terça-feira, 8 de setembro de 2015

Que horas ela volta, transformações sociais e um pequeno obituário do PT


Este texto contém informações sobre o filme. Se você não o viu, mas pretende ver e não quer saber o que acontece, não o leia.
Neste domingo venci minha forte resistência à Regina Casé e fui assistir ao filme "Que horas ela volta?", estrelado por ela, em cartaz nos cinemas e que vem recebendo excelentes críticas. Embora o foco do blog seja falar mal, não abordarei aqui minha rejeição à Regina, e sim falarei sobre o filme, que é excepcional. Valeu muito a pena vencer minha teimosia. O filme é a melhor crônica sobre as transformações sociais dos últimos 10 anos e expõe de forma brilhante os choques entre e a elite e a nova classe média através de uma das relações que mais a representa, a que ocorre entre patrão e empregada doméstica.
Enxergo nesta relação um dos grandes resquícios do período escravista em nosso país. Val, personagem interpretado de forma estupenda por Regina Casé, é a típica empregada doméstica de uma família abastada, sendo considerada por esta como alguém "da família", ao mesmo tempo em que precisa usar uniforme, não pode se sentar à mesa com os patrões, nem chegar perto da piscina, a não ser para limpá-la. Vive num quarto de empregada no melhor estilo senzala moderna, pequeno e sem ventilação. A casa possui um gigantesco e confortável quarto de hóspedes que está sempre vazio, enquanto Val, a pessoa "da família", vive em seu muquifo escondido e apertado, sem que isto cause nenhum tipo de desconforto aos patrões ou à doméstica. Uma relação de opressão só é possível de ocorrer de forma "perfeita" quando opressor e oprimido se reconheçam e não se sintam incomodados com os papéis que representam.
A situação de conforto acaba quando Jéssica, filha de Val, decide prestar vestibular em São Paulo, levando a mãe a pedir aos patrões que sua filha fique na casa deles por um tempo. Val deixou a filha ainda muito criança no Nordeste para tentar uma vida melhor em São Paulo, enviando mensalmente dinheiro para a criação dela. Elas não se vêem há 10 anos e a filha mantêm com a mãe um um relacionamento distante, ao contrário do que ocorre entre Val e Fabinho, filho dos patrões, que tem um carinho pela empregada maior do que o que possui pela mãe.
O filme é repleto de cenas antológicas e a primeira delas, a meu ver, é quando Val compra um presente de aniversário para a patroa, que finge gostar e logo em seguida o devolve para a empregada, para que esta o guarde. A relação funcionário x patrão no Brasil é, a meu ver, e não falando apenas da relação doméstica, muito marcada pela sensação de gratidão, não do empregador pelo empregado, mas sim o inverso. O funcionário tende a ser muito grato à pessoa que paga seu salário, quase como se o patrão estivesse fazendo um favor. É o caso clássico do patrão que doa suas roupas velhas para o filho da doméstica e em troca espera receber uma gratidão eterna.
A chegada de Jéssica causa imediatamente um estranhamento a todos os habitantes da casa, inclusive a Val. Os patrões ficam boquiabertos ao saber que Jéssica prestará o mesmo vestibular que Fabinho, reagindo quase que por inércia numa tentativa de desacreditá-la e diminuir sua chance, tomando como base a provável pouca qualidade do ensino obtido pela menina no Nordeste. Mas Jéssica é confiante e ao demonstrar esta confiança é vista especialmente pela casa como alguém arrogante, inclusive por Val? Onde já se viu filha de empregada ter nariz em pé? Vejo essa situação de "arrogância" na relação que existe hoje entre patrões e pedreiros. Quantas vezes não vi pessoas reclamando do valor cobrado por estes e mais, achando um absurdo quando o pedreiro recusa um trabalho por um salário. Poucas coisas incomodam mais um patrão do que um funcionário audacioso que ousa agir dessa forma. No filme, a chegada de Jéssica torna Val visível e isso incomoda a todos, inclusive à personagem principal.
O filme segue com esta relação tensa entre a casa e Jéssica. Após uma pequena e desnecessária história de amor não realizado entre o patrão e Jéssica, que deveria ser cortada do filme porque é uma perda de tempo, a tensão explode no momento em que Fabinho joga Jéssica na piscina, causando uma revolta tanto na patroa quanto em Val. Como já dito, para que uma relação deste tipo exista, é fundamental que opressor e oprimido a vejam com naturalidade e ao entrar na piscina a filha da empregada quebra esta relação. A piscina, símbolo de status e conforto, não é lugar de empregado, assim pensam opressor e oprimido. Após outros entreveros, Jéssica deixa a casa e assim faz Val começar a abrir os olhos para sua própria situação. O estopim para a abertura dos olhos de Val é o resultado de Jéssica e Fabinho vestibular. Como já esperado em todo o filme, não nos surpreendemos quando a esforçada Jéssica é aprovada na primeira fase, enquanto o playboy Fabinho fracassa. Val está no quarto do menino o acalmando junto à frustrada patroa quando recebe a ligação da filha informando o seu sucesso. A patroa e Fabinho ficam incrédulos e são simplesmente incapazes de parabenizar a empregada "da família" pelo sucesso da filha. Na mesma noite, Val entra pela primeira e última vez, num momento que representa um chega da empregada para a relação de invisibilidade que viver por todos aqueles anos. No dia seguinte Val pede demissão e vai morar com a filha. As transformações no país, especialmente no anos Lula, atingiram principalmente pessoas invisíveis como Val. Nos grandes centros urbanos, ninguém entende como a maioria da população brasileira foi capaz de votar no PT na eleição do ano passado, quando os casos de corrupção já eram claros e a crise econômica já se aproximava. Creditam o sucesso do PT no Nordeste ao Bolsa-Família, quando esquecem ou não sabem que um salário mínimo em 2002 comprava meia cesta básica e hoje compra 3. Por que não sabem? Porque isto atinge apenas pessoas invisíveis e que não interessam à mídia. Por isso não vemos reportagens sobre o efeito do salário mínimo na vida de boa parcela da população, mas sofremos uma enxurrada de notícias negativas sobre o aumento do dólar.
Muitas pessoas em manifestações criticam o estado da educação no país. Sempre digo a estas pessoas que conversem com os atuais ou antigos jovens aprendizes das empresas em que trabalham e vejam a quantidade de jovens de origem pobre fazendo faculdade graças ao Prouni. As universidades particulares são em grande número ruins, isto é claro, mas pergunte a uma mãe como Val o que significa ter um filho com diploma superior e o sonho que isto representa em sua vida. Mais um exemplo de como a mudança ocorreu com pessoas "invisíveis". Tendemos a olhar o que ocorre com nossos superiores, a conversar com eles quando queremos saber a situação do país, quase nunca com os que estão hierarquicamente abaixo de nós. Com estes as pessoas não querem conversa, querem apenas dar conselhos.
O governo do PT acabou e sucumbiu principalmente à corrupção. O partido que se julgava diferente e dono da moral e da ética no país hoje tem como único argumento neste campo dizer que faz o mesmo que todos fizeram. Não foram eleitos para isto e vão pagar caro pelos seus erros, mesmo que sua oposição esteja longe de ser exemplo neste assunto. Pelo contrário. Quando, porém, o PT deixar o poder em 2018, se olharmos e compararmos o Brasil de 2018 com o Brasil de 2002, veremos um país melhor. Isto é fato.
Um outro grande erro do PT foi não reconhecer o mérito das coisas boas feitas pelo governo anterior. Espero que o governo que o suceder não cometa o mesmo erro e siga este processo de mudanças. Nosso país precisa acabar urgentemente com os resquícios da escravidão nas relações trabalhistas e com a invisibilidade das classes mais pobres. O PT começou este processo e historicamente terá este mérito.

9 comentários:

  1. Ótima análise. E todos são textos são bem esclarecedores e lúcidos. Parabéns

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  2. Este comentário foi removido pelo autor.

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  3. Graças a Deus não participo de nenhuma rede social. Não teria estomago para ler comentários de um bando de HIPÓCRITAS elogiando este filme.
    Adorei seu texto. Ganhou uma fã.

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    1. Oi Deni. As redes sociais têm falado pouco sobre o filme, acho que isso mudará com uma provável indicação ao Oscar. Mas concordo contigo, as mesmas pessoas que postam coisas dizendo que o o Brasil está na maior crise de todos os tempos postarão coisas dizendo que o filme é lindo. Sinto que as pessoas são incapazes de enxergar as relações que vivem.
      E obrigado pelo elogio. Abs.

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  4. Oi Deni! Sei que imagina diversas pessoas da elite dando gargalhadas ao ver as cenas tocantes do filme. Mas a mensagem final é o que realmente importa: a filha da empregada a fez abrir os olhos para a situação de servidão em que vivia, o que a fez romper com essa situação. Hoje as pessoas não aceitam mais viver de maneira análoga à escravidão, nessas mini-senzalas que são as casas dos patrões, As pessoas estão melhorando sua escolaridade, o que permite que elas tenham escolhas. Elas podem escolher onde trabalhar e com o que trabalhar. Desejo ainda estar viva e ver que ninguém mais trabalha como doméstica, que ninguém mais se permita trabalhar como escravo servidor por falta de opção, por falta de escolha. Beijos te amo minha irmã! E parabéns ao blog pelo excelente texto.

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  5. Olá. Obrigado pelo elogio. E concordo plenamente contigo quanto à importância do poder de escolha. Esta é a grande conquista do Brasil neste período de mudanças da última década.
    abs.

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  6. Este comentário foi removido pelo autor.

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  7. Excelente análise sobre um filme que expões bem a relação da denominada classe média com os seus "subordinados" em especial a esse resquício de nosso passado escravocrata que é manutenção de empregada doméstica...gostei muito destas ponderações...

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