domingo, 15 de dezembro de 2019

A Faria Lima e a vida de merda




A literatura é repleta de obras que conseguem de maneira perfeita refletir a imagem de uma determinada época. São obras que eu costumo dizer que se tornaram verdadeiros documentos. Minha Vida de Menina de Helena Morley (pseudônimo de Alice Dayrell Caldeira Brant) é uma desta obras. O livro é tão bom que às vezes até dá vontade de chorar por saber que algo assim existe. A autora tinha entre 13 e 15 anos quando escreveu este diário que, mais do que falar sobre a própria vida, consegue ser um retrato do Brasil do final do séc. XIX. A decadência das cidades mineiras, o racismo, a situação dos negros no momento pós-abolição, a falta de valor dado ao trabalho manual (a forma como sua família acredita que trabalhar é algo feio, ao mesmo tempo que um conhecido que mora numa cidade maior diz que por lá é o inverso), a religiosidade, está tudo lá, contado de uma forma ao mesmo tempo rica e inocente, sem arranjos mais intelectualizados e rimas ricas, numa linguagem completamente acessível. Uma criança questionando a realidade dura construída pelos adultos e à qual ela também estaria presa pelo resto da vida. O cinema brasileiro também consegue fazer isto às vezes. Dois Filhos de Francisco usa a história da dupla Zezé di Camargo e Luciano como mote para contar algo geral, a história de milhões de brasileiros que realizaram o êxodo rural nos anos 1950 e 1960. A cena dos Camargo chegando na grande capital e indo morar num barraco sem nenhuma condição, mas ao mesmo tempo fascinados com a eletricidade e brincando de acender e apagar a luz é de um simbolismo profundo. Assim como a famosa cena da piscina da personagem de Regina Casé em Que Horas Ela Volta, ela consegue ter representação social. Se na primeira é a saída do campo para a cidade, na segunda é a libertação da empregada doméstica que naturalizava a opressão que sofria. Anos de histórias de multidões conseguem ser resumidos de forma sublime em poucos segundos.
Na nossa história, a arte que mais conseguiu ter estes momentos é a música. Desde Noel Rosa com Papo de Botequim e Adoniran Barbosa com Despejo na Favela e Saudosa Maloca, chegando a Racionais MCs nos anos 1990 e ao funk ostentação dos anos 2000 e 2010. Nenhum movimento cultural do Brasil deste século conseguiu ser tão representativo quanto o funk ostentação. Suas músicas são verdadeiros documentos. Todas as coisas boas e ruins do governo Lula estão lá. As pessoas felizes porque estão podendo consumir. Mas felizes só por isso. Vida Loka de MC Rodolfinho é sem dúvida a música da década.
Nesta última semana tivemos uma reportagem que consegue de forma incrível criar este tipo de documento. A reportagem da revista Veja sobre os “Faria Limers” deveria ser leitura obrigatória em escolas e universidades. Está tudo lá. O Brasil que criou Bolsonaro, a elie desconectada da realidade, a bolha, a desigualdade, a alienação, o stress, a infelicidade, o alcoolismo, as tentativas de fuga, o machismo, a homofobia, tudo está lá.
O empresário cristão que votou em Bolsonaro “por causa de Paulo Guedes”. Preconceito, autoritarismo e violência travestidos de uma suposta racionalidade econômica. O investidor da bolsa que se orgulha de trabalhar 20 horas e de ter insônia porque só pensa em trabalho e não tem tempo para a esposa. A mulher homossexual que teve que se adaptar ao ambiente homofóbico para prosseguir e que não vê nada de errado nisso, aceitando o papel de oprimida aceita que se torna argumento do opressor. A falta de negros nos ambientes de trabalho tratada com naturalidade. Os ambientes “descolados” e caros, frequentados por pessoas “diferenciadas”. As táticas de Google e Facebook para destruir qualquer possibilidade de vida pessoal de seus funcionários, presos a um ambiente de trabalho “divertido”, em que não receber tíquete é visto como algo bom e em que alimentos são levados até os funcionários para que eles não tenham que sair do local de trabalho mesmo na hora do almoço. A prisão moderna e voluntária. A empresária que diz que “dinheiro é liberdade”, ao mesmo tempo em que não enxerga que está totalmente presa a um estilo de vida vazio graças a este pensamento. A outra empresária que teve que pedir a um estagiário que apresentasse seu trabalho, pois os homens com que trabalha não estavam dispostos a ouvi-la. E com a mesma justificativa da homossexual vítima de homofobia, de que o caminho é a adaptação e não a contestação. Os escapismos. A infelicidade com o trabalho e a tentativa de encaixar outras atividades para não ter que pensar no assunto. A academia, a ioga, a bebedeira nos happy hours ou as viagens milionárias para qualquer lugar longe durante as férias. Tudo isto sem esquecer o trabalho, se der para aproveitar estes momentos para fazer um “contato”, melhor. Não há mais vida pessoal desligada da profissional, todos os conhecimentos e decisões são pensadas tendo um foco profissional, o conceito de amizade perdendo espaço para a ideia de que contato. Um simples passeio passa a ter como foco “fazer contatos”. Tudo vale para se manter na vida de merda guiada por um estilo de vida dominado por um trabalho alienante e infeliz. A vida num escritório, na frente de um computador e de uma planilha de excell ou de uma apresentação de Power Point é a causa maior da infelicidade, mas é justificada pois é ela que gera o salário que permitirá o consumo de bens e serviços que visam a diminuir a infelicidade causada por este trabalho. A terapia, a academia de dois mil reais, a cerveja artesanal no bar descolado, a roupa cara que permite julgar e ser julgado. O trânsito de merda. Está tudo lá. Só faltou a história do grupo de empresários viciados em prostituição e fascinados com o “poder” da compra do sexo, mas aí já seria pesado demais.
As pessoas bem sucedidas e suas vidas de merda. Todo um ciclo criado para que estas pessoas enxerguem a vida de merda como algo normal ou sinônimo de sucesso. Todas as pessoas da matéria, ao mesmo tempo em que deixam claro que são estressadas, dormem pouco e são deprimidas, fazem o possível para fingir que não sabem disso e acham o estilo demais. E a reportagem deixa isto claro.
Ao contrário do que a maioria das pessoas da minha bolha pensam, eu não acho que os eleitores de Jair Bolsonaro estejam arrependidos de seus votos. Quase todos as pessoas que votaram em Bolsonaro têm vidas de merda. E coloquei este “quase” porque juro que não estou radical. São pessoas que em geral estão infelizes e querem que tudo se foda. Pessoas com vidas de merda se chocam ao ver outros que fogem do ciclo merdal. A principal promessa de Bolsonaro foi expandir a vida de merda. Fazer com que ela chegue ao maior número de pessoas possível. O Faria Limer pode até fingir que “votou em Paulo Guedes”. Mas adora ver a merda se espalhando. Bolsonaro está entregando o que prometeu. E o Faria Limer segue indo para a ioga na segunda, para o Outback na terça, para a academia na quarta, para o puteiro na quinta e enchendo a cara nas sextas de happy hour. Leia a matéria. Está tudo lá.       

quinta-feira, 12 de dezembro de 2019

O Ano 1




No dia 9/12 aconteceu no Congresso um evento chamado de “Faça Sempre a Coisa Certa”, tendo como principal estrela o ministro da Justiça Sérgio Moro. O evento foi um daqueles grandes nadas que pessoas poderosas realizam às vezes para preencher o tempo e fazer propaganda pessoal. Completamente irrelevante. Mesmo assim, o tal evento mereceu uma reportagem de mais de dez minutos no Jornal Nacional. As falas de Moro eram sempre precedidas das de um jornalista de voz grossa e confiável, que explicava o que você deveria entender da fala do ministro. “Moro voltou a criticar o Supremo pela decisão de rever a possibilidade de prisão em segunda instância, que segundo o ministro aumenta a possibilidade de impunidade”, para em seguida vir Moro e dizer basicamente a mesma coisa. Nenhuma pessoa do Supremo com opinião distinta apareceu para apresentar um contraponto e rebater o ministro. A opinião era dada como verdade absoluta. Na mesma semana em que Moro ganhou dez minutos de exposição num evento que não significa nada, o ministro tentou utilizar seu cargo para impedir a perda de mandato de uma senadora próxima a ele, a “Moro de saias” e posou para uma foto com um busto dele feito com balas feito pelo lobby da indústria das armas. As duas notícias tiveram espaço mínimo na mesma emissora que dedicou dez minutos ao evento que não significava nada.
A Lava Jato em seu projeto de poder soube muito bem utilizar a mídia. Utilizou três meios em três plataformas diferentes como cúmplices. A TV Globo na mídia televisiva, a revista Isto É na mídia impressa e o site O Antagonista na internet. A Globo e a Isto É eram usadas para vazamentos mais bombásticos e que exigissem reação imediata, enquanto O Antagonista era usado para as “notícias” mais circenses e menores, para a destruição do dia a dia e para manter os lavajatistas lunáticos entretidos. Foi na Globo que Moro vazou as já clássicas conversas telefônicas com Lula, sempre seguindo a lógica da voz grossa e masculina dizendo antes o que o espectador deveria entender do que veria. “Neste áudio, Dilma diz a Lula que entregará nomeação de ministério para protegê-lo de possível prisão”, disse a voz de Bonner enquanto uma versão do áudio fazia parecer isto. Neste ano, um documento da Vaza Jato mostrou que Moro havia editado aquele áudio, escondendo os momentos em que ficava provada que a tese não era verdadeira. O Jornal Nacional preferiu não noticiar este fato, assim como as demais revelações da Vaza Jato. Alegou-se que o material de Greenwald fora obtido por “meios irregulares”.
A Isto É é uma revista irrelevante. Ainda não fechou as portas graças a compras de publicidade do governo de SP. Não é à toa que o governador de SP, João Doria Jr., recebe todo ano o prêmio de “Brasileiro do Ano” da revista. Foi na Isto É que Moro vazou a delação premiada de Delcídio Amaral, às vésperas da maior manifestação pelo impeachment. Um fundo preto, a cara de Delcídio e uma manchete do tipo “Lula e Dilma sabiam de tudo”. Foi provavelmente uma das últimas vezes em que uma edição da Isto É deu lucro, com movimentos empresarias e de governos à época oposicionistas comprando edições para distribuição. Dois anos depois, a bombástica delação de Delcídio não seria aceita pela Justiça por falta de provas. Não houve nenhuma retratação da Isto É. Mas seria indiferente se houvesse, uma vez que ninguém mais lê a revista.
O Antagonista sim é relevante. O site se tornou uma espécie de “porto seguro” da extrema-direita. O radicalismo realmente confia neste site. Em entrevista à revista Piauí no meio do ano passado, o futuro vice-presidente Hamilton Mourão disse que era o único meio de imprensa em que confiava. O site se tornou uma espécie de porta-voz oficial de Moro na imprensa. A Vaza Jato liberou documentos que comprovam isto. Para negá-los, Moro soltou uma nota oficial no site do Antagonista. Se  aa função da Globo é cobrir os eventos insignificantes, cabe ao Antagonista fazer o trabalho sujo. Chamar Greenwald de Verdevaldo, convocar campanhas de ameaças ao Supremo, humilhar Lula, soltar ameaças disfarçadas de notícia. Foi através deste site que Moro espalhou boatos de prisão contra o jornalista que o acusava. O principal acionista do Antagonista é a Empiricus, grupo de investimento que alcançou fama neste ano com a infame propaganda de Betina. Trata-se de um dos muitos grupos que se especializam na realização de pirâmides no sistema financeiro brasileiro, algo que dará muita merda num futuro não tão distante. Uma das principais denúncias da Vaza Jato é que Moro e Dallagnol utilizavam empresas de fachada de palestras, comandadas por suas esposas (ou “conjes”) para lavar dinheiro e ameaçar denunciados. Empresas que topassem financiar palestras dos dois e de outros membros da Lava Jato seriam poupadas nas acusações. O setor bancário é o maior cliente das palestras dos dois. Foi poupado da Lava Jato, mesmo que seja impossível imaginar que todo o dinheiro envolvido na corrupção circularia sem a participação destas instituições.
Moro chegou ao governo aclamado. Menos de uma semana antes da eleição foi anunciado como ministro da Justiça. Paulo Guedes e Hamilton Mourão já disseram publicamente que o convite a Moro já havia sido realizado antes do processo eleitoral, ficando claro que Moro já sabia que ganharia um emprego de Bolsonaro quando liberou informações sigilosas que comprometiam a candidatura de seu rival, Fernando Haddad. Alguns meses depois, os processos liberados contra Haddad foram arquivados por falta de prova. Moro foi tratado como especialista no assunto Justiça e Segurança Pública, mesmo que não tenha nenhuma contribuição realmente relevante ao assunto.
Sua primeira medida como ministro foi assinar o decreto das armas, cujo objetivo era facilitar a posse de armas. Seu comprometimento com a causa bélica levou o lobby das armas a presenteá-lo com a “bela” homenagem nesta semana. Ainda no começo do governo, Moro apresentou o “Pacote Anticrime”, a mais clara tentativa de legitimação de práticas fascistas apresentada neste governo. O Pacote de Moro previa, entre outras coisas, a liberação da violência policial, garantindo a impunidade ao policial que cometesse abusos e alegasse “forte emoção”, o tal do excludente de ilicitude, o quase fim das restrições ao uso de prisões preventivas e do habeas corpus. Nem a ditadura foi tão longe. O Congresso conseguiu barrar os maiores absurdos, mas Moro não vai desistir. Conta com os amigos da imprensa para isto. Moro é também o “cão de guarda” de Bolsonaro. Aparelhou a PF de forma a ameaçar inimigos do presidente. Uma semana depois da briga do presidente com seu ex-partido, a PF invadiu a casa do presidente do PSL numa investigação sobre candidatos laranjas. Também ameaçou publicamente o porteiro que teria falado com Bolsonaro no dia da morte de Marielle Franco e tenta federalizar a investigação para proteger membros da família do presidente, que aparentemente podem estar envolvidos no crime.
Moro subiu na vida explorando o ódio a Lula e aos políticos. Ninguém se importou muito quando Moro e sua turma destruíram o devido processo legal no “combate à corrupção”. Afinal, é “normal” que o juiz converse foram dos autos com o promotor. Se usou Lula e os políticos para o primeiro passo, tenta usar o Supremo para o segundo. A prisão em Segunda Instância é tão importante porque permite que Moro e o baixo clero do Judiciário condenem sem passar pelo crivo do Supremo. Eles têm o poder de mandar prender e soltar. Inventaram alguns slogans para defender este tema, como “a segunda instância garante a impunidade” ou “a segunda instância é um privilégio”. Não importa que dados comprovem exatamente o contrário. A maior parte das pessoas que têm penas revistas em última instância é pobre e a maior parte dos recursos que chegam ao Supremo vem da Defensoria Pública. Estas pessoas são a maioria. Mas não há dado que sobreviva a um bom slogan e a uma mídia comprometida. Simplesmente não há apresentação de dados quando o assunto é este. O que há é Moro repetindo falsos sensos comuns. Não há espaço para opinião daqueles que são contra a prisão em Segunda Instância, que são tratados como demônios. Gilmar Mendes, principal voz do nosso judiciário atual quando o assunto é humanização da lei, é tratado como vilão por ser a figura que solta pessoas. Justiça passou a ser vista como punição e liberdade como impunidade. Não há uma semana em que Moro não faça alguma acusação ao Supremo. Neste ano, inclusive, o ministro inflou e elogiou manifestações que pediam seu fechamento.
Moro é inimigo das regras e do estado democrático de direito porque ele o atrapalha. Numa das conversas da Vaza Jato, Dallagnol propõe a criação de um monumento à Lava Jato em que uma figura masculina representando a justiça derruba dois pilares representando Executivo e Legislativo. O único que ficaria de pé é o Judiciário. Mas Moro quer derrubar o Judiciário também.
O segredo está nos detalhes. Nenhuma pessoa soube usar tão bem os moralismos para ambição pessoal como Moro. A Lei da Ficha Limpa veio assim. A população entrou de cabeça no projeto que deu ao baixo clero do Judiciário o direito de decidir quem pode ou não concorrer numa eleição. A delação premiada a mesma coisa. A sociedade aplaudiu quando este mesmo baixo clero ganhou um instrumento de tortura que garantiu veracidade a roteiros já pré-estabelecidos e a condenações já decididas antes da existência de um processo. Este, aliás, tornou-se um mero detalhe, uma burocracia. No projeto anticrime aprovado, mesmo que sem os maiores absurdos propostos por Moro, há um item preocupante. Não há mais possibilidade de recursos em liberdade para pessoas presas por crimes hediondos. Não há como ser contra isto, não é? Pois bem, é fato que o próximo passo do ministro será a qualificação de corrupção como crime hediondo.
Moro é o maior risco à nossa democracia. É mais perigoso do que Bolsonaro. Toda sua ascensão se fez à base da destruição do estado democrático de direito. Moro legitimou na justiça a ideia de ausência de direito pleno à defesa e de imparcialidade do juiz. “Não falo com condenados”, disse ele numa entrevista mesmo tendo uma profissão, juiz, que basicamente o obriga a falar com condenados. Sim, um juiz deve ouvir de forma imparcial também o condenado. Transformou a delação premiada em instrumento de tortura. Todo o seu primeiro ano no ministério repetiu no governo suas táticas na magistratura. Qualquer boa ação sua, verdadeira ou não, é hiperpropagandeada, enquanto suas ações ruins ficam debaixo dos panos. Moro chegou ao poder mentindo e manipulando. É um criminoso. Não teria razão para mudar agora. O ano 2 será ainda pior.

quinta-feira, 5 de dezembro de 2019

A Vale, o Flamengo e a Polícia Militar de SP




Em 25/01/2019 rompeu a barragem da mineradora Vale na cidade de Brumadinho. Entre mortos e desaparecidos, computam-se 393 pessoas. A Vale sabia do risco de rompimento da barragem de Brumadinho desde 2017, mas nada vez. Calculou riscos e decidiu que era financeiramente mais vantajoso arriscar do que parar a produção e arrumar os problemas da barragem. As 393 pessoas já tinham as vidas precificadas. Assim que ocorreu o acidente, uma das primeiras preocupações do ministro do meio ambiente, Ricardo Salles, e do governador de MG, Romeu Zema, ambos do Partido Novo, foi defender a Vale e dizer que seria muito custoso para a região a interrupção das operações da empresa. As ações da Vale sofreram forte queda no instante do acidente, chegando a um valor de R$ 41,59. No momento em que este texto é escrito, um pouco mais de dez meses após a tragédia, as ações da Vale valem R$ 50,71. Quem apostou na Vale logo após a tragédia teve uma rentabilidade de aproximadamente 25%. Até o momento, a Vale gastou R$ 1,6 bilhão em indenizações e despesas com a tragédia. Neste valor não está incluso o dinheiro gasto em publicidade para melhorar a imagem da empresa. O lucro líquido da Vale em 2018 foi de R$ 26,65 bilhões. Até o momento, as 393 vidas custaram 6% do lucro de um ano da empresa. Nenhuma pessoa da Vale foi responsabilizada criminalmente até o momento pela tragédia.
Em 08/02/2019 ocorreu o incêndio no Centro de Treinamento do Flamengo no Rio de Janeiro, que resultou na morte de 10 jovens das categorias de base. O acidente ocorreu num alojamento provisório. Improvisaram-se containers e um curto circuito num ar condicionado sem manutenção causou a tragédia. Colocar crianças em containers era uma opção mais barata do que coloca-las em hotéis, por exemplo. Até o momento, não houve acerto de indenização para as famílias das vítimas. O valor oferecido pelo clube foi de R$ 400 mil a cada família mais um salário mínimo por mês pelos próximos dez anos. O Flamengo propôs pagar aproximadamente um pouco mais de R$ 5 milhões como indenização pela tragédia, proposta não aceita pelas famílias. O Flamengo gastou em 2019 mais de R$ 200 milhões em contratações. Apenas na contratação de Arrascaeta pagou R$ 80 milhões. A economia na indenização das famílias dos mortos no container coincide com a gastança no time de futebol profissional. Dentro de campo, o Flamengo que colocou jovens para dormirem em containers improvisados ganhou tudo. Venceu o Brasileiro depois de dez anos e a Libertadores depois de 38. “O Flamengo é um exemplo de gestão”, diz o comentarista animado. “O Flamengo pôs a casa em ordem”, diz o outro. Colocar jovens para dormir em container e não pagar a indenização das famílias é apenas um detalhe no futebol mercantilista. Em qualquer lugar sério, o Flamengo estaria com as atividades suspensas por três anos. Por aqui, “o Flamengo é o Brasil no mundial do Catar”. Até o momento, nenhuma pessoa foi responsabilizada criminalmente pela tragédia.
Em 01/12/2019 aconteceu uma tragédia num baile funk no bairro de Paraisópolis, em São Paulo. Cinco policiais, argumentando que buscavam dois suspeitos, barbarizaram e causaram o caos num evento com milhares de pessoas, causando pisoteamento. Imagens chocantes mostram o grau da barbárie dos policiais, que cercaram jovens em ruelas e os espancaram mesmo eles estando desarmados e não apresentando risco algum. Outra imagem mostra um policial rindo enquanto dá cacetadas em jovens passando com medo. Nos dias seguintes à tragédia, todas as manifestações públicas do governador do Estado, João Doria Jr., foram para proteger os policiais. Nenhuma manifestação de dor ou de solidariedade às vítimas, nada. O governador duvidou das imagens que mostravam a barbárie e não decretou luto oficial. Disse que a política pública de repressão aos pancadões e de criminalização do funk vai continuar. Dois dias depois, Doria compareceu a um evento da Revista Isto É em que foi premiado como gestor público do ano. Disse ele ao receber o prêmio: “O que mais precisamos no Brasil é Justiça, obediência e é isso que São Paulo faz”. No dia seguinte à premiação, o ex-presidente FHC elogiou João Doria, dizendo que ele é “uma das vozes racionais do Brasil polarizado”. De seu apartamento em Higienópolis, o ex-presidente não vê e não se importa com as dores de Paraisópolis.
Doria trouxe para a política as melhores e mais modernas técnicas da publicidade. Ele é um produto e o eleitor não é tratado como cidadão e sim como consumidor. Doria vai ajustando o seu produto, no caso a si mesmo, para se adequar àquilo que o consumidor quer comprar. Em 2018, o consumidor/eleitor quis a barbárie. A principal promessa de Doria na campanha eleitoral foi colocar a polícia para matar. “Mandar bandido para o cemitério”, foram as palavras ditas pelo então candidato, que também prometeu pagar os melhores advogados na defesa de policiais que fossem processados por abusos cometidos em operações. Amigo de Doria, o ministro da Justiça, Sérgio Moro, trabalha incessantemente para diminuir as futuras dívidas que Doria possa contrair caso resolva cumprir sua promessa. O tal do “excludente de ilicitude”, que basicamente foi o carro-chefe de Moro em seu primeiro ano de gestão, praticamente elimina a possibilidade de punição a policiais que cometam erros. O excludente não foi aprovado, mas Moro não vai desistir e a lei nunca foi exatamente um problema para ele. Uma em cada três mortes violentas ocorridas em São Paulo é causada pela PM. No RJ, a situação é tão grave quanto, com a polícia batendo recordes de mortes e com o crescimento do domínio das milícias, já elogiadas pelo atual presidente, Jair Bolsonaro, quando ele era deputado. Em 2018 o eleitor brasileiro pediu por barbárie. Em 2019 os eleitos estão entregando o que foi pedido.
O acionista da Vale, o torcedor do Flamengo e o eleitor de Doria não têm do que reclamar em 2019. Ganharam dinheiro, títulos e viram a polícia “apavorar” os funkeiros que incomodam. E a barbárie está só começando. Ela já está precificada. Na foto vocês veem Dennys Guilherme dos Santos de 16 anos. Umas das vítimas de Paraisópolis. Uma das vítimas da política de Doria. Uma das vítimas do Brasil.