A primeira etapa para a solução
de um problema é o seu diagnostico. Alexandre Garcia num edital do Bom Dia
Brasil há uma ou duas semanas negou a existência do racismo no Brasil até a
criação das cotas raciais em universidades. Segundo ele, foram estas cotas
criaram a divisão racial no Brasil. Desta forma, em sua visão, o problema não
existia, é recente. Boa parte do seu público provavelmente acreditou. Numa
sociedade em que a reflexão perde para o impulso e o texto foi subjugado pelo
poder da imagem, não existe tempo para pensar. Precisa-se de alguém que faça
isso pela maioria inerte e Alexandre Garcia cumpre este papel. Assume a posição
de especialista que diz o que se deve pensar e concluir sobre um assunto. Não
há espaço para debate em uma sociedade com pressa na realização de atividades
inócuas e medrosa.
Sou
um típico brasileiro branco de classe média, cercado em boa parte de pessoas
brancas de classe média com típicos empregos de classe média. Boa parte delas
são incapazes de enxergar que quase todos os seus colegas são brancos, que
quase todos os seus chefes são brancos, que quase todos os restaurantes que
frequentam só possuem pessoas brancas, assim como shoppings, casas noturnas,
bares etc. E boa parte acredita que não há racismo no Brasil. E boa parte
acredita na meritocracia. Em que momento perdeu-se a capacidade de pensar e de
enxergar com o mínimo de reflexão o mundo que cerca?
O
individualismo nos cega. O conceito propagado de meritocracia faz com que
supervalorizamos qualquer conquista medíocre obtida e que achemos que ela é
apenas fruto de algo conceituado como esforço pessoal. A falta de estudo de
sociologia nas escolas na minha geração ajudou a criar uma geração egoísta que
é incapaz de enxergar que somos frutos não apenas de nossas ações individuais,
mas de tudo que aconteceu no nosso passado. Há todo um aparato intelectualmente
fraudulento disposto a tornar o indivíduo cada vez mais arrogante e mesquinho. Para
este tipo de indivíduo, basta um exemplo de sucesso (quase sempre o Pelé) para
desqualificar qualquer tentativa séria de abordagem deste assunto. Não há
choque com a violência causada pela desigualdade, o maior esforço é em negá-la,
na maioria das vezes desqualificando a relação entre pobreza e cor da pele.
A
escravidão foi o maior e mais importante crime já cometido no Brasil. Suas
raízes permanecem vivas até hoje, 127 anos após o seu fim. Gerou uma
desigualdade óbvia, mas “invisível” diante de uma geração incapaz de pensar
observando o que está a sua volta. O primeiro passo para enfrentarmos esta questão
é a aceitação que ela existe. Isto exige reflexão e noção de que há algo mais
importante do que o próprio umbigo.
Tratar
os desiguais de forma igual aumenta a desigualdade. Isto é um princípio
jurídico e econômico. A população negra sofreu um crime perpetrado por um
modelo econômico de séculos passados do qual fez parte o Estado brasileiro.
Nenhum brasileiro vivo tem hoje alguma culpa por aquilo. Mas somos todos
culpados se continuarmos incapazes de enxergar as consequências deste crime na nossa
sociedade atual e se nada fizermos para consertá-la. O primeiro passo é o
diagnóstico do que vemos e não notamos. A cumplicidade silenciosa também é criminosa, fruto da forma banal como enxergamos as injustiças à nossa volta.
As
cotas raciais são o começo da solução e vem obtendo sucesso apesar de todo o
aparato criado para desqualificá-las. Ver universidades brasileiras se
diversificando é um início de alento para quem se sente agredido com esta
situação. Se você acredita no que disse Alexandre Garcia, compre um livro de
história do Brasil. E se acredita na propagada democracia racial brasileira, veja
a foto que dá início ao texto. É do jogo entre Brasil e Colômbia nas
quartas-de-final da copa de 2014 em Fortaleza. Segundo o IBGE, 76% da população
desta cidade é negra. Para quem é capaz de enxergar o óbvio, esta foto diz
tudo. Quem não é, faz parte do grande problema, o racismo silencioso de todos os dias.
Creio que a capacidade de reflexão não foi perdida, e sim nunca adquirida pela grande maioria (95%) dos brasileiros.
ResponderExcluirJoão, não gosto de dizer "sempre foi e sempre será". Mas nesse caso os dados históricos demonstram isso. A informação nunca foi algo disseminado para a grande parte da população, sempre foram poucos dominando muitos, em todos os sentidos, inclusive o cultural e de disseminação da informação. Essa que quando cerceada torna o indivíduo incapaz de refletir sobre seu mundo a volta.
ResponderExcluirEsses dias assisti uma palestra bem legal do Leandro karnal, segue o link abaixo. Ele reflete sobre servidão voluntária, e acho que entra um pouco no contexto de sua reflexão. Pois refletir e questionar é ser livre de dogmas, e isso traz dúvida, angústia e medo. É mais fácil acreditar que sempre tudo foi assim, e que Deus quis.
https://www.youtube.com/watch?v=GGeWvC-iKyc
Eu também gosto muito do leandro karnal e esta palestra dele é brilhante.
ExcluirSobre a relação opressor x oprimido, eu acredito que é fundamental para que ela exista que não apenas o opressor, mas também o oprimido enxergue uma certa naturalidade nesta questão. Eu escrevi um texto sobre a relação de gratidão que funcionários têm em relação ao chefe que retrata meu ponto de vista sobre isso e sobre como existe uma certa doutrina à admiração pelo empresário empreendedor.
Vivemos um período de inversão de valores. O que me motivou a escrever este texto foi uma conversa com uma pessoa sobre racismo, que segundo ela não existe. Em um certo momento a questionei sobre a quantidade de colegas de trabalho negros que ela possuía e ela fez uma cara de "eu nunca tinha pensado nisso". A minha conclusão da cara dele é que ela opinava sobre o assunto sem em nenhum momento refletir sobre o assunto, apenas repetindo o que havia ouvido sobre o assunto. Há muita valorização na ação, muito pouco espaço para a reflexão.