A principal característica do
momento de judicialização da política brasileira é a inversão da relação
causa-consequência. Desde 2015, a consequência aparece antes da causa, que é
criada e se ajusta para a obtenção do objetivo procurado. Os dois exemplos que
darei neste texto são o impeachment de Dilma Roussef e a prisão de Lula. Em
seguida, procurarei mostrar o papel da mídia em naturalizar esta inversão e
como ela se adequa ao período da pós-verdade.
Dilma Roussef assumiu seu segundo
mandato em janeiro de 2015. Em março do mesmo ano, aproximadamente 75 dias após
esta posse, mais de um milhão de pessoas foram à Avenida Paulista pedir o seu
impeachment. Meios da grande mídia, mercado financeiro e membros do Judiciário
apoiaram a passeata. Já se sabia qual era a consequência desejada, mas ainda
faltava criar uma causa que a justificasse legalmente. Para isto, inventou-se
um crime de responsabilidade fiscal. Dilma teria cometido a tal das pedaladas
fiscais, atrasando o pagamento do governo a bancos públicos para supostamente
melhorar o balanço. Não há nenhum indício comprobatório de que a presidente
efetivamente houvesse ordenado isto a seus ministros e o suposto crime havia
sido cometido na gestão anterior. A Constituição deixa claro que é necessária
comprovação de intenção do presidente no cometimento do crime e que este só
pode ser julgado por coisas que aconteceram no atual mandato. Mas foda-se. É o
que conseguiram achar como suposta causa para justificar a consequência que já
desejavam. É o que legitimaria a farsa. A mídia fez seu papel de convencer a
população que lá havia um motivo. Durante a votação na Câmara, ficou claro que
ninguém estava nem aí para o suposto motivo. Família, Deus, maçonaria, corretores
de seguros, Sérgio Moro, general torturador, economia, tudo foi citado, menos o
tal crime. No fundo, ele era completamente insignificante.
A segunda consequência pedida
naquela mesma passeata era a prisão de Lula. Eles ainda não sabiam o porquê a queriam,
apenas a queriam. A maioria das respostas era “porque ele é ladrão”, seguido
por gritos de “viva Cunha”. Mais uma vez, era necessário encontrar uma causa
que justificasse esta consequência. Durante o clamor desta parcela da
população, o dono de uma empreiteira foi preso. Após quase um ano em prisão
preventiva, depois de negar várias vezes o envolvimento do ex-presidente a quem
se buscava culpar, aceitou delatá-lo. Disse que tentou vender um apartamento
para ele e que, como acreditava que a venda ocorreria, reformou este imóvel e
depois cobraria este valor em reforma. Note que a situação é tão bizarra que
não é o imóvel que seria a propina, mas a reforma do mesmo. Lula desistiu da
compra, todo o sistema de propina é uma mera suposição, mas foda-se. Num dos
interrogatórios contra Lula, Sérgio Moro perguntou sobre a instalação de um
elevador no imóvel da discórdia. Usou sempre verbos no passado, indicando que a
instalação deste elevador aconteceu e que seria uma das grandes “provas” de que
este processo no futuro do pretérito era real. Nesta semana, um grupo do MTST
ocupou o imóvel e descobriu-se que não há nenhum elevador ou indícios de que
uma reforma tenha ocorrido por lá nos últimos tempos. Durante todo este
período, nenhum órgão de mídia se interessou por um furo de reportagem de
visitar o apartamento. Mais do que isto, o juiz do caso não permitiu que a
defesa vistoriasse o imóvel prova da acusação. Uma situação bizarra.
Na era da inversão da relação
causa-consequência, a simples existência de um processo já é o suficiente para
que se legitime a realização de uma vontade, neste caso de punição. Dilma foi
afastada e Lula foi preso pela vontade de um grupo de pessoas poderosas, a
partir de causas forjadas que foram inventadas depois das consequências. O judiciário
politizado fez sua parte de criar processos a partir destas invenções. A mídia
fez sua parte ao endeusar este judiciário, tornando seus membros heróis nacionais
e reinterpretando o sentido da palavra Justiça. Vivemos um período em que a
vontade de alguns se sobrepõe sobre a verdade. Judiciário conservador, elitista e retrógrado, mercado financeiro rentista, mídia que faz o jogo desta turma. Cada um fazendo sua parte. O Brasil se tornou o país das
causas inventadas. O país da pós-verdade.
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