quinta-feira, 12 de dezembro de 2019

O Ano 1




No dia 9/12 aconteceu no Congresso um evento chamado de “Faça Sempre a Coisa Certa”, tendo como principal estrela o ministro da Justiça Sérgio Moro. O evento foi um daqueles grandes nadas que pessoas poderosas realizam às vezes para preencher o tempo e fazer propaganda pessoal. Completamente irrelevante. Mesmo assim, o tal evento mereceu uma reportagem de mais de dez minutos no Jornal Nacional. As falas de Moro eram sempre precedidas das de um jornalista de voz grossa e confiável, que explicava o que você deveria entender da fala do ministro. “Moro voltou a criticar o Supremo pela decisão de rever a possibilidade de prisão em segunda instância, que segundo o ministro aumenta a possibilidade de impunidade”, para em seguida vir Moro e dizer basicamente a mesma coisa. Nenhuma pessoa do Supremo com opinião distinta apareceu para apresentar um contraponto e rebater o ministro. A opinião era dada como verdade absoluta. Na mesma semana em que Moro ganhou dez minutos de exposição num evento que não significa nada, o ministro tentou utilizar seu cargo para impedir a perda de mandato de uma senadora próxima a ele, a “Moro de saias” e posou para uma foto com um busto dele feito com balas feito pelo lobby da indústria das armas. As duas notícias tiveram espaço mínimo na mesma emissora que dedicou dez minutos ao evento que não significava nada.
A Lava Jato em seu projeto de poder soube muito bem utilizar a mídia. Utilizou três meios em três plataformas diferentes como cúmplices. A TV Globo na mídia televisiva, a revista Isto É na mídia impressa e o site O Antagonista na internet. A Globo e a Isto É eram usadas para vazamentos mais bombásticos e que exigissem reação imediata, enquanto O Antagonista era usado para as “notícias” mais circenses e menores, para a destruição do dia a dia e para manter os lavajatistas lunáticos entretidos. Foi na Globo que Moro vazou as já clássicas conversas telefônicas com Lula, sempre seguindo a lógica da voz grossa e masculina dizendo antes o que o espectador deveria entender do que veria. “Neste áudio, Dilma diz a Lula que entregará nomeação de ministério para protegê-lo de possível prisão”, disse a voz de Bonner enquanto uma versão do áudio fazia parecer isto. Neste ano, um documento da Vaza Jato mostrou que Moro havia editado aquele áudio, escondendo os momentos em que ficava provada que a tese não era verdadeira. O Jornal Nacional preferiu não noticiar este fato, assim como as demais revelações da Vaza Jato. Alegou-se que o material de Greenwald fora obtido por “meios irregulares”.
A Isto É é uma revista irrelevante. Ainda não fechou as portas graças a compras de publicidade do governo de SP. Não é à toa que o governador de SP, João Doria Jr., recebe todo ano o prêmio de “Brasileiro do Ano” da revista. Foi na Isto É que Moro vazou a delação premiada de Delcídio Amaral, às vésperas da maior manifestação pelo impeachment. Um fundo preto, a cara de Delcídio e uma manchete do tipo “Lula e Dilma sabiam de tudo”. Foi provavelmente uma das últimas vezes em que uma edição da Isto É deu lucro, com movimentos empresarias e de governos à época oposicionistas comprando edições para distribuição. Dois anos depois, a bombástica delação de Delcídio não seria aceita pela Justiça por falta de provas. Não houve nenhuma retratação da Isto É. Mas seria indiferente se houvesse, uma vez que ninguém mais lê a revista.
O Antagonista sim é relevante. O site se tornou uma espécie de “porto seguro” da extrema-direita. O radicalismo realmente confia neste site. Em entrevista à revista Piauí no meio do ano passado, o futuro vice-presidente Hamilton Mourão disse que era o único meio de imprensa em que confiava. O site se tornou uma espécie de porta-voz oficial de Moro na imprensa. A Vaza Jato liberou documentos que comprovam isto. Para negá-los, Moro soltou uma nota oficial no site do Antagonista. Se  aa função da Globo é cobrir os eventos insignificantes, cabe ao Antagonista fazer o trabalho sujo. Chamar Greenwald de Verdevaldo, convocar campanhas de ameaças ao Supremo, humilhar Lula, soltar ameaças disfarçadas de notícia. Foi através deste site que Moro espalhou boatos de prisão contra o jornalista que o acusava. O principal acionista do Antagonista é a Empiricus, grupo de investimento que alcançou fama neste ano com a infame propaganda de Betina. Trata-se de um dos muitos grupos que se especializam na realização de pirâmides no sistema financeiro brasileiro, algo que dará muita merda num futuro não tão distante. Uma das principais denúncias da Vaza Jato é que Moro e Dallagnol utilizavam empresas de fachada de palestras, comandadas por suas esposas (ou “conjes”) para lavar dinheiro e ameaçar denunciados. Empresas que topassem financiar palestras dos dois e de outros membros da Lava Jato seriam poupadas nas acusações. O setor bancário é o maior cliente das palestras dos dois. Foi poupado da Lava Jato, mesmo que seja impossível imaginar que todo o dinheiro envolvido na corrupção circularia sem a participação destas instituições.
Moro chegou ao governo aclamado. Menos de uma semana antes da eleição foi anunciado como ministro da Justiça. Paulo Guedes e Hamilton Mourão já disseram publicamente que o convite a Moro já havia sido realizado antes do processo eleitoral, ficando claro que Moro já sabia que ganharia um emprego de Bolsonaro quando liberou informações sigilosas que comprometiam a candidatura de seu rival, Fernando Haddad. Alguns meses depois, os processos liberados contra Haddad foram arquivados por falta de prova. Moro foi tratado como especialista no assunto Justiça e Segurança Pública, mesmo que não tenha nenhuma contribuição realmente relevante ao assunto.
Sua primeira medida como ministro foi assinar o decreto das armas, cujo objetivo era facilitar a posse de armas. Seu comprometimento com a causa bélica levou o lobby das armas a presenteá-lo com a “bela” homenagem nesta semana. Ainda no começo do governo, Moro apresentou o “Pacote Anticrime”, a mais clara tentativa de legitimação de práticas fascistas apresentada neste governo. O Pacote de Moro previa, entre outras coisas, a liberação da violência policial, garantindo a impunidade ao policial que cometesse abusos e alegasse “forte emoção”, o tal do excludente de ilicitude, o quase fim das restrições ao uso de prisões preventivas e do habeas corpus. Nem a ditadura foi tão longe. O Congresso conseguiu barrar os maiores absurdos, mas Moro não vai desistir. Conta com os amigos da imprensa para isto. Moro é também o “cão de guarda” de Bolsonaro. Aparelhou a PF de forma a ameaçar inimigos do presidente. Uma semana depois da briga do presidente com seu ex-partido, a PF invadiu a casa do presidente do PSL numa investigação sobre candidatos laranjas. Também ameaçou publicamente o porteiro que teria falado com Bolsonaro no dia da morte de Marielle Franco e tenta federalizar a investigação para proteger membros da família do presidente, que aparentemente podem estar envolvidos no crime.
Moro subiu na vida explorando o ódio a Lula e aos políticos. Ninguém se importou muito quando Moro e sua turma destruíram o devido processo legal no “combate à corrupção”. Afinal, é “normal” que o juiz converse foram dos autos com o promotor. Se usou Lula e os políticos para o primeiro passo, tenta usar o Supremo para o segundo. A prisão em Segunda Instância é tão importante porque permite que Moro e o baixo clero do Judiciário condenem sem passar pelo crivo do Supremo. Eles têm o poder de mandar prender e soltar. Inventaram alguns slogans para defender este tema, como “a segunda instância garante a impunidade” ou “a segunda instância é um privilégio”. Não importa que dados comprovem exatamente o contrário. A maior parte das pessoas que têm penas revistas em última instância é pobre e a maior parte dos recursos que chegam ao Supremo vem da Defensoria Pública. Estas pessoas são a maioria. Mas não há dado que sobreviva a um bom slogan e a uma mídia comprometida. Simplesmente não há apresentação de dados quando o assunto é este. O que há é Moro repetindo falsos sensos comuns. Não há espaço para opinião daqueles que são contra a prisão em Segunda Instância, que são tratados como demônios. Gilmar Mendes, principal voz do nosso judiciário atual quando o assunto é humanização da lei, é tratado como vilão por ser a figura que solta pessoas. Justiça passou a ser vista como punição e liberdade como impunidade. Não há uma semana em que Moro não faça alguma acusação ao Supremo. Neste ano, inclusive, o ministro inflou e elogiou manifestações que pediam seu fechamento.
Moro é inimigo das regras e do estado democrático de direito porque ele o atrapalha. Numa das conversas da Vaza Jato, Dallagnol propõe a criação de um monumento à Lava Jato em que uma figura masculina representando a justiça derruba dois pilares representando Executivo e Legislativo. O único que ficaria de pé é o Judiciário. Mas Moro quer derrubar o Judiciário também.
O segredo está nos detalhes. Nenhuma pessoa soube usar tão bem os moralismos para ambição pessoal como Moro. A Lei da Ficha Limpa veio assim. A população entrou de cabeça no projeto que deu ao baixo clero do Judiciário o direito de decidir quem pode ou não concorrer numa eleição. A delação premiada a mesma coisa. A sociedade aplaudiu quando este mesmo baixo clero ganhou um instrumento de tortura que garantiu veracidade a roteiros já pré-estabelecidos e a condenações já decididas antes da existência de um processo. Este, aliás, tornou-se um mero detalhe, uma burocracia. No projeto anticrime aprovado, mesmo que sem os maiores absurdos propostos por Moro, há um item preocupante. Não há mais possibilidade de recursos em liberdade para pessoas presas por crimes hediondos. Não há como ser contra isto, não é? Pois bem, é fato que o próximo passo do ministro será a qualificação de corrupção como crime hediondo.
Moro é o maior risco à nossa democracia. É mais perigoso do que Bolsonaro. Toda sua ascensão se fez à base da destruição do estado democrático de direito. Moro legitimou na justiça a ideia de ausência de direito pleno à defesa e de imparcialidade do juiz. “Não falo com condenados”, disse ele numa entrevista mesmo tendo uma profissão, juiz, que basicamente o obriga a falar com condenados. Sim, um juiz deve ouvir de forma imparcial também o condenado. Transformou a delação premiada em instrumento de tortura. Todo o seu primeiro ano no ministério repetiu no governo suas táticas na magistratura. Qualquer boa ação sua, verdadeira ou não, é hiperpropagandeada, enquanto suas ações ruins ficam debaixo dos panos. Moro chegou ao poder mentindo e manipulando. É um criminoso. Não teria razão para mudar agora. O ano 2 será ainda pior.

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