sexta-feira, 8 de fevereiro de 2019

O Flamengo e a tragédia nacional



O Flamengo é, possivelmente junto com o Palmeiras, o clube mais rico do país atualmente. Foi o que mais contratou para a temporada de 2019. Segundo a Fox Sports, o clube tinha em janeiro um orçamento previsto de R$ 100 milhões para contratações nesta temporada. A mídia esportiva acredita que jogadores como Gabriel, Arrascaeta e Rodrigo Caio devam receber mais de R$ 200 mil reais por mês de salário. O técnico Abel Braga tem salário estipulado em R$ 400 mil reais. É a maior torcida do Brasil e o clube que mais recebe da empresa detentora dos direitos de transmissão do futebol no Brasil. Os jogadores da base do clube mais rico do Brasil, que mais contratou, que mais tem torcedores e que mais recebe dinheiro de TV dormiam num alojamento improvisado no Centro de Treinamento, com teto de zinco, ar condicionado mal instalado e sem alvará de funcionamento.
Escrever #forçaflamengo na tragédia de hoje é o equivalente a escrever #forçavale na tragédia de Brumadinho. O Flamengo é o total responsável pelo que aconteceu com seus garotos hoje. Eles estavam sobre responsabilidade do clube e estavam porcamente instalados. Sinto em boa parte da mídia uma tentativa de aliviar a responsabilidade do Flamengo, em parte porque trata-se de uma marca que gera muito dinheiro. O Centro de Treinamento do Flamengo e de primeiro mundo e, a coisa mais absurda, o Flamengo iria colocar os garotos em outro local já na semana que vem. “Foi muito azar”, disse um jornalista hoje. “Foi fatalidade”. Não, não foi. Foi irresponsabilidade de um clube que possui dinheiro, mas que o gasta de outra forma que não garantindo condições mínimas para garotos que tentam realizar seus sonhos em suas dependências. Christian Esmério, Arthur Vinícius, Pablo Henrique da Silva Matos, Vitor Isaías, Bernardo Pisetta, Athila Paixão e Jorge Eduardo Santos. São os nomes das vítimas já anunciadas quando este texto foi escrito. Eles são as vítimas. Não o Flamengo.
Apenas 66% das pessoas no país tem acesso completo à saneamento básico. Vivendo esta situação, o país decidiu que a prioridade era realizar num período de dois anos os dois maiores eventos esportivos do mundo. E aqui não digo que a prioridade foi de um partido político X ou de uma parcela Y da população. Foi de todos. Toda a classe política curtiu o evento, todo o setor empresarial encheu o rabo com ele e a maior parte da população ficou em silêncio aprovador enquanto os eventos eram preparados. A cidade de São Paulo já tinha um estádio pronto para a Copa, o Morumbi. Resolveu fazer outro. O Itaquerão é chique e desnecessário. O banheiro é de mármore e tem uma telinha mostrando o jogo no espelho pra você não perder nada enquanto lava a mão. O Corinthians, dono do estádio, não tem dinheiro para pagá-lo. Vai demorar uma geração para pagar pelo estádio que custa pelo menos o dobro do que deveria custar. Durante sua construção, dois operários morreram num acidente. Fábio Luiz Pereira e Ronaldo Oliveira dos Santos deixaram, respectivamente, três e um filhos. Ninguém lembra dos seus nomes. Na época, o Corinthians prometeu homenageá-los com o nome numa sessão da arquibancada. Não precisou, ninguém mais lembrava deles quando a Copa começou. Não houve nenhuma punição a Corinthians e Oderbrecht, dona da obra, pela morte dos dois operários.
Não houve nenhuma punição pela tragédia de Mariana. A Vale até hoje não pagou nenhuma indenização às vítimas de três anos atrás. A tática da Vale para Brumadinho é a mesma usada em Mariana. Espere o tempo passar. As pessoas esquecem. Logo surge alguma outra notícia. As ações da empresa já recuperaram boa parte do seu valor e teve gente que até lucrou comprando na baixa. Vida que segue.
Lembra do incêndio do Museu Nacional? Da queda do prédio no centro de SP? Não deram em nada. Tragédias choradas e esquecidas. O Brasil é um país sem memória. Um país que esquece suas vítimas. Não é à toa que elegeu na última eleição uma pessoa que faz apologias a um torturador. "Não há memória que o tempo não apague", diz Cervantes em Dom Quixote. O Brasil parece viver isto em outra dimensão. Fazemos questão de esquecer nossa história. É um jeito de não lidar com nossas responsabilidades e com a forma como somos cúmplices de uma sociedade que esmaga pobres para garantir privilégios a ricos. Um país que coloca jovens em alojamentos provisórios toscos para pagar salários maiores a adultos consagrados. Um país que mata operários miseráveis para proporcionar uma Copa do Mundo a uma elite preguiçosa. Um país que soterra coitados para garantir lucros a acionistas vagabundos. Um país que libera posse de armas para permitir que gente sem vergonha lucre com a morte vendendo ações. Um país que tem a polícia que mais mata no mundo e que está assistindo em silêncio a liberação de um projeto que impedirá a punição de crimes contra a vida de minorias cometidos por agentes do Estado. Um país que tem uma das maiores populações carcerárias do mundo e que não se importa em ver estas pessoas vivendo em condições sub-humanas. A # desta semana é força Flamengo. Vamos ver qual será a da semana que vem. Talvez o mercado arrume algum jeito de faturar em cima da tragédia destes garotos. É isto que ele faz.

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