sexta-feira, 7 de agosto de 2015

A televisão, a publicidade e a cultura da violência no Brasil

 

Até os anos 60, a violência no Brasil tinha uma cara diferente da que temos hoje. A desigualdade social e a pobreza eram ainda maiores naquele período, o que explica sermos hoje uma sociedade mais violenta? Vários aspectos, mas o objetivo aqui é abordar apenas um deles e refletir sobre seus impactos na violência urbana, o surgimento da televisão.
A televisão chegou ao Brasil ainda nos anos 50, mas foi na década seguinte que começou a se  popularizar, chegando à classe média. Este novo meio de comunicação, com um alcance maior do que tudo que existia antes, levou a um desenvolvimento da publicidade. A venda de anúncios era o que tornaria tudo aquilo possível e a televisão começou um trabalho de criação de “mitos”, seres incríveis e admiráveis que eram capazes de vender tudo aquilo que anunciassem. Não é à toa que nesta época surgiram os primeiros grandes “heróis” de massa do país: Pelé, Roberto Carlos e Wilson Simonal. Artistas e jogadores de futebol poderiam ser mostrados agora a todo país, não apenas ao eixo Sul-Sudeste, e havia muita gente disposta a lucrar a partir do fanatismo que estas pessoas causavam.
Mais do que produtos, a publicidade vende a felicidade, sempre a ligando a alguma mercadoria. Um número cada vez maior de pessoas tinha acesso a estas novas publicidades e isto gerou nelas uma série de “necessidades” que antes não existiam e que só poderiam ser supridas pela compra do produto e do sonho visto na televisão. Os sambistas antigos e os funkeiros atuais vêm do mesmo lugar. A felicidade para os primeiros estava relacionada a conceitos ligados a relacionamentos, já para os músicos atuais está no consumo. O que explica esta diferença é uma mudança de valores trazida pela publicidade. Pode ser chocante, mas faz sentido acreditar que se Cartola nascesse hoje, no mesmo lugar em que nasceu no começo do século passado, provavelmente estaria fazendo a mesma coisa que o MC Guimê.
O desenvolvimento da televisão, portanto, levou uma série de novos desejos a um grupo cada vez maior de pessoas, que nem sempre via suas vontades atendidas. Isto mudou o aspecto da violência, especialmente nas grandes cidades. Até aquele momento, a violência urbana estava muito mais ligada a Máfias do que a qualquer outra coisa. Relacionava-se em boa parte a relações quase patriarcais de grupos disputando mercados negros. A partir dos anos 70, desenvolveu-se um tipo de violência mais individual, de pessoas que não queriam um mercado, queriam apenas comprar. Pessoas incapazes de comprar o produto dos sonhos vendido pela publicidade e que encontravam no roubo a única saída para esta dita felicidade. Vivíamos uma ditadura militar truculenta que apostou na repressão e não na educação como forma de enfrentar esta nova epidemia. Ideia de repressão compartilhada hoje em dia pelas pessoas que defendem a redução da maioridade penal como solução para os problemas do país. Deu errado lá atrás, tem tudo para dar errado agora.
Já nos anos 80, a televisão já consolidada como grande entretenimento nacional descobriu um novo mercado consumidor, as crianças. Devidamente preparada, surgia a primeira grande apresentadora infantil do país, Xuxa. Loira e bonita, era o instrumento ideal para convencer crianças a pedirem seus produtos para pais já acostumados com a ligação produto – felicidade. Xuxa foi transformada em rainha, as crianças em súditas, sedentas pelo que ela vendia. É neste período também que encontramos os primeiros surtos de violência infantil no país, como os arrastões em praias cariocas.
Lembro que, obviamente, há outras explicações para as novas ondas de violências surgidas a partir dos anos 70. O êxodo rural, com uma quantidade cada vez maior de pessoas morando em situações degradantes em grandes cidades, o consumo maior de drogas pela classe média e alta e o surgimento de grupos nas camadas mais baixas dispostas a suprir o vício desses consumidores, destruição do aparato educacional de base, surgimento e disseminação do crack como droga barata entre pessoas sem esperanças, entre outros. Mas o objetivo é falar apenas sobre televisão e publicidade, sem esquecer, claro, dos outros componentes transformadores deste contexto. E lógico que todos estes componentes citados acima já existiam antes do surgimento da televisão. Já havia gente roubando carroça no Brasil Colônia. A reflexão é sobre o caráter epidêmico que ela tomou.
A partir dos anos 90, a televisão passou a enxergar a violência como um produto e o medo como um motivador. Programas jornalísticos do mundo cão se desenvolveram, sempre mostrando como o mundo é perigoso ao mesmo tempo em que anunciavam maravilhas que os telespectadores poderiam comprar. Surgia neste período uma série de empresas vendendo o novo produto que este consumidor mais desejava, a segurança. O programa mostrava uma reportagem sobre o roubo de carros. Em seguida, uma propaganda de carro, sempre com uma pessoa que havia encontrado a felicidade por tê-lo. Logo após, a propaganda de uma seguradora de carros. Fechava-se o ciclo. Queira o carro. Compre o carro. Proteja-se do perigo.
Os anos PSDB-PT foram acima de tudo um período de explosão do consumo. A estabilização econômica do PSDB permitiu um maior acesso a novos produtos por um número maior de pessoas, e isto se desenvolveu pelas políticas de distribuição de renda do PT. Mas note que o conceito de “felicidade” imposto pela publicidade televisiva já estava disseminado mesmo em nossas políticas governamentais. Melhorar o país seria permitir que um número maior de pessoas consumisse, pois é nisso que estaria a verdadeira felicidade. Mesmo a educação foi tratada como um bem de consumo. O valioso esforço petista para colocar um número cada vez maior de jovens de baixa renda na universidade visa muito mais a formação de mão-de-obra qualificada para a produção, e não o surgimento de uma geração capaz de refletir sobre a sociedade em que vivemos e como melhorá-la. O mesmo processo de descaso com as ciências humanas existente no regime militar existe hoje. Estas ciências não estão inseridas no programa de ciências sem fronteiras, por exemplo. Não discutimos se o país está bem pelo conhecimento criado, mas sim pelo PIB.
 A transformação da educação em um produto de consumo é, a meu ver, a etapa final de um processo alienante iniciado, entre outros motivos, com o desenvolvimento da publicidade a partir do surgimento da televisão. Assim como a violência, a educação mais do que qualquer coisa é pensada para vender. Mais do que qualquer coisa, as maiores causas da violência urbana hoje são o consumismo e o individualismo. Não há reflexão, há apenas respostas a instintos, e nada nos faz agir mais de forma instintiva do que o medo.
Ligue a TV. Queira o carro. Compre o carro. Proteja-se. Prenda. Reprima. Seja infeliz.

2 comentários:

  1. Ótimo texto. Vou um pouco além da sua tese. Na minha visão o capitalismo deu errado.

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  2. Valeu Márcio... Acho que muita coisa na nossa sociedade tem que ser discutida... A maior crise que o Brasil vive, a meu ver, é a crise de um sistema que coloca o consumismo acima de tudo. Este modelo se tornou insustentável.

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