Estava ansioso.
Mas isto não era novidade. Ansiedade e pressa formavam a síntese de sua vida.
Acordava e tomava o café com pressa para sair de casa. Podia estar trânsito,
então saía de casa sempre trinta minutos mais cedo. Se não estivesse trânsito,
chegaria 15 minutos mais cedo. Se estivesse trânsito, uma meia hora atrasado. Sentava-se
na mesa do escritório e queria que o tempo passasse rápido. Tinha pressa que chegasse
a hora do almoço. Almoçava com pressa para voltar logo ao trabalho. Voltava e
tinha pressa que o fim do dia chegasse. Queria ir para casa. Mais trânsito. Chegando
em casa, não sabia ao certo porque queria tanto voltar. Tinha pressa para dormir.
Precisava acordar cedo para trabalhar no dia seguinte. Sentia um vazio no fim de
semana. Não sabia mais viver sem pressa. Não sabia passar tempo ocioso. Tinha
que “aproveitar” o tempo. Preenchê-lo. Só sabia fazê-lo bebendo. Esquecendo.
Fazendo-o passar cada vez mais rápido.
- Já estamos em
outubro.
Ele pensou,
estranhando que o ano estivesse passando tão rápido. A vida estava passando
rápido. Perdera a capacidade de pensar sobre a vida. Perdera a capacidade de
fazer qualquer coisa que exigisse maior concentração. Não conseguia ler um
texto longo. Era perda de tempo. Tudo era perda de tempo.
- Preciso ter
algo para fazer.
Um dia descobriu
um clube do tiro abrindo na segunda rua depois da Igreja. Leu em algum lugar
que atirar era bom para lidar com stress. Um bom lugar para descarregar. Andava
com vontade de matar umas pessoas. Tinha esta vontade. Mas queria matar de
forma legal. Matar bandido.
- Bandido não é
gente.
Aquilo que não é
gente não é errado matar, ele pensava.
- Quem mata bandido
é herói.
Ouvia todo dia
na rádio, enquanto estava trancado em seu carro indo para o trabalho, a saga de
algum policial herói que havia matado bandidos. Se pudesse voltar no tempo,
queria ser policial. Queria matar bandidos. Tipo o capitão Nascimento. Tacar um
saco plástico na cabeça do bandido e ver seu nariz sangrando. Sonhava que
alguém entrasse em sua casa.
- Legítima
defesa.
Matar para
salvar a família. O ápice do heroísmo. Mas tinha medo de morrer. Muito medo.
Tinha medo do que podia dar errado. Pagava o plano de saúde e o seguro do carro
em dia. Não daria certo como policial, tinha muito medo de morrer. Só queria
matar. Queria que houvesse algo tipo um parque de diversão. Você solta os
bandidos num pátio e os “cidadãos de bem” ficam em cima atirando, enquanto
bebem cerveja e jogam sinuca. Gostou quando a Xuxa disse que presidiário
deveria ser cobaia.
- Assim eles
teriam alguma utilidade.
Assim eles
teriam alguma utilidade, disse a rainha dos Baixinhos. Adorou quando ela disse
isso. Mas ela é meio comunista em outras coisas.
- Comunista é
tudo bandido.
Tudo que é
bandido deve ser morto. Exterminado.
- A ditadura
deveria ter matado era uns 30 mil.
Não sabia se o
pensamento era dele ou no candidato em que votou. Finalmente encontrara alguém
com quem se identificava. Eram todos comunistas, afinal. E não era uma gripezinha
que o faria abandonar seu herói.
Acabara de pagar
o apartamento. Não sentiu alívio. Sentiu-se angustiado. Precisava de mais
espaço. Queria comprar mais coisas. Usou o apartamento antigo como entrada e
comprou um novo. Achou um bom investimento. Acabara de pagar o carro. Não
sentiu alívio. Sentiu-se angustiado. Precisava de mais espaço. Precisava de
mais velocidade. Usou o carro antigo como entrada e comprou um novo. Teve uma
ereção ao entrar no carro novo pela primeira vez. Algo parecido com o que
aconteceu quando comprou sua arma.
Estava ansioso.
Estava com medo. Estava com ódio. Não apenas dos bandidos. Detestava o chefe.
Achava que não tinha o reconhecimento que merecia. Dez anos na firma. Tinha
medo de perder o emprego que odiava. Não há prisão maior do que o medo de
perder algo que odeia. O medo de perder a vida de merda.
- O tempo passa
rápido.
Não gostava mais
da esposa. Pensava em uma mulher diferente a cada transa. Odiava todas. Odiava
as que o desprezavam.
- Vadias.
Odiava as que haviam
cedido às suas investidas.
- Vadias.
Só vadia
aceitava ficar com homem casado, pensava enquanto transava. Sentia tesão ao
sentir ódio. O mesmo tesão que sentia ao se imaginar matando bandidos. O ódio
era a única coisa que o excitava. Votou excitado. Finalmente alguém na política o havia excitado.
Não sabia o que
fazer quando não estava trancado no trabalho, no carro ou em casa. Quando
estava em casa queria sair, mas não sabia para onde. Quando estava no trabalho,
queria ir para casa. Quando estava no carro, queria estar em qualquer outro
lugar. Tinha medo do que acontecia do outro lado da janela.
- Muito bandido.
Acreditava em
Deus. Sentia medo Dele. Não conseguiria respeitar algo de que não sentisse
medo. Tinha medo do Inferno. Gostava deste Deus que punia. Tinha medo de
morrer. A vida passava rápido.
Sentia-se
sozinho. Quanto mais se sentia sozinho, mais buscava alguma companhia. Quanto
mais estava trancado, mais sentia falta de gente. Mas perdera a capacidade de
fazer amizades descompromissadas. Sempre se aproximava por interesse.
- Ele pode me
ser útil no futuro.
A solidão o
angustiava. Achou que podia fazer amigos no clube de tiro. Queria falar de suas
ideias para iguais. Descarregar a arma num alvo. Imaginá-lo de verdade. A
semana passara devagar. Iria no domingo e o domingo finalmente chegou.
Foi na missa,
como em todo domingo. Tomou a hóstia.
- O corpo de
Cristo.
O bandido de
2000 anos atrás disse o padre.
- Amém.
Voltou para
casa. Pegou a arma. Carregou-a. Chegara o momento tão esperado. Clube de tiro.
Alugou uma arma mais potente. Meteu bala na bandidagem. Sentiu-se aliviado.
Leve. Nunca havia se sentido tão corajoso. Tão destrutivo. Para ele, coragem
era destruir. Mas o nome daquilo não era coragem. Era alguma outra coisa. Algo
sem nome. Como o prenúncio de uma tragédia. Enxergou o inferno. Sentiu-se um
Deus. Realizou-se.
Voltou para casa
ainda em êxtase. Beijou sua esposa e foi para o quarto. Olho sua arma. Seu amor. Morreria feliz naquele momento. Trancou-se no banheiro. Sua esposa se assustou ao ouviu um tiro.