sábado, 23 de outubro de 2021

O clube de tiro

 



Estava ansioso. Mas isto não era novidade. Ansiedade e pressa formavam a síntese de sua vida. Acordava e tomava o café com pressa para sair de casa. Podia estar trânsito, então saía de casa sempre trinta minutos mais cedo. Se não estivesse trânsito, chegaria 15 minutos mais cedo. Se estivesse trânsito, uma meia hora atrasado. Sentava-se na mesa do escritório e queria que o tempo passasse rápido. Tinha pressa que chegasse a hora do almoço. Almoçava com pressa para voltar logo ao trabalho. Voltava e tinha pressa que o fim do dia chegasse. Queria ir para casa. Mais trânsito. Chegando em casa, não sabia ao certo porque queria tanto voltar. Tinha pressa para dormir. Precisava acordar cedo para trabalhar no dia seguinte. Sentia um vazio no fim de semana. Não sabia mais viver sem pressa. Não sabia passar tempo ocioso. Tinha que “aproveitar” o tempo. Preenchê-lo. Só sabia fazê-lo bebendo. Esquecendo. Fazendo-o passar cada vez mais rápido.

- Já estamos em outubro.

Ele pensou, estranhando que o ano estivesse passando tão rápido. A vida estava passando rápido. Perdera a capacidade de pensar sobre a vida. Perdera a capacidade de fazer qualquer coisa que exigisse maior concentração. Não conseguia ler um texto longo. Era perda de tempo. Tudo era perda de tempo.

- Preciso ter algo para fazer.

Um dia descobriu um clube do tiro abrindo na segunda rua depois da Igreja. Leu em algum lugar que atirar era bom para lidar com stress. Um bom lugar para descarregar. Andava com vontade de matar umas pessoas. Tinha esta vontade. Mas queria matar de forma legal. Matar bandido.

- Bandido não é gente.

Aquilo que não é gente não é errado matar, ele pensava.

- Quem mata bandido é herói.

Ouvia todo dia na rádio, enquanto estava trancado em seu carro indo para o trabalho, a saga de algum policial herói que havia matado bandidos. Se pudesse voltar no tempo, queria ser policial. Queria matar bandidos. Tipo o capitão Nascimento. Tacar um saco plástico na cabeça do bandido e ver seu nariz sangrando. Sonhava que alguém entrasse em sua casa.

- Legítima defesa.

Matar para salvar a família. O ápice do heroísmo. Mas tinha medo de morrer. Muito medo. Tinha medo do que podia dar errado. Pagava o plano de saúde e o seguro do carro em dia. Não daria certo como policial, tinha muito medo de morrer. Só queria matar. Queria que houvesse algo tipo um parque de diversão. Você solta os bandidos num pátio e os “cidadãos de bem” ficam em cima atirando, enquanto bebem cerveja e jogam sinuca. Gostou quando a Xuxa disse que presidiário deveria ser cobaia.

- Assim eles teriam alguma utilidade.

Assim eles teriam alguma utilidade, disse a rainha dos Baixinhos. Adorou quando ela disse isso. Mas ela é meio comunista em outras coisas.

- Comunista é tudo bandido.

Tudo que é bandido deve ser morto. Exterminado.

- A ditadura deveria ter matado era uns 30 mil.

Não sabia se o pensamento era dele ou no candidato em que votou. Finalmente encontrara alguém com quem se identificava. Eram todos comunistas, afinal. E não era uma gripezinha que o faria abandonar seu herói.

Acabara de pagar o apartamento. Não sentiu alívio. Sentiu-se angustiado. Precisava de mais espaço. Queria comprar mais coisas. Usou o apartamento antigo como entrada e comprou um novo. Achou um bom investimento. Acabara de pagar o carro. Não sentiu alívio. Sentiu-se angustiado. Precisava de mais espaço. Precisava de mais velocidade. Usou o carro antigo como entrada e comprou um novo. Teve uma ereção ao entrar no carro novo pela primeira vez. Algo parecido com o que aconteceu quando comprou sua arma.

Estava ansioso. Estava com medo. Estava com ódio. Não apenas dos bandidos. Detestava o chefe. Achava que não tinha o reconhecimento que merecia. Dez anos na firma. Tinha medo de perder o emprego que odiava. Não há prisão maior do que o medo de perder algo que odeia. O medo de perder a vida de merda.

- O tempo passa rápido.

Não gostava mais da esposa. Pensava em uma mulher diferente a cada transa. Odiava todas. Odiava as que o desprezavam.

- Vadias.

Odiava as que haviam cedido às suas investidas.

- Vadias.

Só vadia aceitava ficar com homem casado, pensava enquanto transava. Sentia tesão ao sentir ódio. O mesmo tesão que sentia ao se imaginar matando bandidos. O ódio era a única coisa que o excitava. Votou excitado. Finalmente alguém na política o havia excitado.

Não sabia o que fazer quando não estava trancado no trabalho, no carro ou em casa. Quando estava em casa queria sair, mas não sabia para onde. Quando estava no trabalho, queria ir para casa. Quando estava no carro, queria estar em qualquer outro lugar. Tinha medo do que acontecia do outro lado da janela.

- Muito bandido.

Acreditava em Deus. Sentia medo Dele. Não conseguiria respeitar algo de que não sentisse medo. Tinha medo do Inferno. Gostava deste Deus que punia. Tinha medo de morrer. A vida passava rápido.

Sentia-se sozinho. Quanto mais se sentia sozinho, mais buscava alguma companhia. Quanto mais estava trancado, mais sentia falta de gente. Mas perdera a capacidade de fazer amizades descompromissadas. Sempre se aproximava por interesse.

- Ele pode me ser útil no futuro.

A solidão o angustiava. Achou que podia fazer amigos no clube de tiro. Queria falar de suas ideias para iguais. Descarregar a arma num alvo. Imaginá-lo de verdade. A semana passara devagar. Iria no domingo e o domingo finalmente chegou.

Foi na missa, como em todo domingo. Tomou a hóstia.

- O corpo de Cristo.

O bandido de 2000 anos atrás disse o padre.

- Amém.

Voltou para casa. Pegou a arma. Carregou-a. Chegara o momento tão esperado. Clube de tiro. Alugou uma arma mais potente. Meteu bala na bandidagem. Sentiu-se aliviado. Leve. Nunca havia se sentido tão corajoso. Tão destrutivo. Para ele, coragem era destruir. Mas o nome daquilo não era coragem. Era alguma outra coisa. Algo sem nome. Como o prenúncio de uma tragédia. Enxergou o inferno. Sentiu-se um Deus. Realizou-se.

Voltou para casa ainda em êxtase. Beijou sua esposa e foi para o quarto. Olho sua arma. Seu amor. Morreria feliz naquele momento. Trancou-se no banheiro. Sua esposa se assustou ao ouviu um tiro.


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