quinta-feira, 12 de fevereiro de 2015

O esporte e a construção de mitos


 


               Adoro esporte, mas parto do pressuposto de que nenhum atleta é gênio. Nenhum atleta muda o mundo ou vai ser lembrado, sei lá, daqui a 200 anos. Roger Federer ou Michael Jordan são tão insignificantes para o mundo quanto eu. A transformação do atleta em mito tem muito mais a ver com marketing do que com qualquer outra coisa.
                Até os anos 30, com exceção do boxe e talvez do automobilismo, todo esporte era amador. Os atletas tinham empregos “normais” e praticavam seu esporte no fim de semana quase como um hobby. O principal motivo para isso é que aquilo não gerava dinheiro, ninguém havia notado o potencial de manipulação de tudo aquilo. Os primeiros a notar esta capacidade do esporte foram os alemães, no período nazista. Na Olimpíada de Berlim, em 1936, o esporte teve uma importância nunca vista até então, com o esforço nazista em transformar os atletas alemães em mitos capazes de demonstrar a superioridade germânica sendo recompensados.  
                Junto com a propaganda política, talvez o uso do esporte como instrumento de manipulação tenha sido a grande influência nazista no pós-guerra, mesmo com a derrota. Cada lado vencedor o fez de uma forma. O lado soviético passou a usar o esporte basicamente da mesma forma como faziam os nazistas, usando vitórias individuais de atletas como vitórias de todo o sistema. Buscar medalhas nos Jogos Olímpicos era questão de estado. Na Alemanha Oriental, por exemplo, gastou-se em certo período mais em esporte do que em saúde. No lado capitalista, além da mesma manipulação, surgia algo novo, o uso do esporte pelas grandes corporações. Percebeu-se, a partir dos anos 60, que atletas poderiam ter uma capacidade única de vender produtos. Para isso, seria necessário um grande trabalho de marketing para converter pessoas que chutavam bolas ou que as jogavam num alvo redondo ou que davam raquetadas em heróis para o grande público. Em seguida, transformá-los em gênios, para assim convencer este mesmo público a comprar os produtos “usados” por estas figuras geniais.
                A explosão do esporte como instrumento para venda de quinquilharias no Ocidente se deu com o boom de consumismo nos EUA nos anos 1980. Assim como o Brasil nos anos Lula, o crescimento nos EUA durante este período se deu basicamente pelo consumo e empresas passaram a usar como nunca atletas como garotos-propagandas. Surgia nessa época o grande marco desta fase, Michael Jordan. Grande campeão, transformado em gênio por conseguir como ninguém colocar bolas em cestas, Jordan vendia de tudo e muito. E, ao gerar muito dinheiro, ganhava muito dinheiro, gerando uma possibilidade de ascensão social nunca vista. O efeito Jordan chegou a outros esportes e no Brasil talvez tenha tido um paralelo à mesma época em Ayrton Senna, transformado em gênio por dirigir carros mais rápido do que os outros. O esporte era engolido pela sociedade do espetáculo.
As práticas de doping já eram conhecidas nos países socialistas, que em boa parte das vezes utilizavam substâncias proibidas quase como uma política estatal. Foi neste período, porém, em boa parte como consequência do movimento inédito de dinheiro que o esporte passou a gerar, que os primeiros casos de doping começaram a surgir entre atletas de alto escalão de potências ocidentais. Ben Johnson, corredor canadense, foi o primeiro grande nome a rodar com substâncias proibidas. Mais dinheiro trazia novas exigências e a cobrança por melhores resultados atingia níveis que levavam a pressão a atletas à estratosfera. O atleta passou a ser um produto, que só vendia através da vitória. Ganhar significava salários milionários e numa sociedade cada vez mais competitiva, o público buscava algo que as aproximasse das vitórias que não conseguia na vida. Ao comprar um tênis de Jordan, mesmo a pessoa mais “derrotada” do mundo se sentia próxima do ídolo vencedor. A “magia” da competitividade é essa, a vitória é o objetivo principal e ao mesmo tempo em que apenas 1 em cada 1000 vencem, sempre nos enxergamos no vencedor e não no derrotado. Quase todo mundo que conheço, embora passe uma vida sendo esculachado por chefes escrotos e realizando trabalhos desgostosos, identifica-se com o vencedor Roger Federer e não com o cara que ele derrotou com facilidade na primeira rodada do US Open. A identificação é com as vitórias de Senna e não com as trapalhadas de Barrichello.
Nos anos 90, tivemos uma explosão de atletas “gênios” e marketeiros. Ronaldo, Armstrong, Agassi, Schumacher, todos vendendo horrores a cada vitória. Tênis, fast-foods, desodorantes, todo tipo de porcaria era anunciada por estes mitos e comprada por seus súditos mortais. Para convencer o público a comprar o atleta deveria ser uma pessoa perfeita. Todo atleta de ponta, por exemplo, passou a ter uma organização filantrópica e a anunciá-la com toda pompa possível.  Ao mesmo tempo em que eram cobrados por melhores resultados, não podiam errar. Humanos erram, o grande gênio que nasceu com o dom de chutar uma bola num retângulo não. Armstrong, ciclista vencedor, por exemplo, construiu uma verdadeira indústria para dopá-lo e passou de herói a vilão quando sua trapaça foi descoberta.
Neste cenário surge Anderson Silva. Menino de origem humilde, encontrou no mais bruto dos esportes uma saída para sua pobreza. Bom demais no que fazia, entrou no ciclo da fortuna e foi convertido em herói por uma mídia sedenta por garotos-propagandas e por um público desesperado para se enxergar em qualquer coisa que represente vitória numa vida cada vez mais desumana. Não só tratado como herói, Anderson passou a se enxergar como um, o que é muito comum. Se todo mundo te bajula e diz que você é importante, a tendência é que você acredite. Ganhava tudo, até que um pelo dia perdeu, depois quebrou a perna e programou uma volta triunfal. Nesta volta, sucumbiu a enorme pressão de ser herói e de ter que corresponder a todos os milhões de patrocinadores que poderiam cancelar seus contratos milionários em caso de derrota. Provavelmente conhecerá a rejeição de todos que o bajularam.
No atual esporte profissional, dominado pela propaganda, é muita ingenuidade acreditar claramente que alguém está livre destas substâncias. Um jogador brasileiro sai magricela da Europa e lá ganha não sei quantos quilos em massa muscular. Um tenista famoso se machuca uma vez por ano, passa 4 meses fora e volta ganhando tudo. O velocista bate recorde em todas as competições. São tratados como heróis, mas são tão humanos como nós,  com a mesma predisposição aos erros em momentos de pressão. Anderson Silva não é vilão nem herói. É só uma pessoa como nós. A verdadeira identificação e encontro com o seu público competitivo e consumista não acontecia quando ele socava alguém inferior. Acontece agora.

3 comentários:

  1. Discordo do argumento central deste texto. Os grandes esportistas estimulam a prática do esporte e praticar algum esporte faz bem para o corpo e a mente (provado cientificamente). É fato q as marcas exploram essas figuras, mas é a levada (triste) do mundo atual. Até boas atitudes são exploradas hoje em dia. Crianças criam hobbies e se ocupam por causa de ídolos do esporte. Quem chega no ápice de uma prática é gênio ou mito para mim, pois são poucos que conseguem beirar a perfeição. Contestar uma organização como o UFC ou a conduta de Armstrong é sensato e concordo com a falta de seriedade de ambas, mas você não pode colocar o esporte todo em xeque por isso. Soa como uma teoria da conspiração, onde "todo mundo pode estar dopado", "é tudo combinado". O esporte é e sempre será essencial para o ser humano.

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    1. Não consigo achar que o esporte seja uma coisa essencial. Eu gosto muito de tênis, por exemplo, mas reconheço que é uma coisa totalmente sem sentido. E acho que alguém se considerado um gênio porque faz algo com perfeição é banalizar o termo.
      valeu pela leitura e pelo elogio Victor.
      abs.

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  2. Mas, complementando, você escreve bem. Gostei muito do texto do Haddad, foi através dele que cheguei aqui. Vou acompanhar!

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