Hoje
é aniversário do meu pai. Isto é a primeira coisa que penso em todo 31 de
agosto. Foi assim naquele 31 de agosto. Acho que será assim em todo 31 de
agosto até o fim da minha vida. Sempre com verbo ser no presente. Tenho duas
teorias. A primeira é que penso este “é” porque de certa forma sinto que isto
deixa a memória dele mais viva no meu ser. A segunda é que para aniversário
talvez não exista passado. Acho. Não tenho certeza. Bom, para mim não existe.
Em 31/08/2032, caso eu esteja vivo, acordarei pensando “Hoje é aniversário de
100 anos do meu pai”. “Hoje ele faria 100 anos”. Aí sim, mudo para o futuro do
pretérito. Em 31/08/2016, meu pai faria 82 anos. “Hoje é aniversário do meu pai.
Ele faria 82 anos hoje.” Foi esta a sequência. A terceira coisa que pensei foi:
“De que lado meu pai estaria?”. O impeachment de Dilma seria votado naquele dia
no Senado. Era a última etapa daquele martírio. Era a primeira etapa deste
martírio. Meu pai muito muito provavelmente estaria do lado errado. Como boa
parte das pessoas que amo, aliás. Algumas continuam do lado errado, lado que se
torna a cada dia mais errado. Lado cujo errado já passou qualquer limite de
errado aceitável. Até onde nossa capacidade de amar vai? Como será quando
pessoas que amamos estiverem denunciando os judeus escondidos no porão para a
Gestapo? Como lidar com o fato de que amamos pessoas capazes do que há de pior?
Agosto
é um mês importante na minha vida. Era meu mês favorito na infância. Meu pai
faz aniversário dia 31 e minha mãe faz dia 24. Adorava esta semana. O Getúlio
se matou no dia 24 e eu achava quando criança que eu era a única pessoa que
sabia disso. Sempre que por algum motivo o Getúlio era assunto de alguma
conversa eu falava isso. “Você sabia que minha mãe faz aniversário no dia que o
Getúlio se matou?” Ninguém achava isto muito incrível. E não era realmente. Mas
para mim era. O Jânio escreveu a carta de renúncia no dia 24, mas a renúncia só
foi aceita no dia 25. Eu “gosto” do Jânio. Digo “gosto” porque não gosto de
verdade. Eu gosto do Lula, gosto da Dilma. Do Jânio eu “gosto”. “Gosto” porque
acho que há um lado simbólico interessante na renúncia dele. Uma vez li uma
entrevista do Cláudio Lembo, que era assessor do Jânio na época da renúncia, e
assumi o que ele disse naquele dia como verdade. Pode não ser. Mas para mim é.
Segundo ele, Jânio era um cara estourado e já tinha escrito umas três cartas de
renúncia antes da fatídica carta. Ele as entregava a Lembo que as punha no
bolso e as escondia. No dia seguinte, Jânio tocava a vida como se nada tivesse
acontecido. Jânio ficava de saco cheio por algum motivo, escrevia a carta e
depois passava. Naquele 24/08, porém, Lembo estava de folga. Era feriado. O dia
em que Getúlio se matou foi feriado entre 1955 e o golpe militar, acho. Não
confirmei. Mas sei que em 1961 era feriado. E um feriado que caiu numa quinta.
Lembo aproveitou para viajar. Jânio não sabia que era Lembo que sumia com as
cartas. Embora as entregasse para ele, não imaginava que era nesta parte do
trajeto que a carta se perdia. Bom, daquela vez a carta não se perdeu. Alguns
acham que o Golpe de 1964 não teria acontecido sem aquela renúncia de Jânio. Eu
acho que aconteceria. Aconteceu no continente todo. Uma hora os milicos iam achar
uma desculpa. Quando alguém que dar golpe, inventa-se motivo. Tipo pedalada fiscal.
Eu tinha um colega de trabalho que era igual ao Jânio. Volta e meia ele pedia
as contas. Mandava o chefe tomar no cu, pegava a carteira e anunciava que
estava indo no RH. Teve um dia que ele chegou de uma reunião puto, entrou na
sala, pegou a carteira e disse: “Tô indo no RH pedir as contas”. Eu não estava
na empresa neste dia, tinha viajado pela empresa. Estava cochilando no ônibus
quando meu celular tocou. Era um colega que disse: “Fulano pegou a carteira e
tá indo no RH pedir as contas”. “Caralho”, eu pensei. “Me liga quando cê souber
no que isso deu”. Logo em seguida, meu chefe entrou perguntando: “Cadê o
fulano?”. “Pegou a carteira e foi no RH pedir as contas”, respondeu meu colega.
Eu não estava lá, não sei se foi literalmente assim. Mas foi algo deste tipo. Meu
chefe saiu desesperado e, alguns minutos depois, voltou à sala com o fulano, quase
abraçados e brincando. E, por favor, não tomem isto que estou falando como
verdade. Muita gente que entende mais do assunto do que eu fala que foi tentativa
de golpe do Jânio e tal. Mas eu acho que não foi.
Outro
motivo para eu “gostar” de Jânio é que meu pai o adorava. Meu pai achava o
Jânio foda. “Esse aí acordava seis horas da manhã e saía multando carro pela
cidade”, dizia meu pai. Ele achava isto a definição de boa política. Acordar
cedo e sair multando. Meu pai teria delirado com aquele começo de gestão Doria
na Prefeitura de SP. Aquela época em que o recém-prefeito vestia cada dia uma
fantasia de uma profissão. Era o tipo de populismo que ele adorava. Possivelmente
meu pai hoje estaria nesse papo de terceira via. Pode ser.
Ser
petista não era fácil em 2016. Acho que era até mais difícil do que hoje. As
pessoas já me chamavam de petista antes de eu ser petista. “Vocês não percebem
que esta turma de verde-e-amarelo é um bando de fascista filho-da-puta?”, eu
dizia na época. “Você tá viajando”, dizia a maioria. Boa parte do período anterior
àquilo eu estava viajando mesmo. Eu acho que parei de viajar em 2014. Foi a
primeira eleição em que votei no PT. “Voto crítico”. Não há nada mais arrogante
do que o “voto crítico”. Toda pessoa que dá “voto crítico” é uma alienada metida
a sabichona. Eu era assim. Estar do lado do PT em 2014 me fez começar a ver
como as pessoas do outro lado agiam. E pai do céu, já era assustador. Em 2015
era muito assustador. Aquela primeira passeata, aquele bando de gente rica
colocando criança rica para tirar foto com policial. Aquelas faixas. Aquela
estética. Aquela manipulação. Tudo. 2016, puta que pariu. Eu tinha medo de
colocar camisa vermelha e sair na rua. No dia em que o Moro liberou a conversa
do Lula com a Dilma, eu estava na rua indo encontrar uns amigos em um bar e de
repente começou uma gritaria. Do nada. “Que porra tá acontecendo?”, eu pensei.
Uma TV ligada num bar mostrava um bando de gente de verde-e-amarelo cercando o Palácio.
“Caralho!”. Uma amiga me manda uma mensagem com medo. “Meu pais são filiados ao
PT, tenho realmente medo do que as pessoas podem fazer com eles”. Dois anos
depois, estas pessoas, algumas que eu amo, votaram num cara que prometera em
campanha metralhar os petistas. Prendê-los ou expulsá-los do país, prometeu ele
em outro discurso. As pessoas votaram neste cara. Como será quando pessoas que
amamos estiverem denunciando os judeus escondidos no porão para a Gestapo? Como
lidar com o fato de que amamos pessoas capazes do que há de pior?
A
presidenta. A presidenta exigia ser chamada de presidenta. As pessoas faziam
questão de chamá-la de presidente. Ridicularizavam o termo presidenta.
Ridicularizavam tudo. A história às vezes inverte o papel de ridicularizado e
ridículo. Para os ridículos, o termo presidenta estava errado. Eles insistiam
que só existia presidente. A presidenta insistiu mais. A história da presidenta
é uma história de insistência. Lembro dela naquele 31/08. De vermelho, forte.
“Mas
o golpe não foi cometido apenas contra mim e contra o meu partido. Isto foi
apenas o começo. O golpe vai atingir indistintamente qualquer organização
política progressista e democrática.
O
golpe é contra os movimentos sociais e sindicais e contra os que lutam por
direitos em todas as suas acepções: direito ao trabalho e à proteção de leis
trabalhistas; direito a uma aposentadoria justa; direito à moradia e à terra;
direito à educação, à saúde e à cultura; direito aos jovens de protagonizarem
sua história; direitos dos negros, dos indígenas, da população LGBT, das
mulheres; direito de se manifestar sem ser reprimido.
Muita
coisa piorou daquele 31/08 para cá. Aquilo era só o início de algo muito ruim.
A pedalada fiscal começava a escancarar nossa decadência. Há esperança? Volto
com a dona do dia. Ou no meu caso, a segunda dona do dia. O 31/08 será sempre
do meu pai. O 24/08 sempre da minha mãe. Mas Dilma é a segunda pessoa em que
pensarei neste 31/08, cinco anos depois do fim do início. Ou do início do fim.
“Neste
momento, não direi adeus a vocês. Tenho certeza de que posso dizer “até daqui a
pouco”.
Encerro
compartilhando com vocês um belíssimo alento do poeta russo Maiakovski:
"Não
estamos alegres, é certo,
Mas
também por que razão haveríamos de ficar tristes?
O
mar da história é agitado
As
ameaças e as guerras, haveremos de atravessá-las,
Rompê-las
ao meio,
Cortando-as
como uma quilha corta."
Um
carinhoso abraço a todo povo brasileiro, que compartilha comigo a crença na
democracia e o sonho da justiça."