sábado, 5 de junho de 2021

A médica e o monstro

 


Dr. Luana Araújo pareceu ser uma voz de lucidez neste grande circo de horrores que é a CPI. Denunciou todos os crimes cometidos pelo capitão e sua trupe de psicopatas. O Brasil foi o único lugar do mundo em que a aposta na cloroquina foi uma política de estado e em que a campanha de vacinação teve que ser chefiada pelos governos estaduais. Se não fossem os governadores dos Estados, especialmente SP e Nordeste, não teríamos nada neste momento. O governo federal fez tudo, absolutamente tudo para avacalhar a situação. Realizou aglomerações desnecessárias, desincentivou o uso de máscaras, incentivou e ainda incentiva o uso de um remédio sem eficácia para a doença, boicotou todas as tentativa de estados e municípios de conter o avanço da praga. O presidente da República demonstrou um descaso inédito no mundo com as quase 500.000 vítimas da doença. Está cagando e andando. Foi pescar, andar de jet ski, fazer todo tipo de babaquice possível. Até correr atrás de uma ema com uma caixa de remédio. Às vezes temos que nos questionar o porquê de Bolsonaro agir desta forma. Esta tragédia é a prova de que trinta por cento do país vai com ele até o fim. Seguirão com ele até a queda do Reichstag. Também estariam com ele se Bolsonaro fizesse o certo. O “certo” desta não é o certo do que restou de humanidade no Brasil, é um “certo” baseado na vontade do líder. Se o “certo” fosse o certo, adoradores do presidente estariam fazendo o certo. Mas ele optou pelo errado. Simplesmente porque ele precisa disso, é incapaz de escolher o certo. Precisa de um conflito. Ele estaria com uma popularidade bem mais alta se escolhesse a vida. Mas a racionalidade dele é outra.

Os bolsonaristas usam a CPI como palco para divulgar maluquices. O mundo das redes sociais é avesso a qualquer debate. A pessoa muitas vez nem responde a pergunta, simplesmente fala coisas desconexas para serem editadas e virarem lacração de 40 segundos no Instagram e no Twitter. Foi assim que o MBL explodiu, afinal. Dr. Nice foi um dia antes de Dr. Luana e falou todos os tipos de absurdo. Não importa que 500.000 pessoas tenham morrido e sigam morrendo em boa parte por causa deste governo patético. Não importa que já esteja provado que a cloroquina não ajuda no combate da doença. Simplesmente não importa nada que não seja a própria vontade. Nas redes sociais bolsonaristas ela bombou. Foi quase uma heroína, uma mártir. Ser imbecil é visto por esta turma como um ato heroico. Não há remorso. Mas não é apenas ela que não tem remorso.

Dr. Luana fez questão de apagar todas as suas redes sociais na semana anterior a seu depoimento. Quis esconder que apoiou Bolsonaro nas eleições de 2018 e seguiu apoiando seu governo até a pandemia. Era uma das médicas que apoiava a barbaridade até a barbaridade assumir outra proporção. Até fevereiro de 2020 estava ao lado de Dr. Nice e inclusive se mostrou pronta a entrar neste governo não apenas para salvar vidas, mas para ajudar a salvar o presidente e seu projeto de governo. Se Dr. Nice se mostra incapaz de discernir certo e errado ou de ter qualquer empatia pelos milhares de mortos, Dr. Luana mostrou que sabe fazer esse discernimento. Por que votou em Bolsonaro então? Por que o apoiou? A resposta, a meu ver, é simples e assustadora: porque ela não acha errado as outras coisas.

A pandemia tornou Bolsonaro ainda mais inaceitável, mas ele já era inaceitável muito antes. Passou a vida defendendo a ditadura e a tortura. Humilhava pessoas por serem gays e chegou a incentivar que pais agredissem filhos que demonstrassem sinais de homossexualidade. Defendeu em 2018 que opositores fossem expulsos do país ou metralhados. Defendeu o genocídio de indígenas, a destruição de suas terras, comparou quilombolas a animais. Exaltou um torturador em rede nacional. É assustador que alguém como Dr. Luana não seja capaz de entender que isto é errado. É assustador que alguém como ela, que demonstrou ser capaz de separar certo de errado, não consiga enxergar erro nestas coisas que citei. E não há papo de “votei contra a corrupção”. Bolsonaro seria o horror mesmo se não fosse corrupto. A corrupção é o menor dos defeitos de Bolsonaro, aliás. Ela votou nele porque concorda com tudo isto.

Dr. Luana é pior em alguns aspectos do que Dr. Nice. Esta última vive numa paranoia e perdeu qualquer discernimento ou senso. Ela não sabe mais o que é certo e errado, bem ou mal, tamanho é o grau de fanatismo. Já Dr. Luana mostrou que é capaz de discernir e não o fez em 2018, e provavelmente não fará se o futuro exigir. O que torna Dr. Luana tão perigosa é que ela é uma imagem de um país que não se humanizou com esta tragédia. Um país da “terceira via”, que insiste em comparar e igualar um genocida maluco e paranoico com a corrupção na Petrobrás. Que finge ter sido “enganado”, mas que estaria tranquilo se o genocídio acontecesse em “outros” lugares. Pessoas que aplaudem assassinatos em operações policiais, que transformam assassinos em heróis.

O Brasil precisaria ser refundado após esta experiência com Bolsonaro. Isto exigiria de nós reflexões sobre tudo que fizemos e que nos trouxe até aqui. Lidar com o fato de que o país aceitou e aceita tão “tranquilamente” a morte de meio milhão de pessoas porque se acostumou com a morte. Um país em que mais da metade da população vota em um candidato que promete a morte fica adormecido quando ele a entrega, mesmo que não da forma que prometeu. As mortes estão vindo, mas não aquelas que Dr. Luana aceitou em 2018. Dr. Luana não está disposta a esta reflexão, quer apagar seu passado e posar de heroína. Provavelmente dará certo. Todo o projeto de “terceira via” é baseado nisto. Com exceção de Ciro Gomes, todas as pessoas que embarcaram neste discurso de terceira via apoiaram as promessas genocidas de Bolsonaro em 18. Ninguém quer lidar muito com sua culpa. Em qualquer outro lugar a gestão de Bolsonaro resultaria numa revolução. Aqui resultou numa CPI, que provavelmente não vai dar em nada.  

Dr. Luana e as outras drs. Luanas de 2018 não se sentem responsáveis pelo que acontece. Pois são. E muito. Dr. Nice é doente, paranoica. Dr. Luana, não. É apenas uma pessoa má, preocupada em parecer boazinha. Dr. Luana e Dr. Nice parecem muito diferentes, mas não são. Estão unidas na incapacidade de sentir remorso. Bolsonaro é um monstro. Mas não é o único.

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