Em 2012 o Palmeiras tinha o pior time de futebol do mundo.
Quem não é palmeirense pode até achar que se trata de um grande exagero, mas
quem torce pelo time sabe que é verdade. Se pegássemos 11 pessoas ao acaso na
rua e formássemos uma equipe para enfrentar o Palmeiras, não tenho dúvidas de
que encararia o alviverde. Foi a segunda pior equipe que o Palmeiras já teve,
só sendo superada pela equipe de 2014. Em 2014, o Palmeiras era não apenas a
pior equipe de futebol do mundo, mas era a pior equipe de qualquer esporte
coletivo no planeta. Era pior do que o meu time de basquete na escola, que
certa vez perdeu uma partida de 48 a 2.
Era tipo 25ª rodada do campeonato brasileiro de 2012 quando o
Palmeiras recebeu o Sport no Pacaembu. O Palmeiras já estava naquela que
considero a terceira e última etapa que times grandes percorrem na luta contra
o rebaixamento. A primeira é a fase do “Tô tranquilo, ainda tem muito
campeonato”. A segunda é a do “Esse bando de filho da puta tem que correr mais,
caralho”. A terceira é a do “Fodeu”. Não há na minha opinião nada mais belo na
relação de torcedor e time do que esta fase do “Fodeu”. É a fase do amor
incondicional. A fase em que o torcedor percebe que o time é uma merda e só
resta torcer e apoiar aquilo. O Palmeiras tinha um time muito ruim em 2002, não
tão ruim quanto os de 2012 e 2014, estava em último e há uns 10 jogos sem
vencer, quando enfrentou o Paysandu no antigo e saudoso Palestra Itália. Entre
caneladas e chutões, o Palmeiras conseguiu um escanteio tipo aos 30 do segundo
tempo. Por algum motivo, na hora de bater este escanteio um torcedor abriu uma
bandeira de Nossa Senhora Aparecida na arquibancada. Escanteio, gol. Quem fez
foi um atacante reserva chamado Itamar, não faço ideia do que ele fez no
restante da carreira. Só sei que dali para frente criou-se na torcida o
sentimento de que aquele gol foi feito por Nossa Senhora, tendo Itamar como
instrumento. Em todos os jogos do Palmeiras até o fim do campeonato a bandeira
de Nossa Senhora estava lá. Não deu certo, o time caiu e o milagre ficou restrito
ao jogo contra o Paysandu.
Mas bom, voltando a Palmeiras x Sport de 2012, resolvi no dia
ir naquele jogo. Ainda não existia esta bosta de sócio-torcedor, vivíamos num
mundo em que se podia resolver ir a um jogo num ataque de vontade duas horas
antes da partida. O jogo era às 19, resolvi ir ao jogo umas 17. Deu na telha,
não queria ir pra casa. Chegando ao Pacaembu, quase todos os ingressos já
haviam sido vendidos, restavam ingressos apenas no Tobogã. Acho que paguei uns
R$ 15,00 e entrei.
Mais do que uma região específica de um estádio, o Tobogã era
uma experiência. Para quem não sabe, o Pacaembu é arquitetonicamente o estádio
de futebol mais bonito do mundo. Não há nada no mundo do futebol mais bonito do
que a entrada principal do Pacaembu. Você entra por trás do gol, na altura do
gramado, e vai subindo. É lindo. O Tobogã não existia no começo, foi construído
nos anos 1960. No seu lugar havia uma coisa chamada concha acústica, que eu
nunca entendi direito para que servia. Era tipo a Apoteose no Sambódromo do
Rio, essas coisas meio Niemayer. Sei lá, eu acho feio, mas tem quem ache bonito.
Mas bom, um belo dia derrubaram esta concha acústica e construíram o Tobogã. O
objetivo era nobre, aumentar a capacidade de público do estádio e criar uma
área a preços populares. Algo como era a geral no Maracanã e no Mineirão. Se a
feiura da concha acústica é uma opinião pessoal minha, a feiura do Tobogã era
quase uma unanimidade. Mas era um tipo de feio diferente. Era tão tosco que era
charmoso. Não há como explicar.
Entrei no Tobogã uns 30 minutos antes do jogo, o suficiente
para já estar meio brisado de tanta fumaça de maconha quando as equipes
entraram em campo. Estes 30 minutos foram bem gastos conversando com um garoto
de 10 anos fanático pelo Maicon Leite. Tinha o mesmo corte de cabelo que o
ídolo, um moicano arrepiado. Maicon Leite era o jogador mais talentoso daquele
esquadrão. Conseguia fazer, sei lá, umas 3 ou 4 embaixadinhas. A maioria do
time tinha 2 como recorde e alguns, especialmente os volantes, sequer sabiam
que existia uma bola em campo.
Jogo começa, pressão do Palmeiras. Poucas coisas doem mais
para um torcedor de time ruim do que um gol perdido. Você não sabe quando terá
outra chance. O Palmeiras perdeu uns 4 gols feitos naquele primeiro tempo.
Desespero multiplicado por 4. No começo do segundo tempo, o milagre. Desta vez
não foi Nossa Senhora, mas foi Correa o autor do milagre. Festa no Tobogã. O
pai do pequeno Maicon Leite o jogava para o alto, numa altura suficiente para
ser considerada irresponsável. Não há experiência futebolística mais intensa do
que o gol de um time ruim. Festeja-se como se não houvesse amanhã. Três minutos
depois, a ducha de água fria. Um jogador X do Sport acerta um chute da puta que
pariu no ângulo. Puta que pariu. Uma pessoa atrás de mim fez um comentário que
marcou a minha relação com futebol daí para frente: “Foi um parto pra conseguir
fazer um gol, agora vai ter que tentar fazer outro. Fodeu”. Se a bandeira de Nossa
Senhora estivesse no estádio, é fato que ela seria aberta. Não foi, mas o novo
milagre aconteceu. O lendário Obina deu uma assistência digna de Messi para
Tiago Real, que fez uma finalização digna de Messi. Messi para Messi. Dois gols
num jogo só. Milagre. Alguns minutos depois, o mesmo Obina chutaria uma bola
sem direção que desviaria no zagueiro do Sport e entraria no canto. Sorte.
Torcedor de time ruim sempre acha que o time está com azar. Mas é só ruindade
mesmo. Por isso, quando vem a sorte, parece que tudo mudou. Dá-lhe matemática.
Se vencermos os próximos 5 jogos, não cairemos. O time venceu 5 jogos em 25.
Precisa ganhar 5 em 5. Perda de tempo explicar isto ao torcedor eufórico. Ele
simplesmente acredita. O Palmeiras venceu. Mas continuaria na zona de
rebaixamento. Continuou até o fim do campeonato, aliás. Caiu. Junto com o
Sport.
Em 2021 caiu o Tobogã. O lugar de onde vi Tiago Real e Obina
se transformarem em Messi não existe mais. O local onde o pai atirou o pequeno Maicon
Leite para cima foi para o chão. A Prefeitura de SP “concedeu” o Pacaembu a uma
empresa X, não me importa quem é. Provavelmente alguma dessas empresas jovens
que não significam nada, que foi formada só para ganhar a licitação do estádio.
A lei não permite que esta empresa derrube o Pacaembu, ele é tombado. Mas deu
para derrubar o Tobogã. Vão construir um centro de convenções no lugar e o
Pacaembu vai deixar de ter o futebol como alvo. Vai ser usado para eventos,
principalmente para casamentos. Se tem algo que dá retorno no Brasil-trágico
atual é evento. Quanto maior nossa pobreza, maior o desejo de uma parcela mais
rica da população em ostentar. A merda pode estar comendo solta, mas dá-lhe
viagem para as praias do México e casamentos faraônicos. Daqui a alguns meses
começaremos a ver no Instagram festas e mais festas de casamento no Pacaembu. É
chique.
O Pacaembu e o Morumbi são locais de experiência coletiva. O
estádio do SP, apesar de ser privado, era usado por todos os times da cidade e
todo mundo tem memórias afetivas lá. Vitórias e derrotas. O Pacaembu corintiano
é o da vitória contra o Boca em 2012 e o do vexame histórico contra o River em
2006. O Pacaembu palmeirense é o do título brasileiro de 1994 e da derrota para
o Goiás em 2011. O Pacaembu santista é o da Libertadores de 2011 e do Márcio
Rezende partindo o coração em 1995. A mesma coisa acontece no estádio do
Morumbi. O mesmo lugar, as mesmas emoções. Um lugar que partilhávamos. Primeira
pessoa do plural. Nós.
O “Nós” saiu da moda. Não só no futebol. O “nós” é
improdutivo. É preciso de concorrência e a concorrência se estimula na base do
“eu”. Ninguém mais quer um lugar em que se compartilhe experiências com o
outro, quero um lugar só meu para viver a minha experiência. “Um lugar para
chamar de meu”. O Corinthians construiu o Itaquerão. Ou a “Neoquímica Arena”. O
Palmeiras construiu o “Alianz Park”. O ingresso de futebol foi para a caralhosfera.
Se o Pacaembu e o Morumbi foram construídos com o objetivo de atrair todas as
classes sociais para o estádio, mesmo que cada uma no seu canto, nos novos
estádios não há espaço para os mais pobres. Se no Morumbi era 50 a 50, no Allianz
e na Neoquímica é 100 a 0. Só há espaço para 1. O estádio não é mais nosso. O
estádio é meu. Não há espaço para nenhum tipo de divisão.
A demolição do Tobogã é a demolição de uma era. Aquele
futebol não existe mais. Aquele mundo não existe mais. É cada um por si. O
futebol não se sobrepõe à sociedade. A sociedade que fez uma Reforma
Trabalhista que jogou milhões na informalidade não quer mais saber de nada
coletivo. A previdência privatizada. O MEU estádio. Mesmo que eu não possa ir.
Como boa parte dos lugares das minhas memórias, o Tobogã está
no chão. Discurso de velho. “Saudade do meu mundo”. Saudade do que não era tão
bom assim. Mas que parece muito melhor do que o que temos hoje. Saudade do país
que incluía. Saudade do país do “nós”. Saudade de ter um país. Hoje somos um
amontoado de gente se matando para alguém ganhar dinheiro. E gastar em casamentos.
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