terça-feira, 3 de setembro de 2019

DESBABAQUIZAÇÃO


Há alguns dias tivemos pela primeira vez no Brasil uma partida de futebol sendo interrompida por conta de gritos homofóbicos da torcida. É um marco na nossa história futebolística, assim como no dia em que o Clube de Regatas Vasco da Gama se recusou a participar do campeonato carioca em prol dos jogadores negros da sua equipe. Nos anos 20 do século passado os maiores clubes do Rio de Janeiro tentaram algumas manobras para excluir jogadores negros da disputa. Enquanto alguns clubes acataram, o Vasco se rebelou e desistiu da disputa do certame, o que decorreu no recuo dos grandes clubes e na mais bela página escrita na história do clube cruz maltino: a luta contra o racismo no futebol.

Quis o destino que o clube de São Januário fosse o protagonista de mais um grito anti preconceito, só que dessa vez de uma forma passiva. O árbitro Anderson Daronco interrompeu a partida por conta da torcida vascaína que se referia ao São Paulo como "time de viado". O juiz se dirigiu ao treinador Vanderlei Luxemburgo e disse que o jogo não seria reiniciado naquelas condições, o que ocasionou o pedido de treinador e jogadores à torcida para que parassem de cometer o crime de homofobia.

O torcedor de futebol finalmente tem a chance de deixar de ser babaca. No Brasil as coisas funcionam assim mesmo, o medo da punição é a melhor ferramenta de diálogo entre uma sociedade reacionária e comportamentos civilizados. O fim da escravidão veio por medo da punição inglesa, o racismo precisou ser tipificado como crime para deixar de ser praticado livremente, o cinto de segurança só deixou de ser objeto decorativo dos veículos apenas quando a multa passou a existir, assim como fumar em ambientes fechados não foi uma prática abolida através de conscientização coletiva. Agora, através da punição ao clube de coração, os torcedores têm a chance de esquecer a babaquice de ser homofóbico e deixar que essa atitude tão comum seja extinta pelo desuso.

É raro para quem escreve algum texto falar com conhecimento de causa. Em geral lemos muito sobre determinado assunto, ouvimos especialistas e damos a nossa opinião sobre um certo ponto. No caso de desbabaquização eu tenho experiência empírica.
Não vou considerar o período adolescente, que é uma fase de amadurecimento das ideias e conhecimento do certo e do errado. É um tempo em que podemos, e quase sempre somos, babacas. Se Rousseau dizia que o homem nasce bom e a sociedade o corrompe, no Brasil o homem nasce bom e o machismo o torna homofóbico. Fui homofóbico por muito tempo. O medo que o homem tem de ser confundido com gay é maior que o de ser confundido com um bandido. O discurso de vários pais, inclusive os presidenciais, de que preferem um filho morto a um filho gay é o tipo de pensamento que baseia diversos espancamentos paternos pelo país.

Deixei de ser o babaca homofóbico. Nunca agredi nenhum gay na rua, mas é nessa afirmação que se escondem a maioria dos homofóbicos. Ser homofóbico não é apenas agredir fisicamente. Ser intolerante é fazer piada, é utilizar característica imutável como xingamento, é tratar diferencialmente pessoas que não têm a mesma orientação sexual, é não querer aparecer em público com uma pessoa gay com medo de que pensem que você é gay. Enfim, há inúmeras formas de ser homofóbico sem que seja pegar uma lâmpada fluorescente e agredir pedestres na avenida Paulista.

Uma boa forma de desbabaquizar é sempre substituir a sua atitude perante aos gays por uma situação racial. Se você vai ao estádio e chama o goleiro adversário de "bicha" a cada tiro de meta, experimente pensar em gritar "macaco". Pareceu racista? Pois é.

Se você não vai convidar aquele primo para o seu aniversário porque ele é gay e você não quer quer ser visto perto dele, tente substituir o primo gay pelo primo preto. Pareceu racista? É porque é.

Desbabaquizar é uma mudança de comportamento, assim como deixar de ser racista. Até hoje existem milhões de pessoas que acham super normal fazer brincadeiras raciais com os velhos amigos negros. Quando eu era babaca cansei de fazer. Lembre-se: utilizar como brincadeira com seus amigos frases como "tinha que ser o neguinho" ou "também, olha a cor" reforça culturalmente as características negativas atribuídas às pessoas negras. Você repete essas falas hoje justamente porque as ouviu durante toda a vida. Caso esse comportamento tivesse sido extinto junto com a escravidão, você não conheceria frases do tipo "preto quando não caga na entrada, caga na saída".

A mudança de comportamento que está sendo proposta para o futebol hoje pretende evitar que crianças que acompanham seus pais aos estádios atribuam conotação negativa à condição homossexual. Eu parei, antes mesmo de virar crime, de utilizar como xingamento as palavras gay, bicha, viado, boiola, baitola, entre outras. Há alguns anos eu não me refiro aos são paulinos com essas palavras. Prefiro caçoar da falta de títulos ou da freguesia em clássicos. Parei para pensar que gritar "ó tricolor, time de viado" é tão ofensivo quanto "ó tricolor, time de neguinho". É com a equiparação, na nossa cabeça, da homofobia ao racismo que conseguimos progredir na desbabaquização, mas isso só funciona se você já evoluiu no entendimento sobre racismo. Se você é como a atriz Regina Duarte que pensa que o seu pai apenas brincava ao afirmar que "lugar de negro é na cozinha", essa estratégia não funcionará com você. Nesse caso você já está morto por dentro.


Caso o racismo não te incomode, pegue qualquer característica sua. Imagine-se no estádio assistindo ao jogo do seu time e a sua própria torcida entoa o grito que te atinge lá no âmago da sua alma. Essa é a sensação que qualquer gay sente quando você se levanta da sua cadeira e vocifera a sua homofobia travestida de tradição.

O comportamento intolerante permeia todos os poros desse esporte. Os jogadores gays são impedidos de revelar a sua verdadeira orientação por medo da reação da torcida. Embora o companheiros, treinadores e dirigentes saibam quem são os colegas de trabalho que sofrem esse abuso psicológico, é impossível imaginar como um jogador faria para assumir sua orientação. Se o torcedor homossexual pode evitar a arquibancada e sofrer em casa, o jogador não pode evitar o gramado, não pode evitar o seu trabalho.

Richarlyson foi jogador do São Paulo entre 2005 e 2010. Foi campeão brasileiro por três vezes, campeão da Libertadores e campeão mundial. Em 2017 Ricky desembarcou em Campinas para assinar com o Guarani, time que estava na série B do Campeonato Brasileiro e do Paulistão. Em qualquer cenário essa contratação seria motivo de festa, exceto pelo fato de que Ricky era apontado como gay. Mesmo sem nunca ter se assumido, e até mesmo tendo negado esse fato, o jogador foi perseguido por toda a carreira. Os torcedores do Guarani fizeram protestos com bombas contra a chegada de Richarlyson.

A torcida do São Paulo não gritava o nome de Richarlyson no Morumbi. O São Paulo não merece ser chamado de time de viado. O clube deve ser chamado, como todos os outros, de time de babacas.

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