A literatura é repleta de obras
que conseguem de maneira perfeita refletir a imagem de uma determinada época.
São obras que eu costumo dizer que se tornaram verdadeiros documentos. Minha
Vida de Menina de Helena Morley (pseudônimo de Alice Dayrell Caldeira Brant)
é uma desta obras. O livro é tão bom que às vezes até dá vontade de chorar por
saber que algo assim existe. A autora tinha entre 13 e 15 anos quando escreveu
este diário que, mais do que falar sobre a própria vida, consegue ser um
retrato do Brasil do final do séc. XIX. A decadência das cidades mineiras, o
racismo, a situação dos negros no momento pós-abolição, a falta de valor dado
ao trabalho manual (a forma como sua família acredita que trabalhar é algo
feio, ao mesmo tempo que um conhecido que mora numa cidade maior diz que por lá
é o inverso), a religiosidade, está tudo lá, contado de uma forma ao mesmo tempo
rica e inocente, sem arranjos mais intelectualizados e rimas ricas, numa linguagem
completamente acessível. Uma criança questionando a realidade dura construída
pelos adultos e à qual ela também estaria presa pelo resto da vida. O cinema
brasileiro também consegue fazer isto às vezes. Dois Filhos de Francisco
usa a história da dupla Zezé di Camargo e Luciano como mote para contar algo
geral, a história de milhões de brasileiros que realizaram o êxodo rural nos
anos 1950 e 1960. A cena dos Camargo chegando na grande capital e indo morar
num barraco sem nenhuma condição, mas ao mesmo tempo fascinados com a eletricidade
e brincando de acender e apagar a luz é de um simbolismo profundo. Assim como a
famosa cena da piscina da personagem de Regina Casé em Que Horas Ela Volta,
ela consegue ter representação social. Se na primeira é a saída do campo para a
cidade, na segunda é a libertação da empregada doméstica que naturalizava a
opressão que sofria. Anos de histórias de multidões conseguem ser resumidos de
forma sublime em poucos segundos.
Na nossa história, a arte que
mais conseguiu ter estes momentos é a música. Desde Noel Rosa com Papo de
Botequim e Adoniran Barbosa com Despejo na Favela e Saudosa
Maloca, chegando a Racionais MCs nos anos 1990 e ao funk ostentação dos
anos 2000 e 2010. Nenhum movimento cultural do Brasil deste século conseguiu
ser tão representativo quanto o funk ostentação. Suas músicas são verdadeiros
documentos. Todas as coisas boas e ruins do governo Lula estão lá. As pessoas
felizes porque estão podendo consumir. Mas felizes só por isso. Vida Loka de
MC Rodolfinho é sem dúvida a música da década.
Nesta última semana tivemos uma
reportagem que consegue de forma incrível criar este tipo de documento. A
reportagem da revista Veja sobre os “Faria Limers” deveria ser leitura
obrigatória em escolas e universidades. Está tudo lá. O Brasil que criou
Bolsonaro, a elie desconectada da realidade, a bolha, a desigualdade, a alienação,
o stress, a infelicidade, o alcoolismo, as tentativas de fuga, o machismo, a
homofobia, tudo está lá.
O empresário cristão que votou em
Bolsonaro “por causa de Paulo Guedes”. Preconceito, autoritarismo e violência
travestidos de uma suposta racionalidade econômica. O investidor da bolsa que
se orgulha de trabalhar 20 horas e de ter insônia porque só pensa em trabalho e
não tem tempo para a esposa. A mulher homossexual que teve que se adaptar ao
ambiente homofóbico para prosseguir e que não vê nada de errado nisso,
aceitando o papel de oprimida aceita que se torna argumento do opressor. A
falta de negros nos ambientes de trabalho tratada com naturalidade. Os
ambientes “descolados” e caros, frequentados por pessoas “diferenciadas”. As
táticas de Google e Facebook para destruir qualquer possibilidade de vida
pessoal de seus funcionários, presos a um ambiente de trabalho “divertido”, em
que não receber tíquete é visto como algo bom e em que alimentos são levados
até os funcionários para que eles não tenham que sair do local de trabalho
mesmo na hora do almoço. A prisão moderna e voluntária. A empresária que diz
que “dinheiro é liberdade”, ao mesmo tempo em que não enxerga que está
totalmente presa a um estilo de vida vazio graças a este pensamento. A outra
empresária que teve que pedir a um estagiário que apresentasse seu trabalho, pois
os homens com que trabalha não estavam dispostos a ouvi-la. E com a mesma justificativa
da homossexual vítima de homofobia, de que o caminho é a adaptação e não a contestação.
Os escapismos. A infelicidade com o trabalho e a tentativa de encaixar outras
atividades para não ter que pensar no assunto. A academia, a ioga, a bebedeira
nos happy hours ou as viagens milionárias para qualquer lugar longe durante as
férias. Tudo isto sem esquecer o trabalho, se der para aproveitar estes
momentos para fazer um “contato”, melhor. Não há mais vida pessoal desligada da
profissional, todos os conhecimentos e decisões são pensadas tendo um foco
profissional, o conceito de amizade perdendo espaço para a ideia de que
contato. Um simples passeio passa a ter como foco “fazer contatos”. Tudo vale
para se manter na vida de merda guiada por um estilo de vida dominado por um
trabalho alienante e infeliz. A vida num escritório, na frente de um computador
e de uma planilha de excell ou de uma apresentação de Power Point é a causa
maior da infelicidade, mas é justificada pois é ela que gera o salário que permitirá
o consumo de bens e serviços que visam a diminuir a infelicidade causada por
este trabalho. A terapia, a academia de dois mil reais, a cerveja artesanal no
bar descolado, a roupa cara que permite julgar e ser julgado. O trânsito de
merda. Está tudo lá. Só faltou a história do grupo de empresários viciados em
prostituição e fascinados com o “poder” da compra do sexo, mas aí já seria
pesado demais.
As pessoas bem sucedidas e suas
vidas de merda. Todo um ciclo criado para que estas pessoas enxerguem a vida de
merda como algo normal ou sinônimo de sucesso. Todas as pessoas da matéria, ao
mesmo tempo em que deixam claro que são estressadas, dormem pouco e são
deprimidas, fazem o possível para fingir que não sabem disso e acham o estilo
demais. E a reportagem deixa isto claro.
Ao contrário do que a maioria das
pessoas da minha bolha pensam, eu não acho que os eleitores de Jair Bolsonaro
estejam arrependidos de seus votos. Quase todos as pessoas que votaram em
Bolsonaro têm vidas de merda. E coloquei este “quase” porque juro que não estou
radical. São pessoas que em geral estão infelizes e querem que tudo se foda. Pessoas
com vidas de merda se chocam ao ver outros que fogem do ciclo merdal. A principal
promessa de Bolsonaro foi expandir a vida de merda. Fazer com que ela chegue ao
maior número de pessoas possível. O Faria Limer pode até fingir que “votou em Paulo
Guedes”. Mas adora ver a merda se espalhando. Bolsonaro está entregando o que
prometeu. E o Faria Limer segue indo para a ioga na segunda, para o Outback na
terça, para a academia na quarta, para o puteiro na quinta e enchendo a cara nas
sextas de happy hour. Leia a matéria. Está tudo lá.
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