quarta-feira, 25 de setembro de 2019

O presidente merda



O presidente da República, Jair Bolsonaro, repetiu no discurso de abertura da Assembleia Geral das Nações Unidas a mesma tática que o consagrou no Brasil. Falou muita merda. Durante alguns minutos que pareceram uma eternidade, o presidente mostrou ao mundo a face do “novo” Brasil que ele representa: um país ignorante, prepotente, fanático religioso, que sente horror à ciência e ao conhecimento, paranoico e agressivo.
Bolsonaro deve à quantidade gigantesca de merdas que disse durante a vida a sua ascensão na política. Capitão fracassado afastado no Exército, tornou-se vereador e deputado falando merda. Sem nenhuma proposta relevante e com um mandato insignificante, representando um pequeno grupo de pessoas tão ignorantes e rancorosas quanto ele, encontrou em programas de subcelebridades como Superpop, Datena e CQC a chance de se apresentar a seu público. Sem ser especialista em nenhum assunto, era chamado por estes programas para debater os mais variados temas, cumprindo sempre o papel de ofender e xingar outros convidados.
Muitas pessoas são como Bolsonaro e, usando jargões publicitários, ele teve a chance de, enquanto a Lava Jato usava a grande mídia para mergulhar o país no punitivismo e na mediocridade, vender o produto que o público queria. Sua presença em programas em que se expunha como alguém racista, homofóbico e machista dava audiência e gerava polêmica. Pessoas medíocres adoram pessoas “polêmicas”, identificam-se com elas.
Num momento em que o país está mergulhado na merda, ninguém se adaptou melhor a esta era do que Bolsonaro. Ele é o verdadeiro espírito do tempo. O Brasil consagrou nas urnas no ano passado toda esta “brilhante” trajetória baseada em falar merda e não há razão agora para Bolsonaro mudar. Ele saiu de capitão fracassado a presidente tendo como única arma a facilidade com que fala merda. Aqueles que achavam que ele ia mudar depois da eleição, que ia se adaptar à solenidade do cargo, são analistas realmente muito ruins.
Como grande falador de merda que é, Bolsonaro atrai e se cerca de gente que fala merda. É como se houvesse um Sistema Merdal semelhante ao Sistema Solar, com Bolsonaro como grande Merda sendo rondado de Merdinhas. Poucas coisas são mais simbólicas deste governo do que o presidente falando sobre cocô, aliás. O ministro da educação segue seus passos, tentando falar o maior número possível de merdas e desrespeitar o maior número possível de pessoas para ganhar seu espaço. O ministro da Justiça usa a esposa para desrespeitar feministas e puxa o saco sempre que possível do chefe. O ministro da Fazenda acha legal ofender a esposa de outro presidente com jargões machistas e ri do assunto. O ministro do Meio-Ambiente, que tentou se eleger deputado tendo como proposta matar pessoas no campo, apoia o presidente quando este inventa dados para negar as queimadas na Amazônia. Todos eles acharam demais o discurso de Bolsonaro na ONU. Acham demais que ele tenha falado merda. O ministro da Justiça, que ficou em silêncio por dois dias quando uma criança foi assassinada no Rio de Janeiro, correu ao Twitter para elogiar a fala do presidente e sua luta contra o “comunismo” e contra o “ambientalismo radical”. O mundo pôde ontem conhecer um pouco mais do que está acontecendo no Brasil. Digo um pouco mais porque o presidente até que “pegou leve” na Assembleia. Durante a campanha, por exemplo, ameaçou tirar o Brasil da ONU, disse que ia prender ou expulsar do país os opositores, ameaçou fechar o Supremo, entre outras coisas.
O Brasil tem diferentes períodos em sua história. Império, República do Café com Leite, Estado Novo, primeiro período democrático, Ditadura Militar e Nova República, resumindo, tendo esta última terminado em 2016 ou 2018, de acordo com a análise. O certo é que hoje vivemos a República da Merda. Uma nova era em que a ignorância é valorizada e premiada. Onde falar merda é visto como qualidade. Os ciclos no Brasil duram pelo menos 20 anos. Muita, mas muita merda vai vir ainda. Atualmente temos um Supremo de 6x5. Todas as ações da Lava Jato que envolvem Lula são vencidas pela operação por 6x5, todas as que não envolvem o ex-presidente terminam com 6x5 contra a operação. Em 2021, dois dos ministros que votam sempre contra a Lava Jato sairão, sendo substituídos por nomes de confiança de Bolsonaro. A merda está apenas começando.

sexta-feira, 13 de setembro de 2019

Silêncio, culpa e autocrítica



Era uma reunião de família numa cidade do interior e diversas pessoas cercavam o tio mais velho, que contava histórias sobre a vida. Num determinado momento, este tio começou a caçoar de um gari que tinha visto no dia anterior, pelo simples motivo de que este usava um celular. Ele achava uma coisa ridícula um gari usar um celular. Boa parte das pessoas que participaram da reunião familiar riu da história. Eu fiquei em silêncio. O silêncio no decorrer dos anos me torna cúmplice dos crimes e da situação em que chegamos atualmente.
Foram diversas as vezes em que fiquei em silêncio. Diversas vezes em que presenciei casos de racismo, machismo e outros tipos de preconceito e fiquei em silêncio. Certa vez, no ambiente de trabalho, cancelamos a distribuição de uma revista já impressa por causa de uma propaganda com possível interpretação racista. O diretor de publicidade foi voto vencido neste cancelamento e, durante a reunião, fez inúmeros comentários racistas. A sala inteira, eu incluso, ficou em silêncio.
Por anos arrumei motivos para justificar meu silêncio. Não podia mandar meu tio mais velho tomar no cu. Não podia mandar um diretor tomar no cu. E assim fui passando os anos vivendo uma vida covarde. Assisti em silêncio mulheres sendo demitidas após a volta da licença maternidade, falando no máximo com o meu colega do lado algo como “a empresa é foda, né?”.
Passei anos assistindo, silenciando e normalizando o mundo de merda que nos cerca. Não pensava na razão do meu local de trabalho só ter basicamente pessoas brancas, enquanto apenas nas funções de limpeza havia funcionários negros. Não refletia sobre o fato de que todos os bares e restaurantes em que eu ia eram compostos basicamente por pessoas brancas sendo atendidas por pessoas negras. É muito cômodo e “fácil” normalizar opressões quando se é homem, branco e hétero. Todo o discurso de meritocracia é formado para agradar pessoas como eu. Na minha faculdade, repleta de pessoas como eu, numa turma de 90 pessoas, havia um negro vindo de escola pública. Ele era suficiente para meus colegas justificarem a opinião contra as cotas. Ele era a prova que dava. Eu ficava em silêncio ouvindo estas opiniões.
Há um assunto em que em boa parte da minha juventude eu contribui com algo pior do que o silêncio. Foram diversas as vezes em que cometi homofobia. Passei a adolescência, a escola e boa parte da vida adulta chamando pessoas de “veado”. Enchia o saco dos meus amigos são-paulinos com isto. Fiz parte do gigantesco grupo de pessoas que basicamente destruiu a carreira do jogador Rycharlisson, por exemplo. Fazia piadas na escola com qualquer colega que “desmunhecasse”, principalmente para provar minha masculinidade para os outros colegas que eram tão babacas e imbecis quanto eu. No trabalho, um colega gay de uma área próxima não gostava da gente, soubemos que ele reclamava de nós. Ficamos putos com ele na época. Não podemos fazer piada com nada? Homens brancos, héteros e de classe média adoram fazer piadas. Gostamos de rir de tudo. É bem difícil ver que não temos graça nenhuma.
O silêncio é um crime. Lembro-me de uma situação que envolve a recusa ao silêncio com uma pessoa que hoje muito admiro. Eu era adolescente e conhecia uma garota chamada Isadora, que era amiga comum de uma outra amiga. Íamos juntos com esta amiga até o metrô e ela me convidou para um almoço de aniversário na casa dela. Eu fui, conversei com as pessoas e, em algum momento, fiz uma piada homofóbica sobre o professor de história. Todos riram, menos Isadora. Ela fechou a cara e me chamou de escroto. Deu-me uma escovada na frente de todos. De lá pra frente, Isadora male mal me cumprimentava na escola. Isadora estava certa. Não faço a menor ideia de onde ela está, mas hoje vejo aquele momento como uma chance não aproveitada de deixar de ser uma pessoa de merda. Demorei, mas aprendi a lição.
Uma parte difícil de ver esta gigantesca onda de imbecilidade que tomou conta do Brasil é de certa forma enxergar o meu passado nela. Eu era uma pessoa que dizia que tudo era mimimi. Aliás, se você conhece uma pessoa que usa o termo mimimi, afaste-se dela o mais breve possível. Cem por cento das pessoas que usam este termo são imbecis. Não há exceção. Eu era muito imbecil, e tenho vergonha disso.
É necessário quebrar o silêncio. E isto significa romper amizades. Ser homem branco, hétero e idiota significa que por muito tempo me cerquei de pessoas brancas, héteros e idiotas. Meu passado é repleto de pessoas assim e boa parte segue do mesmo jeito. Durante a eleição, um ex-amigo veio defender a tortura. Mandei-o tomar no cu. Um outro optou por votar nulo contra o fascismo, porque o governo do PT traria inflação. Não há espaço mais na minha vida para pessoas que igualam fascismo e inflação. A eleição do ano passado era entre civilização e barbárie. Não há espaço para quem não escolheu a civilização. Mas é importante ter em mente que em boa parte da minha vida fiz parte da barbárie. E achava isto engraçado.
Acordar e gritar agora não me isenta das culpas pelo meu comportamento e pelo meu silêncio no passado. Beneficiei-me e sigo me beneficiando de todas as injustiças que finalmente enxergo e denuncio. Mas é importante que eu tenha sempre em mente que sou também culpado por este Brasil de merda em que vivemos atualmente. Seja por preconceito ou por covardia. Isadora é a demonstração de que eu não precisava ficar em silêncio. Isadora é o exemplo. Se eu tenho algum mérito, é por ter mudado. Mas isto não é o suficiente para a redenção. Ela só virá com atitudes. E a primeira é romper com o silêncio.

terça-feira, 3 de setembro de 2019

DESBABAQUIZAÇÃO


Há alguns dias tivemos pela primeira vez no Brasil uma partida de futebol sendo interrompida por conta de gritos homofóbicos da torcida. É um marco na nossa história futebolística, assim como no dia em que o Clube de Regatas Vasco da Gama se recusou a participar do campeonato carioca em prol dos jogadores negros da sua equipe. Nos anos 20 do século passado os maiores clubes do Rio de Janeiro tentaram algumas manobras para excluir jogadores negros da disputa. Enquanto alguns clubes acataram, o Vasco se rebelou e desistiu da disputa do certame, o que decorreu no recuo dos grandes clubes e na mais bela página escrita na história do clube cruz maltino: a luta contra o racismo no futebol.

Quis o destino que o clube de São Januário fosse o protagonista de mais um grito anti preconceito, só que dessa vez de uma forma passiva. O árbitro Anderson Daronco interrompeu a partida por conta da torcida vascaína que se referia ao São Paulo como "time de viado". O juiz se dirigiu ao treinador Vanderlei Luxemburgo e disse que o jogo não seria reiniciado naquelas condições, o que ocasionou o pedido de treinador e jogadores à torcida para que parassem de cometer o crime de homofobia.

O torcedor de futebol finalmente tem a chance de deixar de ser babaca. No Brasil as coisas funcionam assim mesmo, o medo da punição é a melhor ferramenta de diálogo entre uma sociedade reacionária e comportamentos civilizados. O fim da escravidão veio por medo da punição inglesa, o racismo precisou ser tipificado como crime para deixar de ser praticado livremente, o cinto de segurança só deixou de ser objeto decorativo dos veículos apenas quando a multa passou a existir, assim como fumar em ambientes fechados não foi uma prática abolida através de conscientização coletiva. Agora, através da punição ao clube de coração, os torcedores têm a chance de esquecer a babaquice de ser homofóbico e deixar que essa atitude tão comum seja extinta pelo desuso.

É raro para quem escreve algum texto falar com conhecimento de causa. Em geral lemos muito sobre determinado assunto, ouvimos especialistas e damos a nossa opinião sobre um certo ponto. No caso de desbabaquização eu tenho experiência empírica.
Não vou considerar o período adolescente, que é uma fase de amadurecimento das ideias e conhecimento do certo e do errado. É um tempo em que podemos, e quase sempre somos, babacas. Se Rousseau dizia que o homem nasce bom e a sociedade o corrompe, no Brasil o homem nasce bom e o machismo o torna homofóbico. Fui homofóbico por muito tempo. O medo que o homem tem de ser confundido com gay é maior que o de ser confundido com um bandido. O discurso de vários pais, inclusive os presidenciais, de que preferem um filho morto a um filho gay é o tipo de pensamento que baseia diversos espancamentos paternos pelo país.

Deixei de ser o babaca homofóbico. Nunca agredi nenhum gay na rua, mas é nessa afirmação que se escondem a maioria dos homofóbicos. Ser homofóbico não é apenas agredir fisicamente. Ser intolerante é fazer piada, é utilizar característica imutável como xingamento, é tratar diferencialmente pessoas que não têm a mesma orientação sexual, é não querer aparecer em público com uma pessoa gay com medo de que pensem que você é gay. Enfim, há inúmeras formas de ser homofóbico sem que seja pegar uma lâmpada fluorescente e agredir pedestres na avenida Paulista.

Uma boa forma de desbabaquizar é sempre substituir a sua atitude perante aos gays por uma situação racial. Se você vai ao estádio e chama o goleiro adversário de "bicha" a cada tiro de meta, experimente pensar em gritar "macaco". Pareceu racista? Pois é.

Se você não vai convidar aquele primo para o seu aniversário porque ele é gay e você não quer quer ser visto perto dele, tente substituir o primo gay pelo primo preto. Pareceu racista? É porque é.

Desbabaquizar é uma mudança de comportamento, assim como deixar de ser racista. Até hoje existem milhões de pessoas que acham super normal fazer brincadeiras raciais com os velhos amigos negros. Quando eu era babaca cansei de fazer. Lembre-se: utilizar como brincadeira com seus amigos frases como "tinha que ser o neguinho" ou "também, olha a cor" reforça culturalmente as características negativas atribuídas às pessoas negras. Você repete essas falas hoje justamente porque as ouviu durante toda a vida. Caso esse comportamento tivesse sido extinto junto com a escravidão, você não conheceria frases do tipo "preto quando não caga na entrada, caga na saída".

A mudança de comportamento que está sendo proposta para o futebol hoje pretende evitar que crianças que acompanham seus pais aos estádios atribuam conotação negativa à condição homossexual. Eu parei, antes mesmo de virar crime, de utilizar como xingamento as palavras gay, bicha, viado, boiola, baitola, entre outras. Há alguns anos eu não me refiro aos são paulinos com essas palavras. Prefiro caçoar da falta de títulos ou da freguesia em clássicos. Parei para pensar que gritar "ó tricolor, time de viado" é tão ofensivo quanto "ó tricolor, time de neguinho". É com a equiparação, na nossa cabeça, da homofobia ao racismo que conseguimos progredir na desbabaquização, mas isso só funciona se você já evoluiu no entendimento sobre racismo. Se você é como a atriz Regina Duarte que pensa que o seu pai apenas brincava ao afirmar que "lugar de negro é na cozinha", essa estratégia não funcionará com você. Nesse caso você já está morto por dentro.


Caso o racismo não te incomode, pegue qualquer característica sua. Imagine-se no estádio assistindo ao jogo do seu time e a sua própria torcida entoa o grito que te atinge lá no âmago da sua alma. Essa é a sensação que qualquer gay sente quando você se levanta da sua cadeira e vocifera a sua homofobia travestida de tradição.

O comportamento intolerante permeia todos os poros desse esporte. Os jogadores gays são impedidos de revelar a sua verdadeira orientação por medo da reação da torcida. Embora o companheiros, treinadores e dirigentes saibam quem são os colegas de trabalho que sofrem esse abuso psicológico, é impossível imaginar como um jogador faria para assumir sua orientação. Se o torcedor homossexual pode evitar a arquibancada e sofrer em casa, o jogador não pode evitar o gramado, não pode evitar o seu trabalho.

Richarlyson foi jogador do São Paulo entre 2005 e 2010. Foi campeão brasileiro por três vezes, campeão da Libertadores e campeão mundial. Em 2017 Ricky desembarcou em Campinas para assinar com o Guarani, time que estava na série B do Campeonato Brasileiro e do Paulistão. Em qualquer cenário essa contratação seria motivo de festa, exceto pelo fato de que Ricky era apontado como gay. Mesmo sem nunca ter se assumido, e até mesmo tendo negado esse fato, o jogador foi perseguido por toda a carreira. Os torcedores do Guarani fizeram protestos com bombas contra a chegada de Richarlyson.

A torcida do São Paulo não gritava o nome de Richarlyson no Morumbi. O São Paulo não merece ser chamado de time de viado. O clube deve ser chamado, como todos os outros, de time de babacas.