para colocar uma pecinha que iria desobstruir esta veia. Esta cirurgia, normalmente, exigiria abrir o peito da pessoa, o que por sua vez, em caso de sucesso, exigiria pelo menos um mês de UTI. Desenvolveu-se, porém, um novo método para realização desta operação sem a necessidade de abrir o peito da pessoa. Não entendo porra nenhuma de medicina e ter uma irmã médica me tornou uma pessoa extremamente relapsa sobre o assunto. Sei que na hora do vamos ver ela vai entender tudo e me explicar, mas acho isto ruim. Uma das muitas coisas em que preciso melhorar. Mas bom, esta cirurgia era mais cara, porém o tempo de recuperação era de 3 dias. Um mês na UTI se transformaria em 3 dias no quarto. A operação mais moderna, embora mais cara, sairia mais barata para o convênio de saúde privado dela, uma vez que não teríamos o mês de UTI gerando enormes custos para a empresa. Em razão disto, achávamos que não teríamos grande problema, apesar deste novo método ainda não ter sido cadastrado no SUS. O SUS cadastra este tipo de coisa apenas uma vez por ano, não sei em que mês, mas se for, sei lá, em abril e alguém desenvolver algo em maio, a autorização só virá depois de 11 meses. Mas é mais barato no total, não estávamos tão preocupados. O funcionário de classe média do convênio, porém, que passa o dia inteiro na frente de um computador e que chega no trabalho com raiva ouvindo Jovem Pan não conseguiu chegar a esta conclusão. Se uma cirurgia custa 20 e a outra custa 100, não importa que a de 20 gera 200 de custo depois. 20 é menos do que 100, então é esta que o convênio deve aprovar. Com minha mãe internada, entramos na justiça com um pedido de liminar para que ela fizesse a cirurgia mais moderna. A juíza negou e ainda nos deu uma lição de moral no patamar, quis nos dar uma aula de economia. Uma filha da puta imbecil e arrogante.

Enquanto tudo isto acontecia, o INCOR, onde minha mãe estava internada, começava a se preparar para uma operação de guerra. O hospital começava a se preparar para a tragédia que se anunciava. Minha ficha caiu mais firme quando, descendo as escadas para fumar, encontramos um colega dela. No meio do bate-papo, um olhou para o outro e falou “estamos fodidos”. Um detalhe besta que me veio à cabeça é que aquele foi o último cigarro que fumei, aliás. Já que o texto é sobre última vez das coisas. Mas bom, começou a rolar um desespero. Precisávamos tirar nossa mãe de lá o mais rápido possível e a porra do convênio queria deixá-la um mês na UTI de um hospital que se preparava para receber doentes de uma doença extremamente contagiosa e que se mostrava especialmente fatal para pessoas mais velhas, como é o caso da minha mãe. Enquanto minha irmã se juntava a outros médicos para montar um parecer na tentativa de um último recurso na justiça, eu começava a montar planilhas para mostrar para os imbecis do convênio que era mais barato três dias no quarto do que um mês na UTI. Não precisamos, a juíza concedeu a liminar autorizando a cirurgia e obrigando o convênio a bancar. O convênio entrou com recurso e o caso está parado no STF. Mas minha mãe fez a cirurgia, então foda-se. Minha mãe deixou o hospital na segunda-feira em que começou a quarentena em SP.

A pandemia mudou a relação como eu lido com o tempo. Coisas que aconteceram há um ano parecem que foram há um século. Parece que faz tempo, por exemplo, que o então ministro Sérgio Moro quis isolar presos com sintomas de Covid dentro de containers ou que o presidente genocida saiu correndo atrás de uma ema com uma caixa de remédio que não serve para esta doença. Parece que faz um século também que fiquei com o cu na mão porque não achava a cloroquina que minha mãe usa para uma doença para a qual o remédio faz efeito em farmácia nenhuma. Rodei boa parte do centro de SP para achar uma caixa pelo dobro do preço porque esta coisa que nos preside convenceu o bando de sei lá o quê que o segue a comprar este remédio como prevenção à doença. O mais assustador, porém, é a forma como nos acostumamos a ver mais de 1000 pessoas morrendo por dia. Ontem, 11 de fevereiro de 2021, 1400 pessoas morreram de Covid no Brasil. E isto não é nem assunto. Nada. A coisa que atualmente nos preside inclusive disse que não é hora de ficar chorando. É hora de chorar sim. É hora de chorar para caralho. Procuramos distrações para não ficar triste. Mas o que temos é que ficar tristes. E putos. Muito tristes. E muito putos.

Perdemos muita coisa em 2020. O bloco não aconteceu. E continua não acontecendo em 2021. 236.201 mortos até o dia 12/02/21, momento em que escrevo o texto. Algumas pessoas querem voltar ao chamado “normal”. O que tínhamos não era um normal. Bolsonaro já era o cara que corria atrás de ema antes de correr atrás da ema. Apenas achou a possibilidade ideal para correr atrás de uma ema. Somos a sociedade que elegeu como governador um cara que prometeu em campanha autorizar policiais a atirar na cabeça de suspeitos, sem chance. “Mandar para o cemitério”, segundo suas palavras. Este filho da puta não foi preso quando disse isto. Deveria. Flagrante por incentivo a prática de crime por agentes públicos. Menos de um ano depois, nove jovens eram assassinados em Paraisópolis e este filho da puta está aí. Não há porquê querer voltar para este normal. Para o normal da vida preso no escritório.

Vejo a vida não como algo que temos, mas algo do qual fazemos parte. Boa parte das transformações pelas quais lutamos não veremos. Acontece. A maioria das pessoas que lutaram pela inclusão de jovens pobres nas universidades públicas não viram esta transformação, afinal. É assim que encaro meu futuro sombrio frente a uma sociedade que priorizou compras de Natal e festa de fim de ano à saúde dos demais. É isso ou pirar. Continuar fazendo algo, mesmo que não dê em nada.

Falamos muito pouco sobre aqueles que salvaram vida. Não falo apenas dos médicos e dos enfermeiros, mas daqueles que procuraram ficar em casa este tempo todo. Óbvio que nem todos podem e que há situações em que é impossível criticar quem saiu. Cada um tem sua realidade, cada um viveu a pandemia do seu jeito. Mas sou eternamente grato àqueles que transformaram este período num momento de sacrifício, que não participaram de aglomerações e de viagens desnecessárias, que verdadeiramente se sacrificaram pela vida dos outros. Nunca saberemos quantas vidas foram salvas graças a este ato de heroísmo. Ninguém está batendo palmas para você, mas eu bato. Muito obrigado. Uma destas vidas salvas pode ter sido a da minha mãe. A sociedade não vai te reconhecer, ela desaprendeu a reconhecer os verdadeiros heróis.

Continua um dia...

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