Uma infecção alimentar causada
por um pacote de Doritos me fez permanecer basicamente o dia todo em casa
ontem, 04/02, por coincidência o mesmo dia em que o ministro Sérgio Moro lançou
aquele que, antes mesmo de ser anunciado, eu já considerava o projeto com nome
mais esquisito que eu já tinha visto: “O Pacote de Leis Anticrime”. Lei Anticrime
é algo como subir pra cima, descer pra baixo etc. Pude assistir boa parte da
cobertura televisiva do assunto.
Eu assistia muito à televisão na
minha juventude. Talvez eu devesse voltar a fazer isto para sair um pouco da
minha bolha. A questão é que toda vez que tento sair da minha bolha política a
tentativa dura uns cinco minutos. A impressão que tenho é que se eu passar uma
hora vendo gente que votou no Bolsonaro e apoia o Moro conversando eu vou
querer largar tudo e viver no mato desconectado do mundo. É mais ou menos a
sensação que tive ontem.
Três livros moldaram a minha
forma de enxergar o mundo. A Sociedade do
Espetáculo, de Guy Debord, Eichmann
em Jerusalém, de Hannah Arendt e Gostaríamos
de informa-lo que amanhã seremos mortos com nossas famílias, de Philip
Gourevitch. O primeiro trata sobre a espetacularização da vida, sobre a queda
de importância do termo aparência e a consequente elevação de patamar da
importância da aparência. Tudo é guiado a partir desta segunda característica
em razão da mercantilização da vida, tudo passa a ser um produto a ser
explorado, inclusive nós mesmos, principalmente no que se relaciona a mercado
de trabalho. Os dois outros livros tratam de grandes tragédias da humanidade e
do papel do “homem-comum” para que elas acontecessem. Tanto Arendt tratando o
Holocausto judaico dos anos 1930-1940 quanto Gourevitch escrevendo sobre o
genocídios dos tutsis em Ruanda em 1994 tratam os dois crimes como processos
históricos. Tanto judeus, por séculos, quantos os tutsis, por décadas, foram
perdendo seus direitos de tal forma que em um dado momento o único direito que
ainda restava era a vida, de tal forma que de certa forma tanto o opressor
quanto a vítima entendia como o passo lógico a ser dado o extermínio. Para isto
é fundamental a existência do “homem-comum”, completamente incapaz de raciocinar,
pronto para seguir o movimento de manada e que não consegue mais discernir o
certo do errado. Assim era Eichmann, disse Arendt. Ele não era aquilo que
tentamos caricaturar como monstro psicopata nazista, era um burocrata de estado
que fazia tudo que o chefe mandava sem pensar, que tinha como preocupação
básica de sua existência, digamos assim de forma mais moderna, o pagamento de
boletos. Assim eram os hutus que praticaram o extermínio em Ruanda, diz
Gourevitch. Tanto eles quanto Eichmann não se achavam culpados pelos crimes que
cometeram. Eles só cumpriram ordens.
Como dito no segundo parágrafo,
eu realmente via muito TV na minha infância e na minha juventude. Lembro-me de
quando os programas de TV do mundo cão começaram a aparecer. O primeiro foi o Aqui Agora, que tentava levar à TV de
certa forma a fórmula do jornal Notícias
Populares, com muito sangue e alguma manchete absurda. Pode ter havido
algum antes, mas para a minha geração a exploração televisiva da violência como
produto tem neste programa um marco. A lógica destes programas é manter a
população com medo e com ódio. Lá fora é perigoso. Nossas crianças não podem
mais sair às ruas, não sabemos se elas vão voltar. Criam-se slogans repetidos a
exaustão. Nos anos 90 o Brasil era mais perigoso que a Bósnia. Depois ficou
mais perigoso que Kosovo. Nos anos 2000 era mais perigoso que o Iraque. Agora é
mais perigoso que a Síria. O Brasil tem 200 milhões de habitantes. A Síria tem
3 milhões. Mas isto não deve ser levado em conta. Isto seria pensar e slogans
não lidam com pensamentos.
A geração da minha infância foi
marcada por dois grandes crimes envolvendo policiais. Em 1992, numa ação
coordenada pelo Governo de SP, ao menos 111 presos desarmados foram executados
durante uma tentativa de rebelião. Nenhum policial ou autoridade pública foi
presa. Um ano depois, um grupo de empresários do centro do Rio de Janeiro
contratou policiais que haviam formado um grupo de extermínio para “limparem” a
região próxima da Igreja da Candelária, muito habitada por crianças de rua. A
existência destas crianças e os pequenos delitos que algumas praticavam
prejudicavam os negócios, uma vez que “pessoas de bem” evitavam aquela região. Os
policiais fizeram o trabalho e dez crianças foram mortas. Três policiais foram
condenados pelo crime, mas estão em liberdade até hoje. Os sobreviventes e as
testemunhas oculares do caso tiveram que sair do Brasil com outra identidade.
Cidade Alerta, Datena, Repórter
Cidadão, Marcelo Rezende, todos estes programas e apresentadores ficaram
famosos. Bandidos matando, policiais reagindo, propaganda da Car System. A lei
atrapalha, dizem os apresentadores. Mais cadeia, mais polícia, mais punição,
estas são as soluções. Propaganda de algum produto do Sidnei Oliveira.
Em 2007 surgia o Capitão
Nascimento. Aquilo que chamo de psicopata incorruptível. Ele quer justiça, ou
ao menos a visão tosca que tem de justiça, e para isso vai matar. Matar
bastante. Atira na cabeça. Mata dois com a mesma bala. Tortura um pobre coitado
para saber onde está o traficante. Tornou-se o herói do momento. Não deixa de
ser sintomático aliás que o filme que tem o policial incorruptível como herói tenha
feito sucesso graças a cópias piratas que chegaram antes do que a versão
original no cinema. Mas o filme não exigia muita autocrítica de ninguém,
afinal. Trabalhar na polícia não tem nada a ver com direito, conclui o tenente
Matias em seu processo de transformação de ser racional em ser selvagem,
concluído com a última cena. O estudante de direito que debatia Foucault agora
atira na cabeça para estragar o velório, estando pronto para a “realidade”. É a
moral do filme.
Tropa de Elite levou ao cinema a
visão de mundo dos programas mundo cão da TV. Numa entrevista em que reclamava
de ter tido um relógio roubado, o apresentador Luciano Huck disse à época que o
Brasil precisava de um Capitão Nascimento. Na sociedade do consumo, a demanda
gera a oferta. Uma sociedade que quer um Capitão Nascimento em algum momento
vai acha-lo. Sérgio Moro apareceu.
Prisões preventivas feitas sem
que os motivos previstos em lei fossem atendidos. Prisões preventivas
utilizadas como instrumento de tortura psicológica para obtenção de delações
premiadas. Vazamentos midiáticos de delações de acordo com movimentações
políticas momentâneas. A lei descumprida de forma clara e aberta pela pessoa
que deveria defendê-la. Não importa, Datena e Capitão Nascimento já haviam
aberto o caminho para que isto fosse não apenas aceitável, mas até elogiável.
Após dizimar a classe política,
Moro foi trabalhar para o político que mais se beneficiou deste processo. Sua
primeira medida, após trinta dias de mandato, foi o projeto anticrime. Um
policial, diz o projeto, não precisa mais ter a sua vida ou ver a vida do refém
claramente ameaçada para atirar e matar. Não sofrerá mais processo e não terá
mais risco de punição. Pode confundir arma com guarda-chuva sem temer
represálias. De certa forma é o que a sociedade queria. Witzel foi eleito
prometendo que em seu governo o policial miraria na cabecinha do bandido. Isto depois de participar de uma cerimônia que festejava a morte de uma vereadora por policiais milicianos. Doria
foi eleito dizendo que em seu governo o policial atiraria para mandar por
cemitério.
Arendt e Gourevitch deixam
implícito, ao menos na minha leitura, que a tal da maioria não-pensante só
volta a pensar quando a tragédia passa a atingí-la. Hitler só se tornou
impopular na Alemanha em 1943. Na Globonews, uma bancada de seis jornalistas
brancos de classe média estava em festa com o projeto de Moro. No melhor estilo
Datena, vamos enfrentar a bandidagem, eles repetiam. Até o momento que um link
entrou com um representante da OAB do Rio de Janeiro. Ele dizia que o projeto
era um absurdo. O Brasil tinha há 20 anos metade do número de presidiários que
possui hoje e era menos violento. Simplesmente pôr gente na cadeia não resolve
a violência, pelo contrário, as cadeias são hoje centro de formação de bandidos
perigosos. O jovem entra lá por um pequeno furto e sai integrante do Comando
Vermelho. Permitir que um policial atire sem motivos claros, disse ele, é um
absurdo. Tornará o trabalho mais perigoso inclusive para os policiais. Muitos jovens negros inocentes serão mortos por esta medida. Por fim,
o representante da OAB disse que Moro querer colocar em lei a prisão em segunda
instância só mostra que hoje ela é inconstitucional e só serve para lotar ainda
mais presídios já superlotados. Os seis apresentadores brancos de classe média
se despediram do membro da OAB e ficaram cinco segundos em silêncio. Estavam
pensando. Propaganda. Depois começaram a falar sobre Venezuela. Parece que a situação está
ruim por lá.
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