Não sei exatamente em qual
temporada do Aprendiz aconteceu esta
prova. Eram três mulheres, as três finalistas. Elas tinham ido para Santiago e
de repente apareceu o Roberto Justus num helicóptero, usando óculos escuros,
acompanhado de uns seguranças. Uma aparição meio divina. Na prova que ele
anunciaria a seguir, as três mulheres teriam que arrumar um jeito de voltar de
Santiago para São Paulo sem dinheiro. Teriam alguém da produção acompanhando só
pra pagar as refeições e a hospedagem. Ganharia quem chegasse primeiro. Não lembro exatamente o que
aconteceu com a mulher que terminou em segundo. O que me recordo é da primeira
e da terceira. A terceira colocada foi correndo para a rodoviária dizendo
simplesmente que queria voltar para o Brasil e que estava sem dinheiro.
Implorou e conseguiu convencer o dono da empresa rodoviária a dar-lhe um lugar
num ônibus que estava meio vazio. A primeira colocada foi até o aeroporto,
inventou que havia sido assaltada, estava grávida e tinha que voltar pro Brasil
para ver um parente doente. Conseguiu rapidamente doações que lhe permitiram
comprar a passagem de volta. Enquanto ela já estava no Brasil, a terceira
colocada cruzava os Andes, maravilhada com a paisagem e sem saber que estava
prestes a ser humilhada em rede nacional pelo julgador supremo do programa,
Roberto Justus.
Por algum motivo, enxergo neste
momento sinais da transformação que acontecia em minha vida. Fazia faculdade de
economia naquela época e praticamente toda sala assistia ao programa. No dia
seguinte a esta prova, todos, menos eu, estavam tirando sarro da mulher que foi
à rodoviária. Eu disse que teria feito a mesma coisa. Acho mais legal viajar de
ônibus e a experiência que a terceira colocada deve ter tido foi mais
engrandecedora do que a da primeira colocada. Também disse que eu provavelmente
teria ficado mais tempo por lá e que nem sempre o caminho mais rápido para as
coisas é o mais legal. Vencer é ter a experiência mais enriquecedora. Isto sem
contar no fato de que a primeira colocado havia claramente enganado os outros,
mas não há espaço para este tipo de reflexão no “mundo dos espertos”. Meus
colegas perguntaram se eu estava fumando maconha.
Realities shows criam uma
identificação entre o público e o opressor. Talvez não criam, mas explicitam a
forma como este laço existe. Na faculdade, éramos jovens de classe média que se
humilhavam em dinâmicas de grupo ridículas assistindo a um programa em que
jovens de classe média se humilhavam numa grande dinâmica de grupo filmada para
tentar um emprego. A bizarrice era que não nos identificávamos com as pessoas
que passavam pela mesma situação que nós, mas sim com aquela que as humilhava e
as julgava, no caso Justus. Comentávamos os erros dos participantes com a mesma
empáfia do empresário. Assim age a inversão de valores. A reação que meus
colegas tinham sobre a mulher que pegou o ônibus para vir de Santiago foi a
mesma que Justus apresentou na reunião.
A grande sacada de Realities
shows é que de certa forma eles transformam o público em “Deus”. Somos
onipresentes, oniscientes e, em alguns, onipotentes. É assim no Big Brother, em que vemos, julgamos e
punimos quase como no Velho Testamento. Num Reality como O Aprendiz, falta-nos a onipotência, exercida pelo apresentador. Há
uma correlação entre este programa e o desenvolvimento da ideia do empreendedor
como o salvador da modernidade, a figura
dotada da máxima admiração. Não é à toa que o cargo mais importante do mundo
hoje é ocupado pelo apresentador da versão americana do programa, Donald Trump.
Ele é o cara que na TV valorizava o bem-feito, punia o mau-feito e julgava pela
população. O “Deus” dos telespectadores. Na época em que eu assistia, Roberto
Justus apareceu numa pesquisa como a pessoa mais admirada entre jovens
brasileiros.
Tenho a impressão que ninguém
sabe ao certo o que Justus faz. Sei que o pai dele foi o empreiteiro que
construiu Brasília. Tudo nele me parece meio falso. É uma pessoa que se transformou num produto. Sei que ele ficou famoso namorando mulheres famosas e que
tem uma das profissões mais inúteis do planeta, publicitário. A parte mais
curiosa dos publicitários é que eles realmente acreditam nas mentiras que
contam. Eles realmente não sabem que não servem para nada. Lembro-me de debater
um dia com um, sem utilizar estes termos, claro, mas ele me perguntou o que
seria do mundo sem os publicitários. Eu disse que seria ou a mesma coisa, ou
melhor. Ele disse que eu não tinha entendido nada. Sigo sem entender.
A minha ficha sobre o meu papel
no mundo como público deste tipo de porcarias veio na edição seguinte. Lá
estava eu fascinado novamente com o super empresário humilhando jovens de terno
e gravata sonhando com um emprego. A equipe vencedora teve como prêmio pela
vitória na prova uma viagem de navio em que teriam que assistir a um show de
Roberto Justus. Poucas coisas no mundo são piores do que Justus cantando. Lá
estavam os jovens na beira do palco ouvindo Justus cantar I’ve got you under my skin se esforçando ao extremo para fazer
caras de que estavam adorando. Um dos rapazes merecia inclusive um Emmy pela
atuação neste episódio. Ele deveria abandonar o papo furado de empreendedorismo
e partir pra vida artística. Exatamente no dia seguinte meu chefe me chamou
para conversar. Ele havia viajado no final de semana e havia comprado um jet
ski. Não há, na minha opinião, nada mais imbecil no mundo do que jet ski na
praia. Nada. Talvez golfe, mas no golfe não há risco de contusão de inocentes. Mas
acho uma babaquice pegar um terreno gigantesco e colocar pequenos buracos no
chão para ricos tentarem colocar uma bolinha como entretenimento. Se eu virasse
presidente, meu primeiro ato seria a desapropriação de todos os campos de golpe
e a transformação deles em terrenos para moradia popular. Mas não ganharia com
esta proposta. Afinal, ganhou o cara que como primeira medida facilitou a posse
de armas. Mas voltando ao jet ski, eu passei uns longos 10 minutos ouvindo meu
chefe se vangloriar pelo assunto que acho o mais babaca do mundo, jet ski.
Quando saí da reunião pensei, bom, eu sou um dos jovens sorrindo ouvindo o
Roberto Justus cantar.
Quase duas décadas depois dos
realities shows, de certa forma nossas vidas se transformaram em um. Estamos
sempre julgando e sendo julgados. Acho que não passo dois ou três dias seguidos
sem avaliar alguém. Pode ser com uma nota de 0 a 10 ou com carinhas. Como foi
sua experiência? Como foi sua compra? Julgar enche o saco e nos impede de
pensar. Respondemos “como foi sua viagem?” sem ter ideia de como é a vida do
motorista. Julgar menos e pensar mais é o caminho. Ou deveria ser, mas de certa forma Justus
nos doutrinou. Os jovens metidos a empreendedores da década passada são os
adultos de hoje. E eles estão fazendo muita merda. A mulher que simulou a gravidez
para enganar os que passavam no aeroporto já era um prenúncio do que viveríamos uma
década depois. Não tinha como uma geração formada por admiradores do Roberto Justus dar certo, afinal.
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