sexta-feira, 15 de fevereiro de 2019

Crazy Rich Brazilians



Trabalhei por um bom tempo numa editora que tinha uma grande revista de moda voltada para gente muito rica. Mas muito rica mesmo. Eu trabalhava na área de compras e em um dado momento fui chamado para uma reunião com a diretora de redação desta grande revista (não é a diretora da foto). A reunião era para fechar o processo de instalação de um novo estúdio fotográfico. Por motivos que acho até corretos, eu nunca era envolvido diretamente no processo de compras deste tipo de serviço. Acreditava-se que eu não tinha o conhecimento técnico dos detalhes para este tipo de contratação, e as pessoas que achavam isto estavam certas. Se eu fosse contratar a instalação de um estúdio certamente ficaria uma merda. Mas bom, a diretora da grande revista de moda contratou os serviços de um arquiteto amigo dela. Ele era dono de um escritório muito renomado e cobraria algo em torno de R$ 70 mil reais para a realização do serviço. Eu fui chamado para a reunião basicamente para ser informado disto e porque precisavam que alguém lançasse este pagamento no sistema para que o financeiro pagasse. Disse que ok e, um pouco antes de sair, a diretora me pediu que eu fizesse uma cotação com três pedreiros para trabalhar na instalação desta obra do escritório arquitetônico. No dia seguinte voltei com a melhor cotação que eu possuía dos pedreiros que eu já conhecia no valor de R$ 1 mil. Ela deu uma olhada rápida (ou de soslaio, como vivo encontrando em livros) e falou pra eu negociar com o pedreiro por R$ 900. A primeira característica básica da elite brasileira que aprendi no contato com esta editora é que pessoas ricas não valorizam trabalho braçal. Elas não se importam em pagar R$ 70 mil para o arquiteto, mas querem negociar e tirar R$ 100 do pedreiro. A segunda é que a negociação com o mais fraco não é feita por necessidade, e sim por ego. Os R$ 100 do pedreiro não fariam diferença. A obra de R$ 76 mil seria a mesma da obra de R$ 75,9 mil. A questão é simplesmente tirar algo de quem é mais fraco.
Redações de editoras no Brasil são, em geral, bastante subdivididas. A parte pensante, o trabalho intelectual, é basicamente feita por gente rica. A maioria filha de alguém que é filha de alguém etc. Pessoas com intercâmbio na adolescência, viagens e muita, mas muita experiência em futilidades. Este é, aliás, o principal motivo para que as atuais revistas no Brasil, sobre quase todos os assuntos, sejam tão ruins e irrelevantes. Nenhuma revista no Brasil hoje é relevante de verdade, faz alguma diferença. Mais do que a internet ou os sites de fakenews, a principal causa para a decadência do material impresso no Brasil é a total irrelevância do que é escrito. São pessoas cultas e “bem-formadas”, mas fúteis, que desconhecem de forma quase completa a realidade da maioria das pessoas do país. É muito raro abrir uma revista no Brasil hoje e achar algum tipo de debate real. E o principal motivo é a total ausência de diversidade social nas redações. Apenas a divergência de opinião gera crescimento e nestes ambientes não há, portanto, crescimento algum. Abaixo das redações estão as áreas administrativas e operacionais, compostas basicamente por pessoas de classe média. Normalmente temos um diretor ou um gerente de classe média alta, que acha que é rico, comandando uma equipe de classe média que na maioria das vezes possui os mesmos valores que a elite das redações. Por fim, temos o trabalho braçal que é quase sempre feito por pessoas de origens humildes. Editoras são um retrato fiel do Brasil. Uma elite branca rica desde sempre fazendo o trabalho intelectual, uma classe média branca servindo de base operacional para a elite branca e pessoas negras fazendo o trabalho braçal de limpeza ou segurança.
A elite brasileira é historicamente extremamente benevolente entre si e linha-dura com os que estão abaixo. A diretora amiga arruma emprego para o arquiteto amigo que por sua vez contrata o engenheiro amigo, que contrata o advogado amigo e assim vai. Sem muita negociação. “Porque ele é bom”. O mesmo não ocorre com o trabalho braçal que não gosta de fazer. Gostam de pagar o mínimo possível para a empregada que vai lavar o seu banheiro ou para o pedreiro que vai furar a parede em que será colocado o quadro brega comprado numa galeria dos Jardins. Dando trela para algum deles, você logo descobre que eles odeiam a “inflação” nos serviços braçais ocorrida nos anos 2000. “Hoje eles não saem de casa por qualquer valor não”, ouvi duas pessoas dizendo numa conversa de corredor.
A segunda característica da elite brasileira que aprendi nestes anos de Editora é que ela adora festejar. Quando digo adorar, digo adorar mesmo. Tipo, é legal festa, todo mundo gosta. Mas eles realmente gostam. Festejar é quase o que dá sentido à existência bocó que eles têm. As festas têm que ser cada vez maiores e cada vez mais esbanjadores. A primeira coisa a se observar é que as festas desta galera nunca são no fim de semana. “Quem festeja no fim de semana é pobre”, eles acreditam. “Muita gente na rua, não gosto de coisa lotada”, é um dos argumentos. Festa de rico é na terça-feira. Como eles não têm coisas importantes para pensar, a festa ocupa muito tempo da vida deles. Qual roupa usar? Quem vai? Muita alegria, ostentação, fotos, celebridades e bebidas pegando fogo. A necessidade de festejar é proporcional à necessidade de ostentar, por isso os eventos desta galera estão cada vez mais malucos. Tenho um conhecido rico do mercado financeiro que foi numa despedida de um colega do mercado financeiro na Croácia. Vi outro dia em algum programa X que uma pessoa rica ia anunciar qual o sexo do bebê pulando de paraquedas. No salto iam soltar uma fumaça ao melhor estilo Damares, rosa ou azul. Casamentos extravagantes, aniversários temáticos, praia, neve, qualquer coisa que faça uma existência inútil e insignificante parecer ter sentido. Não há problemas em esbanjar na extravagância. Mas é necessário negociar os R$ 100 do pedreiro.
A classe média adora ser convidada para eventos da elite. A grande revista de moda faz uma puta festa uma vez por ano, na época do Carnaval. Um ou outro funcionário da classe média operacional era convidado, como agradecimento pelos serviços prestados e prêmio. Se a elite passa uma semana ocupada com a festa da terça, a classe média passa um mês quando vai brincar por lá. A realidade volta no dia seguinte, na quarta, quando a pessoa da classe média operacional aparece para trabalhar, provavelmente cansada e atrasada, batendo ponto, e a pessoa da elite tira uma folga pra descansar. A editora tinha uma outra revista de celebridades que também tinha sua festa anual, esta menos concorrida pela elite. Sobravam mais ingressos para a classe média operacional e era um verdadeiro bafafá a semana toda. Quem ia se sentia invejado. Quem era invejava. Quarta-feira lá estavam invejados e invejosos  trabalhando em relatórios que seriam vistos pela chefia rica só na quinta-feira, porque eles tiraram a quarta de folga.
A elite gosta de subserviência. Não está acostumada a ouvir não. Não há nada mais puto no mundo do que alguém que não está acostumado a ouvir não ouvindo não. Por um curto período da história do Brasil, esta elite ouviu algum não. E não foi um não tão grande assim. Foi um nãozinho, mas já foi suficiente para que ela ficasse putaça. A classe média é subserviente. Aceita e agradece as migalhas. Arruma-se e aluga uma roupa para a festa. Alguns meses depois é demitida. Acabou a verba. A classe média não percebe, mas seu salário é como os R$ 100 do pedreiro. A classe média quer se identificar com a elite, faz tudo para se enganar. A elite faz tudo para enganá-la. Dá certo. A classe média também estava putaça nos últimos tempos.
A Editora Abril deve milhões a funcionários. Enquanto isto, a herdeira dos Civita está no Leste Asiático, em “baladas iradas”. Gastando os R$ 100 dos pedreiros. A festa da diretora da Vogue mostra que a elite se diverte com nossas tragédias. Cria um cenário para reviver o período escravocrata. Cenário que não é tão cenário assim. A casa da diretora provavelmente é igual ao cenário da festa. Casa que deve ter custado milhões. Pensada por um arquiteto que ganhou bem e decorada por um decorador que ganhou bem. E pintada por pedreiros que receberam algo como R$ 1 mil. Ou talvez R$ 900. Tem que economizar R$ 100 dessa galera.

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