1998. Muitas
vezes eu acho que idealizo o primeiro semestre de 1998. Mas toda vez que penso
numa época muito feliz, eu volto ao primeiro semestre de 1998. O U2 veio para o
Brasil. A Copa foi legal. Teve o meu primeiro beijo. Minha primeira viagem de
avião. Teve o gol do Didi. Teve o gol do Oseas. Teve Titanic. E principalmente,
teve o que se seguiu no segundo semestre de 1998. Se eu acho que idealizo o
primeiro semestre de 1998, não tenho dúvidas de que o segundo semestre de 1998
foi uma merda. Foi quando perdi meu pai. Sempre que penso no primeiro semestre
de 1998, penso no meu pai saudável. Claro que ele não estava saudável, ele já
tinha câncer há uns 10 anos. Mas na minha memória ficou saudável. Eu tinha 14
anos e já faz tempo afinal. O segundo semestre foi só tristeza.
O gol do Didi. Tinham
se passado uns 20 minutos do segundo tempo da final do Campeonato Paulista
entre São Paulo x Corinthians. O Timão havia vencido o primeiro jogo por 1x0 ou
2x1, não lembro, jogava pelo empate, e o tricolor vencia o segundo jogo por
1x0, com um gol do Raí, que tinha voltado para o SP depois de uma passagem em
Paris e fazia seu primeiro jogo na volta. Didi era o pior jogador do Corinthians.
Um atacante horroroso. Eu sou palmeirense e meu pai era corintiano. Como eu
enchi o saco do meu pai por causa deste cara. Muito. Eis que aos 20 do segundo
tempo (ou algo do tipo), Didi recebe a bola pela esquerda, na entrada da área.
Corta o zagueiro e com o pé direito chuta a bola por cobertura. Há um tipo de
gol no futebol que eu gosto muito, que é aquele cujo chute faz o tempo parar.
Gols por cobertura têm esta característica. No curto período em que a bola saiu
do pé de Didi e foi na direção do ângulo do gol defendido pelo jovem Rogério
Ceni, a Terra parou de girar. Neste segundo, todas as pessoas assistindo ao
jogo aspiraram o ar com força, um som meio “fffff”, até a bola estufar a rede e
vir a explosão. Eu assistia o jogo na sala, andar de baixo, e meu pai no
quarto, andar de cima, de um sobrado cujo piso era de madeira, a casa inteira
ouvia quando alguém andava. Meu pai, embora na minha memória estivesse
saudável, já estava doente e não saia muito do quarto. Pois eis que quando a
bola entra, não ouço nenhum grito. Só ouço um “tum”, que era levantando da
cama, seguido por mais alguns “tum” de seus passos indo até a escada e uns “tum”
mais forte dele descendo a escada. Meu pai chega na sala vermelho, suado, com
um sorriso que eu nunca mais esqueceria e grita “CHUPA”. O SP viria a ganhar o
jogo e o campeonato, mas o que ficou para mim deste jogo foi o gol do Didi. Às
vezes penso que se eu pudesse mudar o resultado de um evento esportivo na
história do mundo, seria o desta final do Paulista. Não consigo imaginar o que
meu pai faria se o Corinthians tivesse sido campeão com aquele gol do Didi. Mas
o título se tornou o de menos na minha memória. Alguns dias depois, o Palmeiras
ganhou a Copa do Brasil com um gol improvável de Oseas no último lance do jogo.
Até hoje não sei como aquela bola entrou. Havia chegado a hora de devolver a
meu pai a visita. Desta vez era eu quem fazia o “tum tum tum” em direção ao seu
quarto. Lá chegando, encontrei meu pai feliz e de pé. Ele me abraçou e me deu
parabéns. Eu não sabia, mas de certa forma ele começava a se despedir.
Titanic. Não sei
se depois daquilo houve algo semelhante no cinema. E digo não sei porque sou ignorante
sobre cinema mesmo. Não faço ideia do que está acontecendo desde que filmes de
heróis ocuparam as salas. Há um tempo, antes da pandemia, eu trabalhei numa
Wizard em Itapevi e a escola conseguiu ingressos gratuitos para seus alunos
assistirem Os Vingadores. Foi uma loucura. Talvez tenha sido algo semelhante ao
que foi com Titanic. Não sei. Mas bom, para falar do que foi Titanic no meu
1998, é necessário passar por duas personagens do meu 1998, Tatinha e Aninha.
Eu era apaixonadinho pelas duas. Ora por uma, ora pela outra, ora pelas duas. Eu
me apaixonava bastante em 1998. Tatinha e Aninha eram duas pessoas que, como o
diminutivo mostra, eram pequenas e andavam sempre juntas. Tatinha era a nerd da
turma e Aninha era sua melhor amiga esforçada que passava aos trancos e
barrancos. A paixonete por Tatinha é fácil de explicar. Eu era nerd, ela era
nerd, pronto, isto bastava para que eu nos imaginasse juntos. Já Aninha era um
pessoa mais interessante. A primeira coisa sobre ela é que ela tinha uma
autoestima tão baixa quanto à minha à época. A segunda é que ela tinha uma mãe
tão controladora e competitiva quanto a minha. Toda vez que existia alguma
competição na escola que exigia alguma participação materna, eu ficava em
primeiro e ela em segundo, ou vice-versa. Lembro uma vez em que houve uma
competição para ver qual aluno levava mais latinhas para reciclagem. Aninha
liderava até o último dia, quando minha mãe apareceu com uma caralhada de
latinhas. Venci. Meus prêmios foram um boné e uma bola que perdi no mesmo dia.
A terceira característica de Aninha é que ela tinha uma letra linda. Uma vez
fui ajudá-la em algum texto de história, estava absolutamente tudo errado, mas
a letra era linda. Tenho planos de ser professor e serei do tipo que darei
pontos a alunos com letras bonitas. Tenho uma certa queda por talentos que
perderam espaço. E a quarta característica de Aninha é que ela era
obsessiva-compulsiva. Não faço ideia de onde isto a levou na vida, mas ela
mergulhava com intensidade em tudo. E mergulhou no Titanic.
Aninha ia duas
vezes por semana ao cinema assistir Titanic. Eu achava incrível porque eu ainda
não havia nem conseguido ingresso para ver o filme e ela dizia que tinha ido de
novo. Aninha mergulhou também em Di Caprio. Tinha absolutamente tudo sobre ele.
A ponto de ir ao cinema repetidas vezes assistir O Homem da Máscara de Ferro.
No mesmo ano de Titanic, saiu este outro filme com o Di Caprio e é tipo o pior
filme de todos os tempos. É tipo muito muito ruim. E ela ia ver. Não apenas
isto. Tinha alguma rádio de SP que tocava My Heart Will Go On uma vez a cada
hora. Uma vez a cada hora. E My Heart Will Go On, possivelmente a pior música de
todos os tempos. Pois Aninha passava o dia inteiro ouvindo esta rádio para não
perder a música sendo tocada naquela hora específica. Ficava ouvindo um walkman
escondida durante as aulas, se ferrou algumas vezes por isto aliás. Um belo
dia, alguém perguntou a ela se ela não tinha comprado o CD com esta música. Ela
respondeu que sim, e este alguém perguntou por quê ela não ficava ouvindo o CD
ao invés de esperar a música tocar na rádio a cada hora. Aninha respondeu com
um gemido. Ela sabia que o cara que perguntou não seria capaz de entender que
esperar a música tocar na rádio é bem mais legal.
Minha mãe estava
desesperada para ver Titanic. Ela já não ia mais ao cinema, achava caro e ver
em casa na fita cassete era mais confortável. Mas ela não aguentava mais.
Queria ver Titanic. Minha família já estava numa fase mais shoppinglizada da vida.
Até 1995, eu morava num apartamento na Santa Cecília, depois fomos para um
sobrado no Cambuci. Engraçado é que a minha vida de certa forma se fechou
depois que saí do centro. Antes fazia tudo por lá. No Cambuci, tudo se tornou
mais “perigoso”. Cinema só no shopping. Mas eis que minha mãe não conseguia
ingresso de jeito nenhum. Contei a história de Aninha e ela xingou a coitada.
Chamou-a de mentirosa. Um belo sábado minha mãe falou: “Chega!”. Me puxou pelo
braço e disse: “Hoje vamos ver Titanic”. Sua solução foi ir no Cine Ipiranga.
O Cine Ipiranga.
Joia da era de ouro do cinema paulistano nos anos 1950, em franca decadência
nos anos 1990. A sala tinha lugar para 1.200 pessoas, 1.500 com o andar de cima
aberto. Lá chegando, a fila dava uma volta no quarteirão. Após uma hora e meia,
ingresso comprado, mas para a sessão seguinte. Teríamos que esperar mais 2
horas e meia para entrar. Sentamos e esperamos, na sala de espera do cinema.
Minha mãe vai ao banheiro e, então, o inesperado acontece. Uma adolescente da
minha idade senta ao meu lado e me oferece pipoca. Vou repetir. Uma adolescente
da minha idade senta ao meu lado e me oferece pipoca. Isto nunca mais aconteceu
na minha vida. Acho que nunca mais acontecerá. Eu travei, ao mesmo tempo que me
apaixonei instantaneamente pela menina. A minha versão adolescente se
apaixonava automaticamente por qualquer garota que demonstrasse qualquer
interesse em mim. Ainda travado, respondi que não e me levantei. Passei uns 2
anos para superar este não. Na saída do cinema, vi a menina beijando um outro
cara. Prometi que nunca mais recusaria uma pipoca. Um mês depois desta sessão
eu daria meu primeiro beijo. Aconteceu com uma menina chamada Claudia, durante
o trailler de Missão Impossível, ao som de Bed of Roses do Bon Jovi. Depois
dividimos uma pipoca.
Pois bem,
entramos no cinema. A parte de cima estava fechada para reforma. Mas por algum
erro, o cinema havia vendido 1.500 ingressos para 1.200 lugares. Superlotação
rolando, a galera sentando em todo canto, de repente alguém fala “Vamos invadir
lá em cima”. Correria. Gritos. Porta caindo. Gritos. Com a parte de cima já
ocupada, começa a cantoria “se o filme não começar, ole ole olá, o pau vai
quebrar”. Ao nosso lado na sala, uma senhora que estava lá para assistir ao
filme pela quarta vez. No trailer ela começa a chorar. “O que houve?”, pergunta
minha mãe. “Estou pensando no final”, responde ela.
Assistir filme
no Cine Ipiranga era uma experiência totalmente diferente do que já era minha
experiência cinematográfica e do que seria no futuro. Não havia espaço para
silêncio. Era gritaria e festa o tempo todo. “Corno vagabundo” quando aparecia
o vilão. “Gostosa” quando aparecia Kate Winslet. “Lindo” quando aparecia Di
Caprio. O barulho na hora em que Di Caprio desenha Kate Winslet sem roupa me
lembrou o gol de Didi. Gostei daquilo. Até o fim do cinema, ia ao Ipiranga
assistir filmes quando este tipo de atmosfera fosse “permitida”. Filmes do
Eddie Murphy, por exemplo. Fim do filme. Choro e desespero na sala. Minha mãe
vira para a sua vizinha de cadeira que chorava copiosamente e diz “não gostei,
esperava mais”. Eu tinha certeza que ela falaria isso. Na volta compro uma
pipoca com bacon do pipoqueiro na frente do cinema e pegamos um táxi. Minha mãe
passa o caminho inteiro falando mal do filme com o taxista. Eu pensava na garota da pipoca.
Um pouco depois,
minha primeira viagem de avião. Viagem de formatura da oitava série para as
Serras Gaúchas. Toda vez que penso no primeiro semestre de 1998, penso que eu
era rico. Fui a primeira pessoa da família a viajar de avião. A Copa rolava
durante esta viagem. A Copa na adolescência / infância. Não há nada melhor. Tive
um filho em 2022, se tiver que escolher uma Copa para o Brasil ganhar, que seja
2030, quando ele tiver 8 anos. Eu tinha 10 quando o Brasil ganhou em 1994.
Tinha 14 quando perdeu em 1998. Isto foi em julho. Dois dias depois da final,
eu e minha irmã viajamos para visitar uma tia em Santa Cruz do Rio Pardo. Quatro
horas de viagem na ida, quatro na volta. Meu pai e minha mãe foram nos levar na
rodoviária. Ficaram esperando o ônibus sair. Meu pai estava de boina e
cachecol. Ele sorria. Quando voltamos duas semanas depois, apenas minha mãe foi
nos buscar. Começava o segundo semestre de 1998.
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