sexta-feira, 13 de setembro de 2019

Silêncio, culpa e autocrítica



Era uma reunião de família numa cidade do interior e diversas pessoas cercavam o tio mais velho, que contava histórias sobre a vida. Num determinado momento, este tio começou a caçoar de um gari que tinha visto no dia anterior, pelo simples motivo de que este usava um celular. Ele achava uma coisa ridícula um gari usar um celular. Boa parte das pessoas que participaram da reunião familiar riu da história. Eu fiquei em silêncio. O silêncio no decorrer dos anos me torna cúmplice dos crimes e da situação em que chegamos atualmente.
Foram diversas as vezes em que fiquei em silêncio. Diversas vezes em que presenciei casos de racismo, machismo e outros tipos de preconceito e fiquei em silêncio. Certa vez, no ambiente de trabalho, cancelamos a distribuição de uma revista já impressa por causa de uma propaganda com possível interpretação racista. O diretor de publicidade foi voto vencido neste cancelamento e, durante a reunião, fez inúmeros comentários racistas. A sala inteira, eu incluso, ficou em silêncio.
Por anos arrumei motivos para justificar meu silêncio. Não podia mandar meu tio mais velho tomar no cu. Não podia mandar um diretor tomar no cu. E assim fui passando os anos vivendo uma vida covarde. Assisti em silêncio mulheres sendo demitidas após a volta da licença maternidade, falando no máximo com o meu colega do lado algo como “a empresa é foda, né?”.
Passei anos assistindo, silenciando e normalizando o mundo de merda que nos cerca. Não pensava na razão do meu local de trabalho só ter basicamente pessoas brancas, enquanto apenas nas funções de limpeza havia funcionários negros. Não refletia sobre o fato de que todos os bares e restaurantes em que eu ia eram compostos basicamente por pessoas brancas sendo atendidas por pessoas negras. É muito cômodo e “fácil” normalizar opressões quando se é homem, branco e hétero. Todo o discurso de meritocracia é formado para agradar pessoas como eu. Na minha faculdade, repleta de pessoas como eu, numa turma de 90 pessoas, havia um negro vindo de escola pública. Ele era suficiente para meus colegas justificarem a opinião contra as cotas. Ele era a prova que dava. Eu ficava em silêncio ouvindo estas opiniões.
Há um assunto em que em boa parte da minha juventude eu contribui com algo pior do que o silêncio. Foram diversas as vezes em que cometi homofobia. Passei a adolescência, a escola e boa parte da vida adulta chamando pessoas de “veado”. Enchia o saco dos meus amigos são-paulinos com isto. Fiz parte do gigantesco grupo de pessoas que basicamente destruiu a carreira do jogador Rycharlisson, por exemplo. Fazia piadas na escola com qualquer colega que “desmunhecasse”, principalmente para provar minha masculinidade para os outros colegas que eram tão babacas e imbecis quanto eu. No trabalho, um colega gay de uma área próxima não gostava da gente, soubemos que ele reclamava de nós. Ficamos putos com ele na época. Não podemos fazer piada com nada? Homens brancos, héteros e de classe média adoram fazer piadas. Gostamos de rir de tudo. É bem difícil ver que não temos graça nenhuma.
O silêncio é um crime. Lembro-me de uma situação que envolve a recusa ao silêncio com uma pessoa que hoje muito admiro. Eu era adolescente e conhecia uma garota chamada Isadora, que era amiga comum de uma outra amiga. Íamos juntos com esta amiga até o metrô e ela me convidou para um almoço de aniversário na casa dela. Eu fui, conversei com as pessoas e, em algum momento, fiz uma piada homofóbica sobre o professor de história. Todos riram, menos Isadora. Ela fechou a cara e me chamou de escroto. Deu-me uma escovada na frente de todos. De lá pra frente, Isadora male mal me cumprimentava na escola. Isadora estava certa. Não faço a menor ideia de onde ela está, mas hoje vejo aquele momento como uma chance não aproveitada de deixar de ser uma pessoa de merda. Demorei, mas aprendi a lição.
Uma parte difícil de ver esta gigantesca onda de imbecilidade que tomou conta do Brasil é de certa forma enxergar o meu passado nela. Eu era uma pessoa que dizia que tudo era mimimi. Aliás, se você conhece uma pessoa que usa o termo mimimi, afaste-se dela o mais breve possível. Cem por cento das pessoas que usam este termo são imbecis. Não há exceção. Eu era muito imbecil, e tenho vergonha disso.
É necessário quebrar o silêncio. E isto significa romper amizades. Ser homem branco, hétero e idiota significa que por muito tempo me cerquei de pessoas brancas, héteros e idiotas. Meu passado é repleto de pessoas assim e boa parte segue do mesmo jeito. Durante a eleição, um ex-amigo veio defender a tortura. Mandei-o tomar no cu. Um outro optou por votar nulo contra o fascismo, porque o governo do PT traria inflação. Não há espaço mais na minha vida para pessoas que igualam fascismo e inflação. A eleição do ano passado era entre civilização e barbárie. Não há espaço para quem não escolheu a civilização. Mas é importante ter em mente que em boa parte da minha vida fiz parte da barbárie. E achava isto engraçado.
Acordar e gritar agora não me isenta das culpas pelo meu comportamento e pelo meu silêncio no passado. Beneficiei-me e sigo me beneficiando de todas as injustiças que finalmente enxergo e denuncio. Mas é importante que eu tenha sempre em mente que sou também culpado por este Brasil de merda em que vivemos atualmente. Seja por preconceito ou por covardia. Isadora é a demonstração de que eu não precisava ficar em silêncio. Isadora é o exemplo. Se eu tenho algum mérito, é por ter mudado. Mas isto não é o suficiente para a redenção. Ela só virá com atitudes. E a primeira é romper com o silêncio.

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