Até os anos 60, a violência no Brasil
tinha uma cara diferente da que temos hoje. A desigualdade social e a pobreza
eram ainda maiores naquele período, o que explica sermos hoje uma sociedade
mais violenta? Vários aspectos, mas o objetivo aqui é abordar apenas um deles e
refletir sobre seus impactos na violência urbana, o surgimento da televisão.
A televisão chegou ao Brasil ainda nos
anos 50, mas foi na década seguinte que começou a se popularizar,
chegando à classe média. Este novo meio de comunicação, com um alcance maior do
que tudo que existia antes, levou a um desenvolvimento da publicidade. A venda
de anúncios era o que tornaria tudo aquilo possível e a televisão começou um
trabalho de criação de “mitos”, seres incríveis e admiráveis que eram capazes
de vender tudo aquilo que anunciassem. Não é à toa que nesta época surgiram os
primeiros grandes “heróis” de massa do país: Pelé, Roberto Carlos e Wilson
Simonal. Artistas e jogadores de futebol poderiam ser mostrados agora a todo
país, não apenas ao eixo Sul-Sudeste, e havia muita gente disposta a lucrar a
partir do fanatismo que estas pessoas causavam.
Mais do que produtos, a publicidade vende
a felicidade, sempre a ligando a alguma mercadoria. Um número cada vez maior de
pessoas tinha acesso a estas novas publicidades e isto gerou nelas uma série de
“necessidades” que antes não existiam e que só poderiam ser supridas pela
compra do produto e do sonho visto na televisão. Os sambistas antigos e os
funkeiros atuais vêm do mesmo lugar. A felicidade para os primeiros estava
relacionada a conceitos ligados a relacionamentos, já para os músicos atuais
está no consumo. O que explica esta diferença é uma mudança de valores trazida
pela publicidade. Pode ser chocante, mas faz sentido acreditar que se Cartola
nascesse hoje, no mesmo lugar em que nasceu no começo do século passado,
provavelmente estaria fazendo a mesma coisa que o MC Guimê.
O desenvolvimento da televisão, portanto,
levou uma série de novos desejos a um grupo cada vez maior de pessoas, que nem
sempre via suas vontades atendidas. Isto mudou o aspecto da violência,
especialmente nas grandes cidades. Até aquele momento, a violência urbana
estava muito mais ligada a Máfias do que a qualquer outra coisa. Relacionava-se
em boa parte a relações quase patriarcais de grupos disputando mercados negros.
A partir dos anos 70, desenvolveu-se um tipo de violência mais individual, de
pessoas que não queriam um mercado, queriam apenas comprar. Pessoas incapazes
de comprar o produto dos sonhos vendido pela publicidade e que encontravam no
roubo a única saída para esta dita felicidade. Vivíamos uma ditadura militar
truculenta que apostou na repressão e não na educação como forma de enfrentar
esta nova epidemia. Ideia de repressão compartilhada hoje em dia pelas pessoas
que defendem a redução da maioridade penal como solução para os problemas do
país. Deu errado lá atrás, tem tudo para dar errado agora.
Já nos anos 80, a televisão já consolidada
como grande entretenimento nacional descobriu um novo mercado consumidor, as
crianças. Devidamente preparada, surgia a primeira grande apresentadora
infantil do país, Xuxa. Loira e bonita, era o instrumento ideal para convencer
crianças a pedirem seus produtos para pais já acostumados com a ligação produto
– felicidade. Xuxa foi transformada em rainha, as crianças em súditas, sedentas
pelo que ela vendia. É neste período também que encontramos os primeiros surtos
de violência infantil no país, como os arrastões em praias cariocas.
Lembro que, obviamente, há outras
explicações para as novas ondas de violências surgidas a partir dos anos 70. O
êxodo rural, com uma quantidade cada vez maior de pessoas morando em situações
degradantes em grandes cidades, o consumo maior de drogas pela classe média e
alta e o surgimento de grupos nas camadas mais baixas dispostas a suprir o
vício desses consumidores, destruição do aparato educacional de base,
surgimento e disseminação do crack como droga barata entre pessoas sem
esperanças, entre outros. Mas o objetivo é falar apenas sobre televisão e publicidade,
sem esquecer, claro, dos outros componentes transformadores deste contexto. E
lógico que todos estes componentes citados acima já existiam antes do
surgimento da televisão. Já havia gente roubando carroça no Brasil Colônia. A
reflexão é sobre o caráter epidêmico que ela tomou.
A partir dos anos 90, a televisão passou a
enxergar a violência como um produto e o medo como um motivador. Programas
jornalísticos do mundo cão se desenvolveram, sempre mostrando como o mundo é
perigoso ao mesmo tempo em que anunciavam maravilhas que os telespectadores
poderiam comprar. Surgia neste período uma série de empresas vendendo o novo
produto que este consumidor mais desejava, a segurança. O programa mostrava uma
reportagem sobre o roubo de carros. Em seguida, uma propaganda de carro, sempre
com uma pessoa que havia encontrado a felicidade por tê-lo. Logo após, a
propaganda de uma seguradora de carros. Fechava-se o ciclo. Queira o carro.
Compre o carro. Proteja-se do perigo.
Os anos PSDB-PT foram acima de tudo um
período de explosão do consumo. A estabilização econômica do PSDB permitiu um
maior acesso a novos produtos por um número maior de pessoas, e isto se
desenvolveu pelas políticas de distribuição de renda do PT. Mas note que o
conceito de “felicidade” imposto pela publicidade televisiva já estava
disseminado mesmo em nossas políticas governamentais. Melhorar o país seria
permitir que um número maior de pessoas consumisse, pois é nisso que estaria a
verdadeira felicidade. Mesmo a educação foi tratada como um bem de consumo. O
valioso esforço petista para colocar um número cada vez maior de jovens de
baixa renda na universidade visa muito mais a formação de mão-de-obra
qualificada para a produção, e não o surgimento de uma geração capaz de
refletir sobre a sociedade em que vivemos e como melhorá-la. O mesmo processo
de descaso com as ciências humanas existente no regime militar existe hoje.
Estas ciências não estão inseridas no programa de ciências sem fronteiras, por
exemplo. Não discutimos se o país está bem pelo conhecimento criado, mas sim
pelo PIB.
A transformação da educação em um
produto de consumo é, a meu ver, a etapa final de um processo alienante
iniciado, entre outros motivos, com o desenvolvimento da publicidade a partir
do surgimento da televisão. Assim como a violência, a educação mais do que
qualquer coisa é pensada para vender. Mais do que qualquer coisa, as maiores
causas da violência urbana hoje são o consumismo e o individualismo. Não há
reflexão, há apenas respostas a instintos, e nada nos faz agir mais de forma
instintiva do que o medo.
Ligue a TV. Queira o carro. Compre o
carro. Proteja-se. Prenda. Reprima. Seja infeliz.
Ótimo texto. Vou um pouco além da sua tese. Na minha visão o capitalismo deu errado.
ResponderExcluirValeu Márcio... Acho que muita coisa na nossa sociedade tem que ser discutida... A maior crise que o Brasil vive, a meu ver, é a crise de um sistema que coloca o consumismo acima de tudo. Este modelo se tornou insustentável.
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