O Flamengo é, possivelmente junto
com o Palmeiras, o clube mais rico do país atualmente. Foi o que mais contratou
para a temporada de 2019. Segundo a Fox Sports, o clube tinha em janeiro um
orçamento previsto de R$ 100 milhões para contratações nesta temporada. A mídia
esportiva acredita que jogadores como Gabriel, Arrascaeta e Rodrigo Caio devam
receber mais de R$ 200 mil reais por mês de salário. O técnico Abel Braga tem
salário estipulado em R$ 400 mil reais. É a maior torcida do Brasil e o clube
que mais recebe da empresa detentora dos direitos de transmissão do futebol no
Brasil. Os jogadores da base do clube mais rico do Brasil, que mais contratou,
que mais tem torcedores e que mais recebe dinheiro de TV dormiam num alojamento
improvisado no Centro de Treinamento, com teto de zinco, ar condicionado mal
instalado e sem alvará de funcionamento.
Escrever #forçaflamengo na
tragédia de hoje é o equivalente a escrever #forçavale na tragédia de
Brumadinho. O Flamengo é o total responsável pelo que aconteceu com seus
garotos hoje. Eles estavam sobre responsabilidade do clube e estavam porcamente
instalados. Sinto em boa parte da mídia uma tentativa de aliviar a
responsabilidade do Flamengo, em parte porque trata-se de uma marca que gera
muito dinheiro. O Centro de Treinamento do Flamengo e de primeiro mundo e, a
coisa mais absurda, o Flamengo iria colocar os garotos em outro local já na
semana que vem. “Foi muito azar”, disse um jornalista hoje. “Foi fatalidade”.
Não, não foi. Foi irresponsabilidade de um clube que possui dinheiro, mas que o
gasta de outra forma que não garantindo condições mínimas para garotos que
tentam realizar seus sonhos em suas dependências. Christian Esmério, Arthur
Vinícius, Pablo Henrique da Silva Matos, Vitor Isaías, Bernardo Pisetta, Athila
Paixão e Jorge Eduardo Santos. São os nomes das vítimas já anunciadas quando
este texto foi escrito. Eles são as vítimas. Não o Flamengo.
Apenas 66% das pessoas no país
tem acesso completo à saneamento básico. Vivendo esta situação, o país decidiu
que a prioridade era realizar num período de dois anos os dois maiores eventos
esportivos do mundo. E aqui não digo que a prioridade foi de um partido
político X ou de uma parcela Y da população. Foi de todos. Toda a classe
política curtiu o evento, todo o setor empresarial encheu o rabo com ele e a
maior parte da população ficou em silêncio aprovador enquanto os eventos eram
preparados. A cidade de São Paulo já tinha um estádio pronto para a Copa, o
Morumbi. Resolveu fazer outro. O Itaquerão é chique e desnecessário. O banheiro
é de mármore e tem uma telinha mostrando o jogo no espelho pra você não perder
nada enquanto lava a mão. O Corinthians, dono do estádio, não tem dinheiro para
pagá-lo. Vai demorar uma geração para pagar pelo estádio que custa pelo menos o
dobro do que deveria custar. Durante sua construção, dois operários morreram
num acidente. Fábio Luiz Pereira e Ronaldo Oliveira dos Santos deixaram,
respectivamente, três e um filhos. Ninguém lembra dos seus nomes. Na época, o
Corinthians prometeu homenageá-los com o nome numa sessão da arquibancada. Não
precisou, ninguém mais lembrava deles quando a Copa começou. Não houve nenhuma
punição a Corinthians e Oderbrecht, dona da obra, pela morte dos dois
operários.
Não houve nenhuma punição pela
tragédia de Mariana. A Vale até hoje não pagou nenhuma indenização às vítimas
de três anos atrás. A tática da Vale para Brumadinho é a mesma usada em
Mariana. Espere o tempo passar. As pessoas esquecem. Logo surge alguma outra
notícia. As ações da empresa já recuperaram boa parte do seu valor e teve gente
que até lucrou comprando na baixa. Vida que segue.
Lembra do incêndio do Museu
Nacional? Da queda do prédio no centro de SP? Não deram em nada. Tragédias choradas
e esquecidas. O Brasil é um país sem memória. Um país que esquece suas vítimas.
Não é à toa que elegeu na última eleição uma pessoa que faz apologias a um
torturador. "Não há memória que o tempo não apague", diz Cervantes em Dom Quixote. O Brasil parece viver isto em outra dimensão. Fazemos questão de esquecer nossa história. É um jeito de não lidar
com nossas responsabilidades e com a forma como somos cúmplices de uma
sociedade que esmaga pobres para garantir privilégios a ricos. Um país que
coloca jovens em alojamentos provisórios toscos para pagar salários maiores a adultos
consagrados. Um país que mata operários miseráveis para proporcionar uma Copa
do Mundo a uma elite preguiçosa. Um país que soterra coitados para garantir
lucros a acionistas vagabundos. Um país que libera posse de armas para permitir
que gente sem vergonha lucre com a morte vendendo ações. Um país que tem a
polícia que mais mata no mundo e que está assistindo em silêncio a liberação de
um projeto que impedirá a punição de crimes contra a vida de minorias cometidos
por agentes do Estado. Um país que tem uma das maiores populações carcerárias
do mundo e que não se importa em ver estas pessoas vivendo em condições sub-humanas.
A # desta semana é força Flamengo. Vamos ver qual será a da semana que vem.
Talvez o mercado arrume algum jeito de faturar em cima da tragédia destes
garotos. É isto que ele faz.
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