terça-feira, 26 de fevereiro de 2019

O Hino Nacional - "Do filho deste solo és mãe gentil????"



Eu estudei em uma escola em que uma vez por semana tínhamos que cantar o hino nacional. Se não me engano era às 7:30, hora em que deveriam começar as aulas, todas as quintas-feiras. Eu estava entre as pessoas que queriam fugir do solene evento. Algumas delas tinham sorte. Simplesmente chegavam mais tarde as quintas, aproveitando quinze minutos a mais de sono enquanto os coleguinhas berravam “do mar e à luz do céu profundo”. Eu chegava cedo, por isso eu e um grupo de alunos, sem combinar, fugíamos do hino indo direto para a sala de aula. Lá, colocávamos a conversa em dia e comíamos. Logo fomos descobertos, não era o melhor esconderijo do mundo, afinal. Mas é inegável que o hino tinha o mérito de fazer alguns alunos irem antes para a sala de aula. Como punição, nós escondidos tivemos que, na semana seguinte, segurar a bandeira enquanto ela era hasteada. A escola inteira ficava nos observando, por isso era importante neste caso mexer bastante a boca e tentar cantar o mais alto possível. A escola, porém, percebeu que alguns alunos apenas mexiam a boca durante o hino, sem emitir som, quase um playback. Por isso, a mesma pessoa que nos descobriu escondidos na sala de aula passava durante o hino verificando se os alunos o estavam realmente cantando. O hino deve que ser adiado para às 7:40 em razão disto. Havia apenas uma funcionária para vistoriar as salas de aula e para passar pelos alunos enquanto eles berravam “fulguras ó Brasil florão da América”. Isto significa que os alunos que chegavam 15 minutos atrasados para não cantar o hino passaram a chegar 25 minutos atrasados. Vinte e cinco minutos a mais de sono. Sagazes, nós que evitávamos o hino, mas estávamos na escola, encontramos um novo esconderijo, que era atrás da quadra onde eram realizadas as aulas de educação física. Fomos descobertos depois de duas fugas. Ninguém acreditou que estávamos simplesmente chegando atrasados. Lá fomos nós novamente hastear a bandeira e cantar o hino na frente de toda a escola. Depois de um tempo, ficamos sabendo que o esconderijo foi descoberto graças à delação de um coleguinha. Era o princípio da delação premiada.
Não acho que o projeto escolar deu muito certo. Possivelmente não sei cantar o hino inteiro até hoje. Sei cantar só a primeira parte por causa do futebol, mas a segunda parte acho que não. Quando fui me alistar no exército, tive uma cerimônia de hino semelhante às da escola. Ficamos alinhados e, após uma ameaça de um senhor que subiu num palanque (“vocês ficarão aqui a porra do dia inteiro até cantar direito esta merda”, exatamente nestas palavras), cantamos perfeitamente a primeira parte, a plenos pulmões. Na hora do “deitado eternamente em berço esplêndido”, o silêncio tomou conta do recinto. Alguns balbuciavam qualquer coisa para fingir que estavam cantando, outros riam. O senhor do palanque não cumpriu a promessa. Dava pra ver que ele queria mesmo era ir embora.
Eu acho o hino brasileiro difícil e chato. Ninguém sabe exatamente o que está cantando. Apenas decoramos e vamos indo. Não deixa de ser uma simbologia para a vida, aliás. De certa forma, este hino não deixa de representar bem a forma como o país funciona. A letra do nosso atual hino é de 1909, vinte anos após a proclamação da República. Aproximadamente 15% da população brasileira era alfabetizada naquele momento. Boa parte das palavras era e ainda é desconhecida de boa parte da população. Mas a elite que o criou não se importava com aquilo. Ela não sentia problema algum em criar um símbolo nacional que ninguém fora meia dúzia de letrados entendia. Mais ou menos do mesmo jeito como os juízes do Supremo de hoje se esforçam ao máximo em manter uma linguagem rebuscada e difícil, garantindo assim que a maior parte da população seja completamente incapaz de compreender exatamente o que eles estão falando. A linguagem difícil e rebuscada funciona como uma espécie de muro que uma elite utiliza para afastar a população do debate. Era assim em 1909. É assim em 2019. Lembro-me de uma sabatina com o candidato parisiense Ciro Gomes na Globonews, durante as eleições do ano passado, em que ele tentava explicar da forma mais simples possível o seu projeto de limpar o nome dos devedores do SPC. Ele foi logo interpelado por um dos jornalistas, que criticava a linguagem que Ciro estava utilizando. Ciro respondeu adotando uma linguagem técnica e complicada, terminando com um “agora você jornalista está feliz, ninguém em casa entendeu”. É isto.
“Ordem e progresso”. No lema da bandeira nacional, o progresso vem através da ordem. Não é liberdade e progresso. Ou igualdade e progresso. Ou respeito é progresso. É “ordem e progresso”. “Ordem” é a palavra usada para justificar todos os movimentos autoritários que tivemos. O golpe de 1964 queria reestabelecer a “ordem”. Bolsonaro quer reestabelecer a “ordem”. A mesma “ordem” de 1909. A ordem que mantém a desigualdade.
A parte que mais me incomoda em nosso hino é “Dos filhos deste solo é mãe gentil”. É um verdadeiro escárnio que alguém tenha escrito isto, especialmente em 1909. Um verdadeiro desrespeito com a sociedade da época e com a nossa história que ainda é recente. A escravidão havia acabado havia apenas 21 anos. Milhões de brasileiros ainda vivos haviam sofrido o mais grave crime de nossa história. Tiveram uma abolição que nada fez para reparar o crime dos quais foram vítimas. Como assim “Dos filhos deste solo és mãe gentil”? Oitenta e cinco por cento da nossa população era analfabeta. Como assim “Dos filhos deste solo és mãe gentil”? Mulheres eram proibidas de votar, as eleições eram controladas por coronéis paulistas e mineiros através de fraudes. Como assim “Dos filhos deste solo és mãe gentil”? O correto seria Dos filhos deste solo és mãe cruel. Cruel com os milhões de índios nativos exterminados. Com os milhões de negros trazidos de forma forçada, em navios cuja maioria morria no trajeto, para uma vida infernal de mercadoria. A elite brasileira tentou através deste hino cafona encobrir a própria história. De certa forma deu certo até, cantamos “Dos filhos deste solo é mãe gentil até hoje”.
A ministra da Família, Mulher e Diretos Humanos mentiu sobre seu diploma de curso superior. O ministro do Meio-Ambiente mentiu sobre um mestrado que teria feito em Yale. O ministro da Justiça chama de mestrado um MBA caro que fez em Harvard, mesmo sem falar bem inglês. Este governo é uma mentira. Não é à toa que um projeto como filmar crianças cantando hinos em escola surja num governo assim. A criação de projetos imbecis como estes serve para esconder a própria farsa. Afinal, o que será feito com os vídeos das crianças cantando? Vão contratar pessoas para assisti-los? Cada aluno terá uma nota no boletim? Quem cantar mal perde ponto no Enem? A escola que não mandar os vídeos será descredenciada? Uma comissão analisará o comportamento do aluno na hora do vídeo?
O Brasil não é o único país com este tipo de jequice em relação a hinos. Isto fica claro no cenário esportivo. Lembro-me que na Copa América de 2011, Lionel Messi virou polêmica na Argentina por não cantar o hino. O mesmo ocorre com os jogadores de famílias turcas que representam a Alemanha, que se recusam a cantar o hino alemão. Zidane não cantava a Marselhesa na Copa de 2006. Alguns jogadores negros de futebol americano se ajoelhavam como protesto durante o hino nacional em jogos da NFL. Hinos significam algo. Nossa pátria mãe não é gentil. É cruel. “Paz no futuro e glória no passado”. Nosso passado é marcado por genocídios e escravidão. No presente não fazemos nada para resolver os erros deste passado. Nosso futuro não será muito diferente enquanto investirmos na ideia tosca de que patriotismo é cantar um hino mal escrito, que não representa e desrespeita nossa história, como se estivéssemos fazendo algo importante. Este governo criou o que chamo de nacionalismo bocó. Bolsonaro e seus seguidores têm total desprezo pela nossa cultura e por tudo que é brasileiro. O seu nacionalismo se resumo a cantar um hino que nem sabem o que diz e a balançar a bandeira. Ignoram completamente nossa história. Todo governo medíocre intelectualmente se preocupa em excesso com símbolos nacionais. Utilizam esta preocupação para esconder a própria mediocridade. Este governo sabe que é medíocre. Por isso inventam tantos títulos que não têm. “E teu futuro espelha esta grandeza”. Não há grandeza alguma em nosso futuro próximo.

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2019

Crazy Rich Brazilians



Trabalhei por um bom tempo numa editora que tinha uma grande revista de moda voltada para gente muito rica. Mas muito rica mesmo. Eu trabalhava na área de compras e em um dado momento fui chamado para uma reunião com a diretora de redação desta grande revista (não é a diretora da foto). A reunião era para fechar o processo de instalação de um novo estúdio fotográfico. Por motivos que acho até corretos, eu nunca era envolvido diretamente no processo de compras deste tipo de serviço. Acreditava-se que eu não tinha o conhecimento técnico dos detalhes para este tipo de contratação, e as pessoas que achavam isto estavam certas. Se eu fosse contratar a instalação de um estúdio certamente ficaria uma merda. Mas bom, a diretora da grande revista de moda contratou os serviços de um arquiteto amigo dela. Ele era dono de um escritório muito renomado e cobraria algo em torno de R$ 70 mil reais para a realização do serviço. Eu fui chamado para a reunião basicamente para ser informado disto e porque precisavam que alguém lançasse este pagamento no sistema para que o financeiro pagasse. Disse que ok e, um pouco antes de sair, a diretora me pediu que eu fizesse uma cotação com três pedreiros para trabalhar na instalação desta obra do escritório arquitetônico. No dia seguinte voltei com a melhor cotação que eu possuía dos pedreiros que eu já conhecia no valor de R$ 1 mil. Ela deu uma olhada rápida (ou de soslaio, como vivo encontrando em livros) e falou pra eu negociar com o pedreiro por R$ 900. A primeira característica básica da elite brasileira que aprendi no contato com esta editora é que pessoas ricas não valorizam trabalho braçal. Elas não se importam em pagar R$ 70 mil para o arquiteto, mas querem negociar e tirar R$ 100 do pedreiro. A segunda é que a negociação com o mais fraco não é feita por necessidade, e sim por ego. Os R$ 100 do pedreiro não fariam diferença. A obra de R$ 76 mil seria a mesma da obra de R$ 75,9 mil. A questão é simplesmente tirar algo de quem é mais fraco.
Redações de editoras no Brasil são, em geral, bastante subdivididas. A parte pensante, o trabalho intelectual, é basicamente feita por gente rica. A maioria filha de alguém que é filha de alguém etc. Pessoas com intercâmbio na adolescência, viagens e muita, mas muita experiência em futilidades. Este é, aliás, o principal motivo para que as atuais revistas no Brasil, sobre quase todos os assuntos, sejam tão ruins e irrelevantes. Nenhuma revista no Brasil hoje é relevante de verdade, faz alguma diferença. Mais do que a internet ou os sites de fakenews, a principal causa para a decadência do material impresso no Brasil é a total irrelevância do que é escrito. São pessoas cultas e “bem-formadas”, mas fúteis, que desconhecem de forma quase completa a realidade da maioria das pessoas do país. É muito raro abrir uma revista no Brasil hoje e achar algum tipo de debate real. E o principal motivo é a total ausência de diversidade social nas redações. Apenas a divergência de opinião gera crescimento e nestes ambientes não há, portanto, crescimento algum. Abaixo das redações estão as áreas administrativas e operacionais, compostas basicamente por pessoas de classe média. Normalmente temos um diretor ou um gerente de classe média alta, que acha que é rico, comandando uma equipe de classe média que na maioria das vezes possui os mesmos valores que a elite das redações. Por fim, temos o trabalho braçal que é quase sempre feito por pessoas de origens humildes. Editoras são um retrato fiel do Brasil. Uma elite branca rica desde sempre fazendo o trabalho intelectual, uma classe média branca servindo de base operacional para a elite branca e pessoas negras fazendo o trabalho braçal de limpeza ou segurança.
A elite brasileira é historicamente extremamente benevolente entre si e linha-dura com os que estão abaixo. A diretora amiga arruma emprego para o arquiteto amigo que por sua vez contrata o engenheiro amigo, que contrata o advogado amigo e assim vai. Sem muita negociação. “Porque ele é bom”. O mesmo não ocorre com o trabalho braçal que não gosta de fazer. Gostam de pagar o mínimo possível para a empregada que vai lavar o seu banheiro ou para o pedreiro que vai furar a parede em que será colocado o quadro brega comprado numa galeria dos Jardins. Dando trela para algum deles, você logo descobre que eles odeiam a “inflação” nos serviços braçais ocorrida nos anos 2000. “Hoje eles não saem de casa por qualquer valor não”, ouvi duas pessoas dizendo numa conversa de corredor.
A segunda característica da elite brasileira que aprendi nestes anos de Editora é que ela adora festejar. Quando digo adorar, digo adorar mesmo. Tipo, é legal festa, todo mundo gosta. Mas eles realmente gostam. Festejar é quase o que dá sentido à existência bocó que eles têm. As festas têm que ser cada vez maiores e cada vez mais esbanjadores. A primeira coisa a se observar é que as festas desta galera nunca são no fim de semana. “Quem festeja no fim de semana é pobre”, eles acreditam. “Muita gente na rua, não gosto de coisa lotada”, é um dos argumentos. Festa de rico é na terça-feira. Como eles não têm coisas importantes para pensar, a festa ocupa muito tempo da vida deles. Qual roupa usar? Quem vai? Muita alegria, ostentação, fotos, celebridades e bebidas pegando fogo. A necessidade de festejar é proporcional à necessidade de ostentar, por isso os eventos desta galera estão cada vez mais malucos. Tenho um conhecido rico do mercado financeiro que foi numa despedida de um colega do mercado financeiro na Croácia. Vi outro dia em algum programa X que uma pessoa rica ia anunciar qual o sexo do bebê pulando de paraquedas. No salto iam soltar uma fumaça ao melhor estilo Damares, rosa ou azul. Casamentos extravagantes, aniversários temáticos, praia, neve, qualquer coisa que faça uma existência inútil e insignificante parecer ter sentido. Não há problemas em esbanjar na extravagância. Mas é necessário negociar os R$ 100 do pedreiro.
A classe média adora ser convidada para eventos da elite. A grande revista de moda faz uma puta festa uma vez por ano, na época do Carnaval. Um ou outro funcionário da classe média operacional era convidado, como agradecimento pelos serviços prestados e prêmio. Se a elite passa uma semana ocupada com a festa da terça, a classe média passa um mês quando vai brincar por lá. A realidade volta no dia seguinte, na quarta, quando a pessoa da classe média operacional aparece para trabalhar, provavelmente cansada e atrasada, batendo ponto, e a pessoa da elite tira uma folga pra descansar. A editora tinha uma outra revista de celebridades que também tinha sua festa anual, esta menos concorrida pela elite. Sobravam mais ingressos para a classe média operacional e era um verdadeiro bafafá a semana toda. Quem ia se sentia invejado. Quem era invejava. Quarta-feira lá estavam invejados e invejosos  trabalhando em relatórios que seriam vistos pela chefia rica só na quinta-feira, porque eles tiraram a quarta de folga.
A elite gosta de subserviência. Não está acostumada a ouvir não. Não há nada mais puto no mundo do que alguém que não está acostumado a ouvir não ouvindo não. Por um curto período da história do Brasil, esta elite ouviu algum não. E não foi um não tão grande assim. Foi um nãozinho, mas já foi suficiente para que ela ficasse putaça. A classe média é subserviente. Aceita e agradece as migalhas. Arruma-se e aluga uma roupa para a festa. Alguns meses depois é demitida. Acabou a verba. A classe média não percebe, mas seu salário é como os R$ 100 do pedreiro. A classe média quer se identificar com a elite, faz tudo para se enganar. A elite faz tudo para enganá-la. Dá certo. A classe média também estava putaça nos últimos tempos.
A Editora Abril deve milhões a funcionários. Enquanto isto, a herdeira dos Civita está no Leste Asiático, em “baladas iradas”. Gastando os R$ 100 dos pedreiros. A festa da diretora da Vogue mostra que a elite se diverte com nossas tragédias. Cria um cenário para reviver o período escravocrata. Cenário que não é tão cenário assim. A casa da diretora provavelmente é igual ao cenário da festa. Casa que deve ter custado milhões. Pensada por um arquiteto que ganhou bem e decorada por um decorador que ganhou bem. E pintada por pedreiros que receberam algo como R$ 1 mil. Ou talvez R$ 900. Tem que economizar R$ 100 dessa galera.

sexta-feira, 8 de fevereiro de 2019

O Flamengo e a tragédia nacional



O Flamengo é, possivelmente junto com o Palmeiras, o clube mais rico do país atualmente. Foi o que mais contratou para a temporada de 2019. Segundo a Fox Sports, o clube tinha em janeiro um orçamento previsto de R$ 100 milhões para contratações nesta temporada. A mídia esportiva acredita que jogadores como Gabriel, Arrascaeta e Rodrigo Caio devam receber mais de R$ 200 mil reais por mês de salário. O técnico Abel Braga tem salário estipulado em R$ 400 mil reais. É a maior torcida do Brasil e o clube que mais recebe da empresa detentora dos direitos de transmissão do futebol no Brasil. Os jogadores da base do clube mais rico do Brasil, que mais contratou, que mais tem torcedores e que mais recebe dinheiro de TV dormiam num alojamento improvisado no Centro de Treinamento, com teto de zinco, ar condicionado mal instalado e sem alvará de funcionamento.
Escrever #forçaflamengo na tragédia de hoje é o equivalente a escrever #forçavale na tragédia de Brumadinho. O Flamengo é o total responsável pelo que aconteceu com seus garotos hoje. Eles estavam sobre responsabilidade do clube e estavam porcamente instalados. Sinto em boa parte da mídia uma tentativa de aliviar a responsabilidade do Flamengo, em parte porque trata-se de uma marca que gera muito dinheiro. O Centro de Treinamento do Flamengo e de primeiro mundo e, a coisa mais absurda, o Flamengo iria colocar os garotos em outro local já na semana que vem. “Foi muito azar”, disse um jornalista hoje. “Foi fatalidade”. Não, não foi. Foi irresponsabilidade de um clube que possui dinheiro, mas que o gasta de outra forma que não garantindo condições mínimas para garotos que tentam realizar seus sonhos em suas dependências. Christian Esmério, Arthur Vinícius, Pablo Henrique da Silva Matos, Vitor Isaías, Bernardo Pisetta, Athila Paixão e Jorge Eduardo Santos. São os nomes das vítimas já anunciadas quando este texto foi escrito. Eles são as vítimas. Não o Flamengo.
Apenas 66% das pessoas no país tem acesso completo à saneamento básico. Vivendo esta situação, o país decidiu que a prioridade era realizar num período de dois anos os dois maiores eventos esportivos do mundo. E aqui não digo que a prioridade foi de um partido político X ou de uma parcela Y da população. Foi de todos. Toda a classe política curtiu o evento, todo o setor empresarial encheu o rabo com ele e a maior parte da população ficou em silêncio aprovador enquanto os eventos eram preparados. A cidade de São Paulo já tinha um estádio pronto para a Copa, o Morumbi. Resolveu fazer outro. O Itaquerão é chique e desnecessário. O banheiro é de mármore e tem uma telinha mostrando o jogo no espelho pra você não perder nada enquanto lava a mão. O Corinthians, dono do estádio, não tem dinheiro para pagá-lo. Vai demorar uma geração para pagar pelo estádio que custa pelo menos o dobro do que deveria custar. Durante sua construção, dois operários morreram num acidente. Fábio Luiz Pereira e Ronaldo Oliveira dos Santos deixaram, respectivamente, três e um filhos. Ninguém lembra dos seus nomes. Na época, o Corinthians prometeu homenageá-los com o nome numa sessão da arquibancada. Não precisou, ninguém mais lembrava deles quando a Copa começou. Não houve nenhuma punição a Corinthians e Oderbrecht, dona da obra, pela morte dos dois operários.
Não houve nenhuma punição pela tragédia de Mariana. A Vale até hoje não pagou nenhuma indenização às vítimas de três anos atrás. A tática da Vale para Brumadinho é a mesma usada em Mariana. Espere o tempo passar. As pessoas esquecem. Logo surge alguma outra notícia. As ações da empresa já recuperaram boa parte do seu valor e teve gente que até lucrou comprando na baixa. Vida que segue.
Lembra do incêndio do Museu Nacional? Da queda do prédio no centro de SP? Não deram em nada. Tragédias choradas e esquecidas. O Brasil é um país sem memória. Um país que esquece suas vítimas. Não é à toa que elegeu na última eleição uma pessoa que faz apologias a um torturador. "Não há memória que o tempo não apague", diz Cervantes em Dom Quixote. O Brasil parece viver isto em outra dimensão. Fazemos questão de esquecer nossa história. É um jeito de não lidar com nossas responsabilidades e com a forma como somos cúmplices de uma sociedade que esmaga pobres para garantir privilégios a ricos. Um país que coloca jovens em alojamentos provisórios toscos para pagar salários maiores a adultos consagrados. Um país que mata operários miseráveis para proporcionar uma Copa do Mundo a uma elite preguiçosa. Um país que soterra coitados para garantir lucros a acionistas vagabundos. Um país que libera posse de armas para permitir que gente sem vergonha lucre com a morte vendendo ações. Um país que tem a polícia que mais mata no mundo e que está assistindo em silêncio a liberação de um projeto que impedirá a punição de crimes contra a vida de minorias cometidos por agentes do Estado. Um país que tem uma das maiores populações carcerárias do mundo e que não se importa em ver estas pessoas vivendo em condições sub-humanas. A # desta semana é força Flamengo. Vamos ver qual será a da semana que vem. Talvez o mercado arrume algum jeito de faturar em cima da tragédia destes garotos. É isto que ele faz.

terça-feira, 5 de fevereiro de 2019

A formação e as conseqüências da ausência de pensamento



Uma infecção alimentar causada por um pacote de Doritos me fez permanecer basicamente o dia todo em casa ontem, 04/02, por coincidência o mesmo dia em que o ministro Sérgio Moro lançou aquele que, antes mesmo de ser anunciado, eu já considerava o projeto com nome mais esquisito que eu já tinha visto: “O Pacote de Leis Anticrime”. Lei Anticrime é algo como subir pra cima, descer pra baixo etc. Pude assistir boa parte da cobertura televisiva do assunto.
Eu assistia muito à televisão na minha juventude. Talvez eu devesse voltar a fazer isto para sair um pouco da minha bolha. A questão é que toda vez que tento sair da minha bolha política a tentativa dura uns cinco minutos. A impressão que tenho é que se eu passar uma hora vendo gente que votou no Bolsonaro e apoia o Moro conversando eu vou querer largar tudo e viver no mato desconectado do mundo. É mais ou menos a sensação que tive ontem.
Três livros moldaram a minha forma de enxergar o mundo. A Sociedade do Espetáculo, de Guy Debord, Eichmann em Jerusalém, de Hannah Arendt e Gostaríamos de informa-lo que amanhã seremos mortos com nossas famílias, de Philip Gourevitch. O primeiro trata sobre a espetacularização da vida, sobre a queda de importância do termo aparência e a consequente elevação de patamar da importância da aparência. Tudo é guiado a partir desta segunda característica em razão da mercantilização da vida, tudo passa a ser um produto a ser explorado, inclusive nós mesmos, principalmente no que se relaciona a mercado de trabalho. Os dois outros livros tratam de grandes tragédias da humanidade e do papel do “homem-comum” para que elas acontecessem. Tanto Arendt tratando o Holocausto judaico dos anos 1930-1940 quanto Gourevitch escrevendo sobre o genocídios dos tutsis em Ruanda em 1994 tratam os dois crimes como processos históricos. Tanto judeus, por séculos, quantos os tutsis, por décadas, foram perdendo seus direitos de tal forma que em um dado momento o único direito que ainda restava era a vida, de tal forma que de certa forma tanto o opressor quanto a vítima entendia como o passo lógico a ser dado o extermínio. Para isto é fundamental a existência do “homem-comum”, completamente incapaz de raciocinar, pronto para seguir o movimento de manada e que não consegue mais discernir o certo do errado. Assim era Eichmann, disse Arendt. Ele não era aquilo que tentamos caricaturar como monstro psicopata nazista, era um burocrata de estado que fazia tudo que o chefe mandava sem pensar, que tinha como preocupação básica de sua existência, digamos assim de forma mais moderna, o pagamento de boletos. Assim eram os hutus que praticaram o extermínio em Ruanda, diz Gourevitch. Tanto eles quanto Eichmann não se achavam culpados pelos crimes que cometeram. Eles só cumpriram ordens. 
Como dito no segundo parágrafo, eu realmente via muito TV na minha infância e na minha juventude. Lembro-me de quando os programas de TV do mundo cão começaram a aparecer. O primeiro foi o Aqui Agora, que tentava levar à TV de certa forma a fórmula do jornal Notícias Populares, com muito sangue e alguma manchete absurda. Pode ter havido algum antes, mas para a minha geração a exploração televisiva da violência como produto tem neste programa um marco. A lógica destes programas é manter a população com medo e com ódio. Lá fora é perigoso. Nossas crianças não podem mais sair às ruas, não sabemos se elas vão voltar. Criam-se slogans repetidos a exaustão. Nos anos 90 o Brasil era mais perigoso que a Bósnia. Depois ficou mais perigoso que Kosovo. Nos anos 2000 era mais perigoso que o Iraque. Agora é mais perigoso que a Síria. O Brasil tem 200 milhões de habitantes. A Síria tem 3 milhões. Mas isto não deve ser levado em conta. Isto seria pensar e slogans não lidam com pensamentos.
A geração da minha infância foi marcada por dois grandes crimes envolvendo policiais. Em 1992, numa ação coordenada pelo Governo de SP, ao menos 111 presos desarmados foram executados durante uma tentativa de rebelião. Nenhum policial ou autoridade pública foi presa. Um ano depois, um grupo de empresários do centro do Rio de Janeiro contratou policiais que haviam formado um grupo de extermínio para “limparem” a região próxima da Igreja da Candelária, muito habitada por crianças de rua. A existência destas crianças e os pequenos delitos que algumas praticavam prejudicavam os negócios, uma vez que “pessoas de bem” evitavam aquela região. Os policiais fizeram o trabalho e dez crianças foram mortas. Três policiais foram condenados pelo crime, mas estão em liberdade até hoje. Os sobreviventes e as testemunhas oculares do caso tiveram que sair do Brasil com outra identidade.
Cidade Alerta, Datena, Repórter Cidadão, Marcelo Rezende, todos estes programas e apresentadores ficaram famosos. Bandidos matando, policiais reagindo, propaganda da Car System. A lei atrapalha, dizem os apresentadores. Mais cadeia, mais polícia, mais punição, estas são as soluções. Propaganda de algum produto do Sidnei Oliveira.
Em 2007 surgia o Capitão Nascimento. Aquilo que chamo de psicopata incorruptível. Ele quer justiça, ou ao menos a visão tosca que tem de justiça, e para isso vai matar. Matar bastante. Atira na cabeça. Mata dois com a mesma bala. Tortura um pobre coitado para saber onde está o traficante. Tornou-se o herói do momento. Não deixa de ser sintomático aliás que o filme que tem o policial incorruptível como herói tenha feito sucesso graças a cópias piratas que chegaram antes do que a versão original no cinema. Mas o filme não exigia muita autocrítica de ninguém, afinal. Trabalhar na polícia não tem nada a ver com direito, conclui o tenente Matias em seu processo de transformação de ser racional em ser selvagem, concluído com a última cena. O estudante de direito que debatia Foucault agora atira na cabeça para estragar o velório, estando pronto para a “realidade”. É a moral do filme.
Tropa de Elite levou ao cinema a visão de mundo dos programas mundo cão da TV. Numa entrevista em que reclamava de ter tido um relógio roubado, o apresentador Luciano Huck disse à época que o Brasil precisava de um Capitão Nascimento. Na sociedade do consumo, a demanda gera a oferta. Uma sociedade que quer um Capitão Nascimento em algum momento vai acha-lo. Sérgio Moro apareceu.
Prisões preventivas feitas sem que os motivos previstos em lei fossem atendidos. Prisões preventivas utilizadas como instrumento de tortura psicológica para obtenção de delações premiadas. Vazamentos midiáticos de delações de acordo com movimentações políticas momentâneas. A lei descumprida de forma clara e aberta pela pessoa que deveria defendê-la. Não importa, Datena e Capitão Nascimento já haviam aberto o caminho para que isto fosse não apenas aceitável, mas até elogiável.
Após dizimar a classe política, Moro foi trabalhar para o político que mais se beneficiou deste processo. Sua primeira medida, após trinta dias de mandato, foi o projeto anticrime. Um policial, diz o projeto, não precisa mais ter a sua vida ou ver a vida do refém claramente ameaçada para atirar e matar. Não sofrerá mais processo e não terá mais risco de punição. Pode confundir arma com guarda-chuva sem temer represálias. De certa forma é o que a sociedade queria. Witzel foi eleito prometendo que em seu governo o policial miraria na cabecinha do bandido. Isto depois de participar de uma cerimônia que festejava a morte de uma vereadora por policiais milicianos. Doria foi eleito dizendo que em seu governo o policial atiraria para mandar por cemitério.
Arendt e Gourevitch deixam implícito, ao menos na minha leitura, que a tal da maioria não-pensante só volta a pensar quando a tragédia passa a atingí-la. Hitler só se tornou impopular na Alemanha em 1943. Na Globonews, uma bancada de seis jornalistas brancos de classe média estava em festa com o projeto de Moro. No melhor estilo Datena, vamos enfrentar a bandidagem, eles repetiam. Até o momento que um link entrou com um representante da OAB do Rio de Janeiro. Ele dizia que o projeto era um absurdo. O Brasil tinha há 20 anos metade do número de presidiários que possui hoje e era menos violento. Simplesmente pôr gente na cadeia não resolve a violência, pelo contrário, as cadeias são hoje centro de formação de bandidos perigosos. O jovem entra lá por um pequeno furto e sai integrante do Comando Vermelho. Permitir que um policial atire sem motivos claros, disse ele, é um absurdo. Tornará o trabalho mais perigoso inclusive para os policiais. Muitos jovens negros inocentes serão mortos por esta medida. Por fim, o representante da OAB disse que Moro querer colocar em lei a prisão em segunda instância só mostra que hoje ela é inconstitucional e só serve para lotar ainda mais presídios já superlotados. Os seis apresentadores brancos de classe média se despediram do membro da OAB e ficaram cinco segundos em silêncio. Estavam pensando. Propaganda. Depois começaram a falar sobre Venezuela. Parece que a situação está ruim por lá.

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2019

Os estagiários e a autocrítica



Era algum dia do começo de 2004, acho que abril, quando recebi o email que achei que iria mudar a minha vida. Após um ano de faculdade, eu era chamado para minha primeira entrevista de estágio. A entrevista seria no dia seguinte e eu sequer tinha um terno. Chamei minha irmã e fomos na Colombo da Avenida Paulista. A Colombo era a única loja deste tipo que eu conhecia, basicamente porque fazia propaganda no Mesa Redonda. “A loja do homem elegante”, dizia Chico Lang. Lembro-me até hoje do nome do atendente, David (se falava Deivid). Lembro-me que ele realmente nos atendeu bem, acho que ele realmente gostou de atender um jovem indo para a primeira entrevista. Saí de lá com terno, camisa, calça, gravata e sapato. Eu não sabia dar nó de gravata. David me ensinou, mas eu esqueci. Chegando em casa, por sorte, o Clodovil estava ensinando diferentes nós de gravata e consegui decorar o passo a passo de um deles. Até hoje é o único que sei.
Eu achava fascinante o fato de ser chamado para uma entrevista pelo simples fato de que eu não sabia fazer nada. Jovens brancos privilegiados de classe média em SP em geral não sabem fazer nada e passam a juventude acostumados com a ideia de que sempre terá uma figura feminina fazendo quase um papel de “empregada” em sua vida. Fui cozinhar pela primeira vez com mais de 20 anos. Fiz minha primeira faxina com mais de 30 anos. Furei minha primeira parede aos 32. Eu era um completo inútil social e, de alguma forma, tinha uma noção inconsciente disto. Mas eu sempre achava que boa parte dos meus colegas não tinha noção disto. Eu fiz economia na USP no começo dos anos 2000. Isto significa que basicamente todos os meus colegas eram também jovens brancos inúteis e privilegiados que não sabiam fazer nada. Tínhamos duas exceções, um cara mais velho que vinha do Piauí do qual não gostávamos e zoávamos o sotaque. O outro era um rapaz negro que morava na Cohab em Barueri. Ele era o exemplo que dávamos para justificar o fato de sermos contra cotas. Os 88 jovens brancos adoravam dizer que o jovem negro era a prova de que todos podiam e vivíamos numa sociedade meritocrática.
Cheguei cedo na minha entrevista, era e ainda sou meio neurótico com horário. Como não tinha absolutamente nada a mostrar, achei que talvez chegar cedo fosse a minha maior qualidade. Com o tempo, mais jovens brancos de 20 anos foram chegando, totalmente uniformizados, inexperientes e arrogantes. A sociedade nos prende em bolhas com pessoas da mesma classe social, então realmente achamos as histórias toscas que temos para contar legais. Após isto, começou a minha primeira dinâmica de grupo.
As dinâmicas de grupo sempre começavam com alguma palhaçada. A psicóloga que nos guiava naquele circo dizia que era bom relaxar antes de começar. Cada um tinha que dizer que animal gostaria de ser. Eu sempre me identifiquei com o hipopótamo. Ele fica num canto dentro da água, comendo, sem encher o saco de ninguém. Mas na hora respondi leão. “Porque ele é agressivo e comanda a selva”. Eu não sou agressivo e não comando porra nenhuma. Respondi aquilo porque, sei lá, achei que não iam gostar de um hipopótamo. Depois nos unimos em grupo e tínhamos que montar um negócio em 15 minutos. Não lembro ao certo o que montamos. Uma semana depois recebi um email dizendo que eu não havia sido aprovado para aquela vaga porque não tinha o perfil adequado, mas que meu currículo continuaria na base de dados da empresa para vagas futuras.
O ano de 2004 foi basicamente dedicado a isto. Em alguns momentos, eu chegava a participar de 3 entrevistas por semana. Achava fascinante que tantas empresas estivessem interessadas em contratar um jovem branco inútil e privilegiado. Algumas vezes eu conseguia até passar pela etapa da palhaçada, ou seja, da dinâmica de grupo. Esta fase era sempre comandada por uma mulher branca, enquanto a outra etapa posterior era comandada por um homem branco. Lá estava um antigo jovem branco inútil que havia se transformado num adulto branco inútil e bem remunerado. No fim do ano, consegui finalmente meu primeiro estágio. Fui bem na dinâmica de grupo, em que tínhamos que convencer a psicóloga de que éramos bons através de uma página de orkut. Eu vinha de aprender na faculdade uma curva que mostrava que se você diminuísse impostos de ricos, você poderia aumentar a arrecadação porque o rico ia produzir mais. A psicóloga branca e o chefe branco adoraram ouvir aquilo. Além disso, descobri algumas semanas depois que o chefe branco havia me contratado porque tinha me achado parecido com ele aos 18 anos.
Alguns anos se passaram e minha vida deu uma guinada nesta empresa. Era 2009 e eu iria contratar o meu primeiro estagiário.  Na época eu fiquei feliz, me achei fodão. Mas eu definitivamente não sei contratar ninguém. Não sei o que perguntar, não tenho o menor interesse em saber “o que você pode acrescentar à empresa” e “por que você nos escolheu?”. Eu sei que as respostas verdadeiras são “nada” e “eu só quero um trampo privilegiado em que eu fique dentro de um escritório com ar condicionado”. A parte interessante é que comecei a entender o mecanismo de funcionamento de uma contratação.
O RH não diz que quer apenas jovens brancos inúteis e privilegiados. Ele cria tipos de subterfúgios para garantir que as vagas serão dadas a pessoas assim. Um exemplo, intercâmbio. Por que intercâmbio vale ponto positivo nestas entrevistas? “Porque mostra que ele teve que se virar sozinho na vida”. Não, ele não teve. Ele foi curtir a vida fora do país com o dinheiro dos pais. “Queremos alunos da PUC, do Mackenzie ou da FAAP, porque são as melhores instituições”. Não, você quer alguém que tenha um pai que pague uma fortuna de mensalidade. E é assim nas etapas seguintes da vida. O MBA, por exemplo, serve para isto na vida adulta. 
Lembro-me que na minha primeira contratação, feita na verdade pelo meu chefe, que quis me ajudar no meu primeiro processo, contratamos um jovem que tinha feito intercâmbio. Ao terminar o processo, meu chefe me disse que tínhamos feito uma boa escolha, pois dava pra ver que era um jovem de “boa família”. Que porra significa isso?
Estas entrevistas me enchiam o saco. Todo ano minha área participava do programa de estágio da empresa. Era sempre a mesma coisa. Contratava-se umas 30 pessoas, sendo 29 brancas e 1 negra, afinal um dos slogans da firma era “apoiamos a diversidade”. Vinte e nove pessoas brancas e descoladas, moradoras de Pinheiros, prontas para mostrar ao mundo suas genialidades.
Em algum momento da vida percebi a merda que isto era. Reconheci-me como um bosta e comecei a comentar com meus colegas brancos como os únicos funcionários negros da empresa eram basicamente ligados à área de limpeza. Eles quase nunca concordavam comigo. Afinal, tínhamos o estagiário negro. Empresas de certa forma criaram um mecanismo para manter pessoas como eu, jovem brancos inúteis e privilegiados que se tornam adultos brancos inúteis e privilegiados, cegos para a realidade que os cerca. Não apenas empresas, mas a sociedade em geral. Ela valoriza nossas babaquices. Valoriza viagens inúteis bancadas por parentes e não valoriza jovens que aos 15 anos já precisam começar a trabalhar e se matam. Tudo é extremamente mais fácil para pessoas como eu. Tenho minhas mediocridades valorizadas e incentivadas por pessoas como eu. O primeiro passo para tentar melhorar isto é se enxergar como parte desta engrenagem tosca. Conversar e mostrar. Olhar com alguma análise crítica a sociedade que o cerca. Transforme a diversidade em prática e não em discurso vazio. Faça uma autocrítica.

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2019

MOURÃO PAZ E AMOR




Jair vive o paradoxo de representar os militares e não representá-los. Embora carregue a bandeira do Exército durante toda a sua carreira, nunca comungou de prestígio entre a liderança como, aliás, nunca ocorreu em nenhuma área de atuação até a posse presidencial. Jair sempre foi considerado do baixo clero da câmara, como são conhecidos os deputados patrimonialistas, mais ligados aos interesses pessoais do que a grandes pautas nacionais. Não à toa emplacou 3 filhos na política. Não à toa a pecha de baixo clero seja tão condizente com a possível conduta de Flávio, o primeiro filho, chefe de um assessor acusado de efetuar um "recolhe", um "pedágio" do salário dos servidores da Alerj.

Como fica claro no excelente texto da jornalista Eliane Brum ao El País, Jair é o homem comum, o homem mediano. Não entendam comum como simples, modesto. Entendam comum como sem graça. Fernando Henrique Cardoso faz parte de uma elite intelectual do país, sociólogo, fundador do PSDB. Lula é uma excentricidade total, o retirante nordestino que virou líder sindical em São Paulo, fundou um partido e virou presidente do país por duas vezes. FHC e Lula são diferentes, mas ambos são incomuns. Jair está no centro da distribuição normal da população.

Lembremos que Jair iniciou a sua ascensão nacional servindo de escada para o CQC, da Band. Declarações polêmicas serviam para o parlamentar garantir ainda mais - como se 27 anos na câmara não bastassem - o seu reduto eleitoral carioca e convinham para o programa ter o que de cômico mostrar nos bastidores do congresso. Com a mudança de ideologia da população e outras conjunturas que merecem análise e reflexão em outro texto, o nome de Jair despontou como o da mudança - como se 27 anos na câmara não contassem - e da honestidade - como se 11 anos no PP de Paulo Maluf não importassem - .

Os militares, que tentam limpar a própria barra há 30 anos, não escolheram Jair. Engoliram-no. Um militar de desempenho acadêmico normal, rebelde e questionador, que foi para a reserva após ser inocentado da acusação de fabricar bombas para explodir banheiros no Exército em protestos contra a baixa remuneração. Esse fato, que rendeu até reportagem da revista Veja, ajudou Jair a ganhar certa notoriedade e ingressar no legislativo carioca.

Jair é para os militares o ticket de entrada para uma festa bacana que não iam desde os anos 80.

General Mourão. Esse sim de carreira militar extensa e com prestígio no Exército. A escolha de Mourão, por si só, já denota a fragilidade de Bolsonaro entre os seus. O hoje vice-presidente da República foi instrutor da Academia Militar dos Agulhas Negras, onde Jair se formou. Foi também adido militar na Venezuela e cumpriu missão de paz em Angola. Liderou o Comando Militar do Sul, comandou divisões e se reformou no posto de secretário de Economia e Finanças do Comando do Exército. Mourão é filho de militar e ingressou no Exército em 1972.

Guiados por estereótipos podemos imaginar que Mourão apenas reforçaria a posição de extrema direita adotada no discurso de Jair. Porque vemos, então, opiniões mais sensatas do general frente ao capitão? Seria Mourão um infiltrado progressista no alto escalão do Exército Brasileiro?

Mourão aprendeu, após algumas caneladas, que não se fala tudo o que se pensa. Antes de cogitar ser político teceu elogios ao ex-comandante do DOI-Codi, Brilhante Ustra, chamando-o de herói. Criticou abertamente a presidente Dilma Rousseff, comentário incomum para militares. Disse que o Exército deveria garantir - "impor" foi a expressão utilizada - a retirada da vida pública de pessoas envolvidas com ilícitos, caso o Poder Judiciário não o fizesse.

Após se tornar candidato Mourão continuou a distribuir declarações extremadas. Disse que famílias sem homens se tornam uma "fábrica de desajustados". Apontou ao próprio neto, mais claro que ele, e elogiou o branqueamento da raça em sua família. Cogitou uma nova constituição escrita por notáveis e, finalmente, disse que o décimo terceiro era uma "jabuticaba brasileira" que não deveria existir.

A eleição pode não ter mudado o homem, mas fez bem ao político. Mourão desde o primeiro dia do mês de janeiro sempre se coloca um pouco à esquerda de Jair. Lembremos que "um pouco à esquerda" de Jair ainda assim significa muito distante do centro. Mourão condenou a necessidade do exílio de Jean Wyllys, atestando que o fato foi um crime contra a democracia, descartou qualquer intervenção militar na Venezuela e contrariou Jair ao dizer que a embaixada brasileira em Israel permanecerá em Tel-Aviv. O general é o interlocutor preferido dos empresários, já que se mostra sensato. Dialogou com árabes para contornar a crise criada pelo presidente, exaltou parcerias com chineses e vizinhos latinos e, como últimas amostras de discernimento, declarou que a ida de Lula ao enterro de seu irmão é uma questão humanitária, além de ser a favor de que, pasmem, a mulher decida sobre o aborto. Dialogar com os opositores ideológicos, abrandar o discurso e fazer concessões parece ser a trilha escolhida pelo vice-presidente e já vimos isso com Lulinha paz e amor.

Ponto crucial na estratégia de Mourão é o tratamento dispensado à imprensa. Enquanto o chefe escolhe veículos para exclusivas o subordinado tuita: "Quero agradecer a atenção e cumprimentar pela dedicação, entusiasmo e espírito profissional a todos os jornalistas que me recebem na minha chegada e de mim se despedem quando deixo o anexo da Vice-presidência. Boas matérias a todos!". A imprensa de Jair é formada por Record, SBT e meia dúzia de blogueiros. Esses tiveram acesso VIP à posse, enquanto a gentalha se espremia, era revistada, não tinha acesso a banheiro, água e comida. O Trump dos trópicos decidiu que governará com Edir Macedo, Sílvio Santos e o Twitter.

É em meio a denúncias de enriquecimento ilícito, desvio de verbas e intimidade com a milícia contra familiares de Jair que cresce a figura militar inicialmente projetada pelo alto comando para habitar o Palácio do Planalto. O general em pele de cordeiro se prepara para mais uma promoção. O clã Bolsonaro já sabe que está refém. Há militares por todos os lados, nos postos mais importantes do governo e, o mais relevante, há um militar em um cargo não destituível por Jair: a vice-presidência.

O que você faz com o ticket após entrar em um show? Invariavelmente, mais cedo ou mais tarde, eu jogo fora.