A polarização das opiniões
brasileiras transformou qualquer discussão em uma partida de futebol.
Percebe-se no país que não há intersecções nos conjuntos, não há mistura de
cores na formação da nossa aquarela.
Cada vez mais o embate “direita x
esquerda” ganha contornos de intolerância. O recente desmantelamento do principal
partido de esquerda do país licenciou boa parte da população a soltar todos os
seus preconceitos guardados. Quando digo boa parte não entenda maioria, porque
a maioria dos integrantes do impeachment era apenas descontente
com as condições econômicas e clamava por mudança mesmo que ao custo da democracia.
A ideia desse texto não é
discutir impeachment ou conceitos de capitalismo e comunismo, a sociedade já é
demasiadamente inflamada por esses assuntos nas redes sociais. Quero discutir
se as pessoas estão se ouvindo, quero saber se as perguntas feitas a elas são
compreendidas corretamente e se as respostas são dadas com alguma sensatez.
Quero medir quanto o ódio está moldando o caráter e a capacidade de decidir
entre o certo e o errado.
Fátima Bernardes pode ter sido
vítima do analfabetismo funcional brasileiro. Como todos sabem, em seu programa
a apresentadora apenas mediava um debate sobre quem as pessoas atenderiam
primeiro: um policial levemente ferido ou um traficante gravemente ferido.
Fátima em nenhum momento toma posição sobre qual resposta daria, ela observa o
comportamento dos participantes e convida um médico, que dá sua opinião
favorável à maioria. Esse é o primeiro ponto de incômodo. Porque pegar a
apresentadora, deturpar o fato e imputá-la opiniões que não desferiu? Fazer um
debate sobre o comportamento da nossa sociedade em decisões extremas é
prejudicial aos policiais?
Fátima foi mais uma vítima da
polarização e da falta da informação. Provavelmente a maioria das pessoas que
agrediu a apresentadora nem sequer assistiu ao programa e deve ter se baseado
por manchetes de Facebook do tipo “Fátima Bernardes defende traficante”. Está
certo contribuir para esse julgamento? Todas as pessoas que fizeram a escolha “pelo
traficante” estavam erradas e defendem bandido? Houve sensacionalismo na
pulverização digital da notícia?
Segundo ponto de conflito na
discussão: estão as pessoas erradas em atender primeiro o bandido mais
grave? Nessa reflexão entra o conflito entre os fascistas do “bandido bom é
bandido morto” e aquela “galerinha dos direitos humanos para bandido”. As únicas
coisas que não entraram nessa discussão foram as mais importantes para o ponto:
o papel da medicina e da justiça em uma sociedade.
Pelo o que estudei, o papel da
medicina é salvar vidas e o papel da justiça é aplicar a lei. É isso, por mais
que doa nos defensores do abominável crossover médico + juiz, um Frankenstein
de estetoscópio e toga. Não é difícil entender que o médico é obrigado,
inclusive por lei, a não fazer distinções entre pacientes, seja Deus ou o
diabo. Também é notório que vivemos em uma sociedade desigual e violenta, em
que às vezes o policial assume um papel de homem mau, descumpridor das leis que
promete defender, um miliciano, por exemplo. Os médicos teriam a capacidade de,
caso o critério de atendimento seja o da idoneidade, avaliar essa situação?
Quem faz mais mal à sociedade, o claro inimigo do estado ou o infiltrado
travestido de agente do estado? Não importa, o mais grave primeiro.
Os descumpridores das leis
merecem atendimento precário? Você que tomou 2 cervejinhas e assumiu o risco de
matar ao volante deve ser preterido em caso de acidente? Médicos recém-formados
já devem possuir um login e senha da Secretaria de Segurança Pública para ter
acesso aos antecedentes dos pacientes? Será que o PM responde inquérito na
corregedoria? Não importa, o mais grave primeiro.
Será que sou contra a polícia por
caminhar até a coluna do traficante mais grave? Não acho. Penso que a
polícia é essencial para a manutenção da ordem, principalmente em um país tão
desigual como o nosso. No caso do PM/ Uber que matou 3 assaltantes eu fiquei do
lado do PM, e embora tenha percebido que, pela lei, ele cometeu ao menos um “excesso” matando o
assaltante desarmado, se eu fosse jurado no caso absolveria o réu sem nenhum peso
na consciência e com a sensação do meu dever cumprido.
Você deve ter reparado que o texto
é propositalmente cheio de pontos de interrogação. Essas são as perguntas que
devemos nos fazer em casos como esse. Provavelmente se você respondeu todas essas
perguntas sem sensacionalismos, conseguiu entender porque a maioria das pessoas
no programa se encaminhou para a opção TRAFICANTE, como se estivessem no Tentação do Silvio Santos.