Eu estudei em uma escola em que
uma vez por semana tínhamos que cantar o hino nacional. Se não me engano era às
7:30, hora em que deveriam começar as aulas, todas as quintas-feiras. Eu estava
entre as pessoas que queriam fugir do solene evento. Algumas delas tinham
sorte. Simplesmente chegavam mais tarde as quintas, aproveitando quinze minutos
a mais de sono enquanto os coleguinhas berravam “do mar e à luz do céu profundo”.
Eu chegava cedo, por isso eu e um grupo de alunos, sem combinar, fugíamos do
hino indo direto para a sala de aula. Lá, colocávamos a conversa em dia e
comíamos. Logo fomos descobertos, não era o melhor esconderijo do mundo,
afinal. Mas é inegável que o hino tinha o mérito de fazer alguns alunos irem
antes para a sala de aula. Como punição, nós escondidos tivemos que, na semana
seguinte, segurar a bandeira enquanto ela era hasteada. A escola inteira ficava
nos observando, por isso era importante neste caso mexer bastante a boca e
tentar cantar o mais alto possível. A escola, porém, percebeu que alguns alunos
apenas mexiam a boca durante o hino, sem emitir som, quase um playback. Por
isso, a mesma pessoa que nos descobriu escondidos na sala de aula passava
durante o hino verificando se os alunos o estavam realmente cantando. O hino
deve que ser adiado para às 7:40 em razão disto. Havia apenas uma funcionária
para vistoriar as salas de aula e para passar pelos alunos enquanto eles
berravam “fulguras ó Brasil florão da América”. Isto significa que os alunos
que chegavam 15 minutos atrasados para não cantar o hino passaram a chegar 25
minutos atrasados. Vinte e cinco minutos a mais de sono. Sagazes, nós que
evitávamos o hino, mas estávamos na escola, encontramos um novo esconderijo,
que era atrás da quadra onde eram realizadas as aulas de educação física. Fomos
descobertos depois de duas fugas. Ninguém acreditou que estávamos simplesmente
chegando atrasados. Lá fomos nós novamente hastear a bandeira e cantar o hino
na frente de toda a escola. Depois de um tempo, ficamos sabendo que o
esconderijo foi descoberto graças à delação de um coleguinha. Era o princípio
da delação premiada.
Não acho que o projeto escolar
deu muito certo. Possivelmente não sei cantar o hino inteiro até hoje. Sei
cantar só a primeira parte por causa do futebol, mas a segunda parte acho que
não. Quando fui me alistar no exército, tive uma cerimônia de hino semelhante
às da escola. Ficamos alinhados e, após uma ameaça de um senhor que subiu num
palanque (“vocês ficarão aqui a porra do dia inteiro até cantar direito esta
merda”, exatamente nestas palavras), cantamos perfeitamente a primeira parte, a
plenos pulmões. Na hora do “deitado eternamente em berço esplêndido”, o
silêncio tomou conta do recinto. Alguns balbuciavam qualquer coisa para fingir
que estavam cantando, outros riam. O senhor do palanque não cumpriu a promessa.
Dava pra ver que ele queria mesmo era ir embora.
Eu acho o hino brasileiro difícil
e chato. Ninguém sabe exatamente o que está cantando. Apenas decoramos e vamos
indo. Não deixa de ser uma simbologia para a vida, aliás. De certa forma, este
hino não deixa de representar bem a forma como o país funciona. A letra do
nosso atual hino é de 1909, vinte anos após a proclamação da República.
Aproximadamente 15% da população brasileira era alfabetizada naquele momento. Boa
parte das palavras era e ainda é desconhecida de boa parte da população. Mas a
elite que o criou não se importava com aquilo. Ela não sentia problema algum em
criar um símbolo nacional que ninguém fora meia dúzia de letrados entendia.
Mais ou menos do mesmo jeito como os juízes do Supremo de hoje se esforçam ao
máximo em manter uma linguagem rebuscada e difícil, garantindo assim que a
maior parte da população seja completamente incapaz de compreender exatamente o
que eles estão falando. A linguagem difícil e rebuscada funciona como uma
espécie de muro que uma elite utiliza para afastar a população do debate. Era
assim em 1909. É assim em 2019. Lembro-me de uma sabatina com o candidato
parisiense Ciro Gomes na Globonews, durante as eleições do ano passado, em que
ele tentava explicar da forma mais simples possível o seu projeto de limpar o
nome dos devedores do SPC. Ele foi logo interpelado por um dos jornalistas, que
criticava a linguagem que Ciro estava utilizando. Ciro respondeu adotando uma
linguagem técnica e complicada, terminando com um “agora você jornalista está
feliz, ninguém em casa entendeu”. É isto.
“Ordem e progresso”. No lema da
bandeira nacional, o progresso vem através da ordem. Não é liberdade e
progresso. Ou igualdade e progresso. Ou respeito é progresso. É “ordem e progresso”.
“Ordem” é a palavra usada para justificar todos os movimentos autoritários que
tivemos. O golpe de 1964 queria reestabelecer a “ordem”. Bolsonaro quer
reestabelecer a “ordem”. A mesma “ordem” de 1909. A ordem que mantém a
desigualdade.
A parte que mais me incomoda em
nosso hino é “Dos filhos deste solo é mãe gentil”. É um verdadeiro escárnio que
alguém tenha escrito isto, especialmente em 1909. Um verdadeiro desrespeito com
a sociedade da época e com a nossa história que ainda é recente. A escravidão
havia acabado havia apenas 21 anos. Milhões de brasileiros ainda vivos haviam
sofrido o mais grave crime de nossa história. Tiveram uma abolição que nada fez
para reparar o crime dos quais foram vítimas. Como assim “Dos filhos deste solo
és mãe gentil”? Oitenta e cinco por cento da nossa população era analfabeta. Como
assim “Dos filhos deste solo és mãe gentil”? Mulheres eram proibidas de votar,
as eleições eram controladas por coronéis paulistas e mineiros através de
fraudes. Como assim “Dos filhos deste solo és mãe gentil”? O correto seria Dos
filhos deste solo és mãe cruel. Cruel com os milhões de índios nativos
exterminados. Com os milhões de negros trazidos de forma forçada, em navios
cuja maioria morria no trajeto, para uma vida infernal de mercadoria. A elite
brasileira tentou através deste hino cafona encobrir a própria história. De
certa forma deu certo até, cantamos “Dos filhos deste solo é mãe gentil até
hoje”.
A ministra da Família, Mulher e
Diretos Humanos mentiu sobre seu diploma de curso superior. O ministro do Meio-Ambiente
mentiu sobre um mestrado que teria feito em Yale. O ministro da Justiça chama
de mestrado um MBA caro que fez em Harvard, mesmo sem falar bem inglês. Este
governo é uma mentira. Não é à toa que um projeto como filmar crianças cantando
hinos em escola surja num governo assim. A criação de projetos imbecis como
estes serve para esconder a própria farsa. Afinal, o que será feito com os
vídeos das crianças cantando? Vão contratar pessoas para assisti-los? Cada
aluno terá uma nota no boletim? Quem cantar mal perde ponto no Enem? A escola
que não mandar os vídeos será descredenciada? Uma comissão analisará o comportamento
do aluno na hora do vídeo?
O Brasil não é o único país com
este tipo de jequice em relação a hinos. Isto fica claro no cenário esportivo.
Lembro-me que na Copa América de 2011, Lionel Messi virou polêmica na Argentina
por não cantar o hino. O mesmo ocorre com os jogadores de famílias turcas que
representam a Alemanha, que se recusam a cantar o hino alemão. Zidane não
cantava a Marselhesa na Copa de 2006. Alguns jogadores negros de futebol
americano se ajoelhavam como protesto durante o hino nacional em jogos da NFL.
Hinos significam algo. Nossa pátria mãe não é gentil. É cruel. “Paz no futuro e
glória no passado”. Nosso passado é marcado por genocídios e escravidão. No
presente não fazemos nada para resolver os erros deste passado. Nosso futuro
não será muito diferente enquanto investirmos na ideia tosca de que patriotismo
é cantar um hino mal escrito, que não representa e desrespeita nossa história,
como se estivéssemos fazendo algo importante. Este governo criou o que chamo de
nacionalismo bocó. Bolsonaro e seus seguidores têm total desprezo pela nossa
cultura e por tudo que é brasileiro. O seu nacionalismo se resumo a cantar um
hino que nem sabem o que diz e a balançar a bandeira. Ignoram completamente
nossa história. Todo governo medíocre intelectualmente se preocupa em excesso com símbolos nacionais. Utilizam esta preocupação para esconder a própria mediocridade. Este governo sabe que é medíocre. Por isso inventam tantos títulos que não têm. “E teu futuro espelha esta grandeza”. Não há grandeza alguma em
nosso futuro próximo.