segunda-feira, 4 de fevereiro de 2019

Os estagiários e a autocrítica



Era algum dia do começo de 2004, acho que abril, quando recebi o email que achei que iria mudar a minha vida. Após um ano de faculdade, eu era chamado para minha primeira entrevista de estágio. A entrevista seria no dia seguinte e eu sequer tinha um terno. Chamei minha irmã e fomos na Colombo da Avenida Paulista. A Colombo era a única loja deste tipo que eu conhecia, basicamente porque fazia propaganda no Mesa Redonda. “A loja do homem elegante”, dizia Chico Lang. Lembro-me até hoje do nome do atendente, David (se falava Deivid). Lembro-me que ele realmente nos atendeu bem, acho que ele realmente gostou de atender um jovem indo para a primeira entrevista. Saí de lá com terno, camisa, calça, gravata e sapato. Eu não sabia dar nó de gravata. David me ensinou, mas eu esqueci. Chegando em casa, por sorte, o Clodovil estava ensinando diferentes nós de gravata e consegui decorar o passo a passo de um deles. Até hoje é o único que sei.
Eu achava fascinante o fato de ser chamado para uma entrevista pelo simples fato de que eu não sabia fazer nada. Jovens brancos privilegiados de classe média em SP em geral não sabem fazer nada e passam a juventude acostumados com a ideia de que sempre terá uma figura feminina fazendo quase um papel de “empregada” em sua vida. Fui cozinhar pela primeira vez com mais de 20 anos. Fiz minha primeira faxina com mais de 30 anos. Furei minha primeira parede aos 32. Eu era um completo inútil social e, de alguma forma, tinha uma noção inconsciente disto. Mas eu sempre achava que boa parte dos meus colegas não tinha noção disto. Eu fiz economia na USP no começo dos anos 2000. Isto significa que basicamente todos os meus colegas eram também jovens brancos inúteis e privilegiados que não sabiam fazer nada. Tínhamos duas exceções, um cara mais velho que vinha do Piauí do qual não gostávamos e zoávamos o sotaque. O outro era um rapaz negro que morava na Cohab em Barueri. Ele era o exemplo que dávamos para justificar o fato de sermos contra cotas. Os 88 jovens brancos adoravam dizer que o jovem negro era a prova de que todos podiam e vivíamos numa sociedade meritocrática.
Cheguei cedo na minha entrevista, era e ainda sou meio neurótico com horário. Como não tinha absolutamente nada a mostrar, achei que talvez chegar cedo fosse a minha maior qualidade. Com o tempo, mais jovens brancos de 20 anos foram chegando, totalmente uniformizados, inexperientes e arrogantes. A sociedade nos prende em bolhas com pessoas da mesma classe social, então realmente achamos as histórias toscas que temos para contar legais. Após isto, começou a minha primeira dinâmica de grupo.
As dinâmicas de grupo sempre começavam com alguma palhaçada. A psicóloga que nos guiava naquele circo dizia que era bom relaxar antes de começar. Cada um tinha que dizer que animal gostaria de ser. Eu sempre me identifiquei com o hipopótamo. Ele fica num canto dentro da água, comendo, sem encher o saco de ninguém. Mas na hora respondi leão. “Porque ele é agressivo e comanda a selva”. Eu não sou agressivo e não comando porra nenhuma. Respondi aquilo porque, sei lá, achei que não iam gostar de um hipopótamo. Depois nos unimos em grupo e tínhamos que montar um negócio em 15 minutos. Não lembro ao certo o que montamos. Uma semana depois recebi um email dizendo que eu não havia sido aprovado para aquela vaga porque não tinha o perfil adequado, mas que meu currículo continuaria na base de dados da empresa para vagas futuras.
O ano de 2004 foi basicamente dedicado a isto. Em alguns momentos, eu chegava a participar de 3 entrevistas por semana. Achava fascinante que tantas empresas estivessem interessadas em contratar um jovem branco inútil e privilegiado. Algumas vezes eu conseguia até passar pela etapa da palhaçada, ou seja, da dinâmica de grupo. Esta fase era sempre comandada por uma mulher branca, enquanto a outra etapa posterior era comandada por um homem branco. Lá estava um antigo jovem branco inútil que havia se transformado num adulto branco inútil e bem remunerado. No fim do ano, consegui finalmente meu primeiro estágio. Fui bem na dinâmica de grupo, em que tínhamos que convencer a psicóloga de que éramos bons através de uma página de orkut. Eu vinha de aprender na faculdade uma curva que mostrava que se você diminuísse impostos de ricos, você poderia aumentar a arrecadação porque o rico ia produzir mais. A psicóloga branca e o chefe branco adoraram ouvir aquilo. Além disso, descobri algumas semanas depois que o chefe branco havia me contratado porque tinha me achado parecido com ele aos 18 anos.
Alguns anos se passaram e minha vida deu uma guinada nesta empresa. Era 2009 e eu iria contratar o meu primeiro estagiário.  Na época eu fiquei feliz, me achei fodão. Mas eu definitivamente não sei contratar ninguém. Não sei o que perguntar, não tenho o menor interesse em saber “o que você pode acrescentar à empresa” e “por que você nos escolheu?”. Eu sei que as respostas verdadeiras são “nada” e “eu só quero um trampo privilegiado em que eu fique dentro de um escritório com ar condicionado”. A parte interessante é que comecei a entender o mecanismo de funcionamento de uma contratação.
O RH não diz que quer apenas jovens brancos inúteis e privilegiados. Ele cria tipos de subterfúgios para garantir que as vagas serão dadas a pessoas assim. Um exemplo, intercâmbio. Por que intercâmbio vale ponto positivo nestas entrevistas? “Porque mostra que ele teve que se virar sozinho na vida”. Não, ele não teve. Ele foi curtir a vida fora do país com o dinheiro dos pais. “Queremos alunos da PUC, do Mackenzie ou da FAAP, porque são as melhores instituições”. Não, você quer alguém que tenha um pai que pague uma fortuna de mensalidade. E é assim nas etapas seguintes da vida. O MBA, por exemplo, serve para isto na vida adulta. 
Lembro-me que na minha primeira contratação, feita na verdade pelo meu chefe, que quis me ajudar no meu primeiro processo, contratamos um jovem que tinha feito intercâmbio. Ao terminar o processo, meu chefe me disse que tínhamos feito uma boa escolha, pois dava pra ver que era um jovem de “boa família”. Que porra significa isso?
Estas entrevistas me enchiam o saco. Todo ano minha área participava do programa de estágio da empresa. Era sempre a mesma coisa. Contratava-se umas 30 pessoas, sendo 29 brancas e 1 negra, afinal um dos slogans da firma era “apoiamos a diversidade”. Vinte e nove pessoas brancas e descoladas, moradoras de Pinheiros, prontas para mostrar ao mundo suas genialidades.
Em algum momento da vida percebi a merda que isto era. Reconheci-me como um bosta e comecei a comentar com meus colegas brancos como os únicos funcionários negros da empresa eram basicamente ligados à área de limpeza. Eles quase nunca concordavam comigo. Afinal, tínhamos o estagiário negro. Empresas de certa forma criaram um mecanismo para manter pessoas como eu, jovem brancos inúteis e privilegiados que se tornam adultos brancos inúteis e privilegiados, cegos para a realidade que os cerca. Não apenas empresas, mas a sociedade em geral. Ela valoriza nossas babaquices. Valoriza viagens inúteis bancadas por parentes e não valoriza jovens que aos 15 anos já precisam começar a trabalhar e se matam. Tudo é extremamente mais fácil para pessoas como eu. Tenho minhas mediocridades valorizadas e incentivadas por pessoas como eu. O primeiro passo para tentar melhorar isto é se enxergar como parte desta engrenagem tosca. Conversar e mostrar. Olhar com alguma análise crítica a sociedade que o cerca. Transforme a diversidade em prática e não em discurso vazio. Faça uma autocrítica.

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