Em algum momento entre o final da
década de 1980 e começo da década de 1990, nascia o pequeno Enzo no bairro de
Pinheiros, em São Paulo. Filho único de pai engenheiro e mãe advogada, Enzo foi
matriculado já criança em uma boa escola particular, mas sempre teve um desempenho
escolar medíocre. Desde cedo apresentava uma forte preguiça intelectual. Sempre
detestou ler, sua matéria favorita na escola era educação física. Com pai e mãe
fora, passava boa parte do dia com a empregada e com seu filho, a quem de vez
em quando emprestava algum brinquedo a mando da mãe. Foi criado ouvindo e
concordando com as reclamações da mãe sobre os custos da empregada, que tinham
subido muito quando a profissão foi registada. Também via o pai reclamando do aumento
do preço do trabalho dos pedreiros, que “agora não saem mais de casa por qualquer
merreca não, onde já se viu?”. A adolescência foi marcada pelas primeiras
viagens à Disney com os pais, pelas reclamações sobre o governo e pela manutenção
do desempenho ruim na escola. Porém, sempre rolava aquela colinha básica e um
cinco bola pulava da cartola. A rejeição à leitura prosseguiu na adolescência. “Livro
é muito longo e chato, demora um tempão para ler”, dizia o jovem Enzo, que em
seguida justificava que preferia filmes ou séries. Aos 17 anos, chegou o
esperado momento de tentar entrar na faculdade. Sem nenhum talento ou gosto
específico, Enzo tinha dúvidas entre administração de empresas ou publicidade. “São
duas carreiras que dão emprego bom e que não precisa ler muito”, pensava Enzo,
que via na faculdade uma oportunidade de cumprir seu destino: trabalhar de
terno em um escritório com ar condicionado e mandar em pessoas. Enzo já estava
acostumado em mandar. O jovem tentou entrar na universidade pública, mas não
foi bem sucedido. Havia 150 vagas e Enzo ficou na posição 2349. Enzo e família,
porém, responsabilizaram a política de cotas pelo fracasso. “Está muito difícil”,
dizia Enzo. “Por que devo ser punido só por ser mais rico? Devemos ter as
mesmas oportunidades !”, reclamava o jovem, contando com apoio irrestrito da
família nas críticas. Não podendo entrar na universidade pública, Enzo
ingressou em uma cara universidade privada, que não cobrava história no vestibular.
Enzo sempre achou o estudo da história uma tolice. “De que adianta ficar
olhando pro passado?”, dizia Enzo a cada nota baixa nas provas desta matéria na
escola. Ao ingressar na faculdade, Enzo recebeu do pai o primeiro carro de
presente, cuja entrega foi acompanhada da frase “Você merece”.
“Eu mereço”, pensou Enzo ao estacionar
o carro na faculdade pela primeira vez. Sua história acadêmica foi marcada pelo
álcool, pelas festas e pelo desempenho ruim nas notas. Mas, mais uma vez, o
cinco salvador sempre caía do céu. Vieram uma ou outra DP, mas Enzo não se
importava. Quem pagava a faculdade era o pai e o boleto nem passava na mão
dele. No começo do quarto ano, Enzo fez um intercâmbio na Europa. Ficou
encantado. “Lá é tudo limpo e as pessoas respiram cultura”, disse Enzo numa
conversa com a mãe. Aqui no Brasil, Enzo nunca visitou um museu ou uma biblioteca,
antes ou depois da Europa. Voltando, a experiência do intercâmbio o ajudou a
conseguir o primeiro emprego como trainee em uma agência de publicidade. A vida
profissional tornou Enzo ainda mais agressivo e competitivo. Enzo sabia que era
necessário ser submisso ao Enzo de cima e submeter o Enzo de baixo. Saía toda
sexta para o happy hour com os Enzos da empresa e enchia a cara. Chegava cedo e
saía tarde, ainda que não soubesse muito bem explicar o que realmente fazia no
trabalho. Decorou muitos termos em inglês. Resolveu após a faculdade fazer um
MBA em gestão de pessoas para ampliar seus “conhecimentos”. Encontrou lá vários
Enzos, formando uma boa base de contatos.
Enzo começou a se interessar por
política em 2013. “O gigante acordou”, dizia Enzo, que se mobilizou como nunca
em 2014 para tirar do poder “aquele bando de ladrão que quebrou o país”. Foi inicialmente
mal sucedido, mas não desistiu. “Enzo sempre tem o que quer”, é seu lema até
hoje. A preguiça para a leitura, sua característica mais importante, prosseguiu
na vida adulta, e Enzo começou a se informar através do youtube. “Dá pra aprender
muito nestes vídeos de dois minutos”, dizia Enzo à época. Enzo encontrou no MBL
e no Partido Novo duas instituições que o representavam. Bastava um vídeo e
pronto, Enzo era o especialista. Em 2015 e 2016, lá estava Enzo nas ruas, com a
camisa da seleção brasileira, ao lado das pessoas que pediam intervenção
militar já, para “salvar o país”. “Vá pra Venezuela”, dizia Enzo para o filho
da empregada quando este tentava conversar sobre política.
Em 2018, Enzo entrou de cabeça na
candidatura de João Amoedo. Perto do fim do primeiro turno, porém, embarcou com
tudo na candidatura do capitão. “Tudo menos o PT”, dizia Enzo. Apaixonado por
Paulo Guedes e Sérgio Moro, Enzo não discorda tanto assim do presidente. Pelo
contrário, acha que ele fala umas boas verdades. “Tem que acabar com o mimimi”.
Defendeu a Reforma da Previdência e o Pacote Anticrime do Ministro da Justiça.
Enzo nunca teve problemas com a justiça. Teve uma ou outra dor de cabeça com a
questão da lei seca. Foi parado em blitz duas vezes, mas se recusou a fazer o
teste do bafômetro. Depois disso, baixou um aplicativo criado por um outro Enzo
em que Enzos se avisam onde há blitz, podendo assim fugir. Enzo odeia a “indústria
da multa”. “É revoltante este governo querer tirar nosso dinheiro escondendo
radares”, diz ele. Perdeu a carteira por excesso de multas duas vezes. Na
primeira vez conseguiu jogar os pontos na carteira de um estagiário do pai. Na
segunda, contratou uma empresa para limpar seu nome. Em todos os outros
setores, porém, Enzo acha que o problema é a falta de fiscalização e de
polícia. Adora ver Sérgio Moro atropelando a lei para pegar os “bandidos do PT”.
“Os fins justificam os meios”, repete Enzo. Ele viu esta frase em algum vídeo do
MBL e achou forte, bonita. Não vê a hora de comprar uma arma e já se matriculou
em uma escola de tiro.
Aproveitando a Reforma
Trabalhista, a agência em que Enzo trabalhava o demitiu com um acordo, pagando
assim uma multa menor. Enzo compreendeu. “É muito difícil ser chefe no Brasil”.
A primeira ideia de Enzo foi empreender. Após algum tempo, porém, Enzo
descobriu que não sabe fazer nada, não tem muito o que oferecer na verdade.
Cansado, Enzo concluiu que o Brasil é um país que não oferece mais
oportunidades para pessoas como ele. “O Brasil ficou pequeno demais para mim”,
pensa Enzo. “Preciso de um lugar que me dê o valor que mereço”. Bisneto de italianos,
Enzo começou o processo para obtenção do passaporte italiano. Ele não sabe
muito sobre a Itália e tem preguiça de aprender o idioma, mas isto é o de
menos. Sem tempo para coisas burocráticas, Enzo contratou uma empresa que vai
cuidar de todos os trâmites. Conseguiu este contato com o mesmo Enzo que
indicou a empresa que limpava os pontos da carteira de motorista, aliás. Antes
de ir para a Itália, porém, Enzo vai tirar seis meses sabáticos para surfar na
Tailândia. Ele está muito cansado e estressado. Não pretende voltar mais. Boa viagem, Enzo.
Excelente texto, reflete exatamente a nossa classe média burguesa, ou que pensa ser.
ResponderExcluirObrigado pelo elogio.
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