domingo, 16 de julho de 2023

"Super" Xuxa e o Baixo Astral

 


Tenho às vezes a impressão de que algumas notícias aparentemente inocentes e irrelevantes são mais importantes e relevantes do que notícias aparentemente importantes e relevantes. Reforma Tributária, inelegibilidade do genocida, gado agredindo Xandão. Mas a notícia que mais me chamou a atenção foi a briga de Xuxa e Marlene Matos.

Possivelmente não há pessoa mais improvável na história da mídia brasileira. Não há história de sucesso mais improvável que a dela. Mulher num país machista. Negra num país racista. Nordestina num país em que o Sul-Sudeste trata com menosprezo a região Nordeste. Homossexual num país homofóbico. Obesa num país gordofóbico. Marlene é o tipo de pessoa que o Brasil oprime. É o perfil de pessoa que o Brasil silencia. Acho um mistério como uma pessoa como ela conseguiu triunfar num país tão preconceituoso como o Brasil e num ambiente em que estes preconceitos são tão aflorados quanto a televisão brasileira dos anos 1980.

Com exceção ao fato de ser mulher, Xuxa é todo o oposto de Marlene. A branca. Sulista. Heterossexual ex-namorada dos dois atletas mais importantes da história do país. Símbolo sexual. O choque entre Marlene e Xuxa é mais do que um choque entre duas personalidades. É o choque entre dois mundos.

Eu tenho pouco interesse em geral por biografias. Não sei muita coisa fora o já dito sobre Marlene. Procurei algo sobre a vida de Marlene quando a ideia deste texto surgiu e achei pouca coisa de muito interessante. O mais relevante é que ela entrou na Globo como datilógrafa. Deve ter ralado MUITO para chegar à diretora de um programa de televisão. Sei bastante sobre Xuxa. Sei o nome da sua filha, dos seus namorados e conheço um monte de música que ela cantou. Xuxa nunca foi boa atriz, nem boa cantora. Seus filmes foram sucesso de bilheteria e seus discos são recordes de venda até hoje. Xuxa nunca precisou ser tão boa, sua principal qualidade foi ter “carisma”. E o “carisma” é, em geral, algo muito restrito a um grupo de pessoas no Brasil. Ninguém nunca se interessou muito por Marlene. Todo mundo sempre se interessou por Xuxa.

Xuxa passou boa parte da sua vida sendo debiloide. Aparentemente está mudando. Um privilégio que pessoas brancas têm é de ter mais tempo para aprender. Pessoas negras não têm tanta sorte. Em geral, elas não podem errar.

Marlene não podia errar quando apostou todas as suas fichas na jovem Xuxa nos anos 1980. Entrou de cabeça, era a sua chance. A única chance. O que ela fez exatamente? Não sei. Ninguém parece muito interessado em saber e Marlene não parece estar a fim de contar. Xuxa está lançando um documentário para contar sua versão sobre a história. Parece que vai fazer sucesso.

O encontro de Xuxa e Marlene Mattos foi transmitido pelo “Fantástico”. O parto de Xuxa também. Marlene chocou Xuxa ao dizer que “não mudaria nada do que fez”. Ainda não sabemos ao certo o que Marlene fez. E provavelmente não veremos sua versão dos fatos. O Brasil nunca se interessou muito pela versão das Marlenes, afinal. Mas faz todo sentido que ela não queira mudar nada do que fez. Marlene é mulher num país que há 5 anos elegeu como presidente uma pessoa que dizia que ter filhas mulheres era sinal de fraquejada. Marlene é negra num país que há 5 anos elegeu como presidente uma pessoa que ria ao dizer que pessoas negras deveriam ser pesadas em arrobas. Marlene é maranhense num país que há 5 anos elegeu como presidente uma pessoa que dizia que a melhor coisa que existia no Maranhão era um presídio superlotado onde ocorrera naquela semana uma chacina. Marlene é homossexual num país que há 5 anos elegeu como presidente uma pessoa que defendia que crianças deveriam ser agredidas pelos pais caso demonstrassem inclinações homoafetivas. Marlene é a pessoa sem boa aparência num país que há 5 anos elegeu como presidente uma pessoa que disse que não estupraria uma então colega deputada porque ela era feia e não merecia. Marlene não tem que mudar nada. É todo o resto que tem que mudar. Xuxa mudou bastante. Inclusive a ponto de trabalhar aberta e corajosamente contra a reeleição deste presidente no ano passado. Mas não mudou a ponto de entender totalmente seus privilégios e de se colocar no lugar de Marlene. 

Marlene disse a Xuxa em seu encontro que “o mundo não é feito de flores”. Não, definitivamente não é. O documentário provavelmente transformará Marlene, a grande responsável pelo sucesso de Xuxa, em vilã. Marlene não parece muito preocupada com isto. Ela já está acostumada. O Brasil já está acostumado. A barbárie se converteu em costume. E é difícil abandonar mais de 500 anos de costumes.


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