Estou cansado. Muito cansado. Estou
exausto. À parte isto, tenho em mim todos os sonhos do mundo.
O bebê que não dorme. A aluna que faltou
e não quer pagar pela aula. A aluna que cancelou o curso. A mulher da
entrevista que deveria ter dado a resposta na semana passada. A dor nas costas
que teima em não passar sozinha. A consulta ao médico que não paro de adiar. O
fogo esquecido que queimou os legumes. A conta de luz. A verdade do universo. A
bicicleta roubada. O governador fascista. A mãe paranoica mentindo. A mentira criando
uma nova vítima. Larissa Manoela disparando meus gatilhos.
Calma.
Respira.
Conte até dez.
Um, dois, treis, cuatru, cincu, seis,
seti, oitu, novi, deis. Fodam-se as regras gramaticais. Mas só algumas. Não se
começa uma frase com pronome oblíquo.
Um Lucky Strike.
Pronto.
As palavras devem ser ditas ou
escritas. Quando guardadas, as palavras causam estragos. Algo assim foi dito
por Clarice Lispector ou por Belo. Na falta de dinheiro para a terapia, restará
escrever mais.
Após cinco noites sem dormir, fiz a
minha prova de alemão. Na aula seguinte, assinei a lista e tive que ir embora
logo em seguida. Meu filho tava doente. Recebi a mensagem e foda-se tudo. Felizmente
não era nada. Ou quase nada. Mas o filho com febrinha vira tudo. Dois dias sem
cocô e vê-lo fazer cocô se torna a prioridade da minha vida. A alegria de
chegar perto dela e sentir o cheiro de merda no terceiro dia. Nada paga. Tudo é
relativo, até merda. Bom, na aula seguinte, recebi a lista novamente e lá tava o
meu nome na aula anterior riscado. João Gabriel D. de Oliveira. Assim
estava a minha presença naquela aula no fatídico dia. Era direito do professor,
afinal, riscar a minha presença naquela aula no fatídico dia. A aula dele não é
lugar para palhaços vagabundos. É sua função proteger o suado dinheiro do
contribuinte público da ação parasitária de alunos picaretas que assinam a
lista e vão embora curtir a vida. O que mais chamou a minha atenção, porém, não
foi o risco. Foi que, além do risco, ele escreveu um F acima do meu nome
riscado, circulou o F e deu um visto. Apenas riscar a minha assinatura já seria
suficiente para cancelar a minha presença naquela aula no fatídico dia. Mas ela
não bastava. Ele pôs também o F, o círculo e deu o visto. Para deixar claro que
era ele que estava cancelando a minha presença naquela aula no fatídico dia,
não uma outra pessoa que por algum motivo poderia ter raiva de mim a ponto de
aproveitar a chance para cancelar a minha presença naquele fatídico dia. O
risco, o F e o círculo foram feitos de caneta vermelha, o visto de caneta azul.
Olhei para o professor, era um momento em que ele olhava alguma coisa no
computador. Ele é daquela geração de homens que guarda uma caneta no bolso da
camisa. A caneta era azul. Percebi que um outro aluno fez naquela aula a mesma
coisa que eu havia feito naquele fatídico dia. A lista ainda não havia voltado
para o professor e, assim que voltou, ele foi para um estojinho que tinha
deixado em sua mesa e pegou a caneta vermelha. Risco, F e círculo. Guardou a caneta
vermelha. Concluí que possivelmente aquela era a única função daquela caneta
vermelha no mundo. Riscar, efezar e circular. Era quase um ritual de vingança.
Ou de justiça. Às vezes, a linha que separa os dois termos é extremamente
tênue.
Meu nome completo é João Gabriel
Domingos de Oliveira. Aos 8 anos, tive que tomar uma decisão que decidiria a
minha forma de identificação para o resto da minha vida. Fui fazer meu primeiro
RG e minha mãe me pediu que eu abreviasse o Gabriel ou o Domingos, meu nome não
caberia inteiro no espaço destinado à assinatura. Eu não tava preparado para
aquilo. Abreviar o João e o Oliveira não era uma opção possível. Estes dois
nomes estariam presos a mim para sempre. Optei por abreviar o Domingos. D.
Tornei-me João Gabriel D. de Oliveira. Foi este nome que apareceria riscado,
efezado e circulado na lista de alunos do curso na universidade pública trinta
e um anos depois. Não sei se esta lista ficará arquivada por muito tempo. Acho
que sim. Em algum futuro alguém achará o registro de que um tal João Gabriel D.
de Oliveira quis enganar um professor universitário que não deixou barato a
tentativa de esperteza do aluno folgado.
O Oliveira é uma prisão na minha
vida. A família do meu é composta basicamente por filhos da puta. Não todo
mundo, claro. Mas basicamente. Não que eu não ame alguns destes filhos da puta.
Eu os amo. Mas o amor não me cega a ponto de não enxergar que um filho da puta
é um filho da puta. É aquele tipo antigo de filho da puta. O filho da puta da
metade do séc. XX. Gente ruim. Gente má. A matriarca da família (a irmã mais velha
do meu pai) era uma empregada doméstica que se casou com o seu patrão, um homem
rico. É muito raro alguém no Brasil que fosse rico nos anos 1950 e não fosse
filho da puta. Ou filho de um filho da puta. Ou neto de um. Ou bisneto. A
literatura brasileira foi escrita por gente rica. Gente que se beneficiou
bastante de filhas da putagem. Não que não sejam bons. Alguns são, e muito. Apenas
é preciso que isto fique claro. Tiveram um filho. Assim que ele nasceu, a
matriarca “adotou” duas meninas, crianças, transformando-as em empregadas
domésticas. A matriarca pensou no longo prazo. Queria alguém que servisse a seu
filho a vida toda. Assim viveram as duas meninas, depois duas mulheres.
Servindo a matriarca, o patrão e o filho único. O patrão morreu em 1989 de
câncer. O filho único morreu de pneumonia em 1990. Uma das meninas já mulher
morreu em 1998. Sobraram a matriarca e a outra menina já senhora. Uma era a
única companheira que sobrou para a outra. A velha matriarca ficou um certo
tempo morrendo. Não queria morrer de jeito nenhum. Morreu. E deixou tudo para a
menina agora já senhora. A velha era rica e foi gananciosa até o fim.
Gananciosa o suficiente para cair num golpe de pirâmide já aos 90 anos. A agora
ex-empregada torrou tudo em um ano. Em menos até. Gastava com ódio. Como se
quisesse se livrar daquilo logo. Encontrou sua tranquilidade quando o dinheiro
acabou. Foi morar numa casa simples com um homem que conheceu neste período e
começou a fazer bolo para vender. Eu a visitei quando uma outra tia minha
faleceu. Ela foi ao enterro. Não chorou. Em certos momentos até riu, mas
discretamente. Com respeito. Eu fui à sua casa, que ficava perto do cemitério,
para usar o banheiro. Ela me ofereceu uma Coca-Cola quente e um bolo de cenoura
mofado. Eu aceitei. Nossos olhares se encontraram enquanto eu pegava o bolo. O
rancor estava lá. O rancor contra um Oliveira. Está marcado em meu nome. A opressão,
a covardia.
Quando nasceu meu filho, cheguei à conclusão
de que era hora de acabar com a saga dos Oliveira na terra. Não transmitir para
o meu filho o sobrenome marcado pela opressão, o nome de uma família que em
nome desta praticou crimes e barbaridades. Meu filho se tornou apenas Domingos.
O D. abreviado do meu nome se tornou completo nele.
Um, dois, treis, cuatru, cincu, seis,
seti, oitu, novi, deis.
O cigarro e o chocolate vêm ocupando
o papel de válvula de escape no momento. Cinco quilinhos já ganhei com esta
brincadeira. Na infância era o futebol. Até hoje sei os campeões brasileiros de
Bahia em 59 até Palmeiras em 22. Foi o álcool na juventude. E foi muito álcool.
E uma incapacidade de se divertir sem beber. Foi a literatura em parte da minha
vida adulta madura. Foi a literatura que me deu forças para recomeçar num
momento em que não tinha muitas forças para nada. Força que não encontrei nas
pessoas que me cercavam. Recomeçar é difícil e libertário. Foi apenas quando
recomecei que sinto que tomei conta da minha vida. Que cortei o cordão
umbilical. Na bagunça encontrei um pouco mais de paz. Mas o recomeço parece que
não acaba. E é repleto de fracassos e de tentações. Mas é o que há muitas vezes.
A opção que sobra. Conheço muita gente que deveria recomeçar. Dá vontade de
gritar “Recomece, porra”. Mas eu tô longe de ser o parâmetro de como se deve
viver a vida. É quanto mais você tem, mais difícil é recomeçar. Cada posse é
uma prisão. Cada relacionamento também pode ser uma espécie de prisão. Mas o
contrário desta prisão não é a liberdade. É o vazio. Não há liberdade individual.
A liberdade é uma conquista coletiva. Enquanto houver uma pessoa sendo
oprimida, não existe a liberdade. Só existe o vazio.
Ter um filho mudou a visão que tenho
sobre mim e minha relação com o mundo. Sinto que sou realmente importante para
alguém. Importante como nunca fui. E isto é muito ruim, pois coloca uma pressão
que não quero que meu filho tenha. Em algum momento, não serei mais tão
importante para meu filho como ele é para mim, e tudo bem. Assim é a vida,
assim que deve ser e eu devo saber lidar com isto. Minha mãe não soube. O
recomeço é meu grande orgulho e sinto que será meu grande legado para ele. Até
porque ele é também fruto deste recomeço.
Um, dois, treis, cuatru, cincu, seis,
seti, oitu, novi, deis
Você chegou a existir? Quantas
pessoas sua existência oprimiu? Quem pega a garrafa de cerveja vazia que você
bebeu? Quem come os restos da comida que você deixou no prato? Quantas pessoas
sua última viagem alimentaria? O que foi feito com o dinheiro do seu celular
roubado? Onde foram parar os mendigos que estavam lá na frente ontem? Por que
eles não voltaram? Quantos escravos me vestem? Quantos centavos recebeu a
pessoa que apertou o último parafuso do meu celular? Eu e minha tia somos tão
diferentes assim? Meu filho será diferente dela? Ele sentirá culpa? Somos todos
culpados. A inocência é uma utopia tão grande quanto a liberdade. É importante
nas sociedades modernas que as utopias sejam ridicularizadas. Ou que virem
peças publicitárias. Quantas pessoas serão mortas para que eu me sinta seguro?
Quanto medo você sente? O que você está disposto a aceitar para não ter mais
medo? O que está disposto a perder?
“Papa”. “Pato”. “Sapato”. “Água”. “Casa”.
“Vovó”. São as palavras que meu filho já sabe falar. Ele também imita animais.
Leão, tigre, dinossauro e cachorro têm o mesmo barulho. O gato faz auau. Macaco
faz nhã. Toda vez que uma palavra ou um gesto aparecem, a esperança renasce. O Recomeço.
Tudo parece valer a pena. Apesar de tudo. Apesar de tudo. Apesar de tudo.
Apesar de tudo. Apesar de tudo. Apesar de tudo. Apesar de tudo. Apesar de tudo.
Apesar de tudo. Apesar de tudo. Apesar de tudo. Apesar de tudo. Apesar de tudo.
Estou cansado. Muito cansado. Tô
exausto. Apesar disto, tenho em mim todos os sonhos do mundo.