sexta-feira, 8 de dezembro de 2023

O Botafogo e a vida

 

É algo curioso quando todo mundo meio que sabia que algo iria acontecer, aí quando este algo acontece fica todo mundo impressionado “meu Deus, algo aconteceu” quando no fundo todo mundo meio que sabia que algo iria acontecer. Pois bem, algo aconteceu. E foi com o Botafogo, o time com quem algo sempre acontece. Há uma espécie de sinergia. Um sentimento coletivo que antecede o algo que acaba provocando o algo. Qualquer faísca serve para provocar o grande incêndio de algo. Um apagão. Um cartão vermelho. Um pênalti desperdiçado. Um pênalti cometido. O impedimento por um micrômetro. Algo.

Amarelão. Pipoqueiro. Eu sempre me identifiquei com estes dois adjetivos. Sempre me achei meio amarelão. Sempre me achei meio pipoqueiro. E olhe que eu nem acho que tenha passado por situações tão estressantes assim. Qualquer coisa eu já fico nervoso. Sempre fui assim. Se eu fosse um jogador de futebol, sou do tipo que mandaria a bola do pênalti mais importante para fora do estádio. Se eu fosse jogador de basquete, meu lance livre decisivo não bateria nem no aro. Se eu fosse jogador de tênis, cometeria uma dupla falta no match point do adversário. Sempre achei curiosa esta identificação que as pessoas têm com atletas ou marcas vencedoras. Você se identifica com Roger Federer, Rafael Nadal ou Novak Djokovic? Eu me identifico, sei lá, com o Thiago Monteiro. Muito esforço e muita luta para chegar na segunda rodada. E olhe lá.

Se eu fosse um time, seria o Botafogo. Superstições, administrações atrapalhadas e poucos momentos de glória espalhados numa vida de sonhos e frustrações. Mas há uma certa beleza em perder muito e ganhar pouco. As muitas derrotas tornam as vitórias mais saborosas. E o esporte nos dá uma capacidade ímpar de aprender a recomeçar. E é isto que o Botafogo vai fazer. Recomeçar. É isto que estou fazendo sempre. Uma hora vai dar certo. Pode ser que não dê, mas por algum motivo sempre acreditamos. Uma hora derrotaremos o algo. E veremos que o algo não era tão foda assim. O Botafogo é o time que mais representa a vida. A vida não é o Palmeiras de Abel. Como não era o São Paulo de Telê ou o super Santos de Pelé (perdão por comparar o Palmeiras atual com aquele Santos. É como comparar um bom livro com, sei lá, Grande Sertão Veredas). A vida é o Botafogo. A sucessão de acasos que destrói os sonhos. Mas eles seguem lá. A sucessão de acasos que ao mesmo tempo destrói os sonhos servem para intensificá-los. Na primeira sequência de três vitórias o sonho e o trauma voltarão. Ainda mais fortes. E esta é a beleza da vida. É a beleza o Botafogo. No mundo competitivo e baseado nesta falsa identificação com os vitoriosos, o Botafogo sobrevive. Uma hora o pênalti vai entrar. O lance livre vai cair. Salvarei o match point com um ace. E o botafoguense vai sorrir no final.   




quarta-feira, 27 de setembro de 2023

A Assessora Negra, a Torcida Branca e o Pacto da Branquitude

 


Ter um público majoritariamente branco e que não sabe torcer em estádios não é exclusividade do São Paulo. À exceção talvez de Vasco e Santos, todos os grandes clubes brasileiros passaram por um processo intencional de elitização de seu público. Os dois instrumentos para isto foram o encarecimento dos ingressos e o programa de sócio-torcedor. Ninguém que não seja razoavelmente abastado tem condições de pagar uma mensalidade para poder, quem sabe, comprar ingresso em algum jogo. Cor de pele e classe social tem tudo a ver num país construído à base de escravidão e racismo. A área mais popular dos antigos estádios, a geral, foi destruída nas reformas de Maracanã e Mineirão. Ficou claro que os clubes não têm mais interesse em ter a camada mais popular em seus estádios. A isto a maior parte da mídia chamou de “modernidade”. Outras coisas “modernas” são a reforma da previdência e a reforma trabalhista. Sempre os mesmos beneficiados, sempre os mesmos prejudicados. O próximo passo da “modernidade” no futebol é tirar o esporte da grade da televisão aberta. Pay-per-view e streaming são o caminho para um esporte mais “moderno”, em que o torcedor é visto como um consumidor e a função do futebol é gerar receita. A parcela mais pobre da população já foi afastada do estádio e vai progressivamente sendo afastada da televisão. Sobrará o rádio, este sobrevivente da modernidade.

A assessora negra da ministra negra “ousou” apontar isto. Não apontou contra o time dela, o Flamengo, time mais popular do Brasil e que ironicamente é um dos líderes deste processo de elitização dos estádios. A mídia que defende a “modernidade” se revoltou e se levantou para pedir a demissão da assessora. Não importa que o que ela disse faça sentido, nem que ela tenha feito a crítica para um grupo interno de pessoas. O importante é impedir que o debate exista. Em geral, pessoas brancas detestam quando são apontadas como um grupo. Para elas, ir a um jogo de futebol e só ter pessoas brancas na arquibancada é “normal”. Assim como ir a um restaurante que só tem clientes brancos e atendentes negros. Tudo é “normal”. Quem ousa apontar alguma anormalidade nesta situação é rapidamente afastado. 

Marcelle Decothé e Anielle Franco estão em posições que causam incômodo ao país moldado pelo racismo. A assessora negra da ministra negra. Ainda ontem, a mídia “moderna” fez reportagens apontando os ganhos mensais da assessora negra. O rendimento mensal dela vira assunto. O de pessoas brancas, não. Isto independente da ideologia. Ninguém vai atrás de saber o rendimento mensal de Fernando Haddad, por exemplo. Ele pode estar onde está. Marcelle e Anielle, não.

O Pacto da Branquitude foi rápido em moer Marcelle. Não importa que ela seja extremamente preparada para o cargo que exercia. Cortaram o mal pela raiz. A ministra negra ligou para o presidente branco do time de torcida majoritariamente branca para pedir desculpas porque a sua assessora negra falou que o time de torcida majoritariamente branca tem torcida majoritariamente branca. E a vida vai seguir, com estádios cada vez mais brancos. É o que a “modernidade” exige.

Anielle segue, mas o Pacto da Branquitude estará sempre de olho, divulgando seus salários e criticando quando ela usar um avião público para participar de um evento especial. Este pacto se sente incomodado quando pessoas como Anielle chegam ao lugar em que chegaram e vai fazer de tudo para mostrar que “ela não presta”. Gostam de cortar o mal pela raiz. Mostrar o lugar de cada um. Não deixar ir longe demais. Imaginem se um dia uma mulher negra como Anielle chega, por exemplo, ao Supremo? Não, o Pacto não lidará bem com isto. O Pacto até está tentando fingir que é mais ou menos civilizado agora. Mas não verá problemas em fazer no futuro o que fez em 2016 e 2018. Explodir tudo para manter tudo como está. Como disse Emicida em entrevista ao futuro ministro Silvio de Almeida, "O Racismo vai morrer gritando". 

quinta-feira, 24 de agosto de 2023

Todos os sonhos do mundo

 


Estou cansado. Muito cansado. Estou exausto. À parte isto, tenho em mim todos os sonhos do mundo.

O bebê que não dorme. A aluna que faltou e não quer pagar pela aula. A aluna que cancelou o curso. A mulher da entrevista que deveria ter dado a resposta na semana passada. A dor nas costas que teima em não passar sozinha. A consulta ao médico que não paro de adiar. O fogo esquecido que queimou os legumes. A conta de luz. A verdade do universo. A bicicleta roubada. O governador fascista. A mãe paranoica mentindo. A mentira criando uma nova vítima. Larissa Manoela disparando meus gatilhos.

Calma.

Respira.

Conte até dez.

Um, dois, treis, cuatru, cincu, seis, seti, oitu, novi, deis. Fodam-se as regras gramaticais. Mas só algumas. Não se começa uma frase com pronome oblíquo.

Um Lucky Strike.

Pronto.

As palavras devem ser ditas ou escritas. Quando guardadas, as palavras causam estragos. Algo assim foi dito por Clarice Lispector ou por Belo. Na falta de dinheiro para a terapia, restará escrever mais.

Após cinco noites sem dormir, fiz a minha prova de alemão. Na aula seguinte, assinei a lista e tive que ir embora logo em seguida. Meu filho tava doente. Recebi a mensagem e foda-se tudo. Felizmente não era nada. Ou quase nada. Mas o filho com febrinha vira tudo. Dois dias sem cocô e vê-lo fazer cocô se torna a prioridade da minha vida. A alegria de chegar perto dela e sentir o cheiro de merda no terceiro dia. Nada paga. Tudo é relativo, até merda. Bom, na aula seguinte, recebi a lista novamente e lá tava o meu nome na aula anterior riscado. João Gabriel D. de Oliveira. Assim estava a minha presença naquela aula no fatídico dia. Era direito do professor, afinal, riscar a minha presença naquela aula no fatídico dia. A aula dele não é lugar para palhaços vagabundos. É sua função proteger o suado dinheiro do contribuinte público da ação parasitária de alunos picaretas que assinam a lista e vão embora curtir a vida. O que mais chamou a minha atenção, porém, não foi o risco. Foi que, além do risco, ele escreveu um F acima do meu nome riscado, circulou o F e deu um visto. Apenas riscar a minha assinatura já seria suficiente para cancelar a minha presença naquela aula no fatídico dia. Mas ela não bastava. Ele pôs também o F, o círculo e deu o visto. Para deixar claro que era ele que estava cancelando a minha presença naquela aula no fatídico dia, não uma outra pessoa que por algum motivo poderia ter raiva de mim a ponto de aproveitar a chance para cancelar a minha presença naquele fatídico dia. O risco, o F e o círculo foram feitos de caneta vermelha, o visto de caneta azul. Olhei para o professor, era um momento em que ele olhava alguma coisa no computador. Ele é daquela geração de homens que guarda uma caneta no bolso da camisa. A caneta era azul. Percebi que um outro aluno fez naquela aula a mesma coisa que eu havia feito naquele fatídico dia. A lista ainda não havia voltado para o professor e, assim que voltou, ele foi para um estojinho que tinha deixado em sua mesa e pegou a caneta vermelha. Risco, F e círculo. Guardou a caneta vermelha. Concluí que possivelmente aquela era a única função daquela caneta vermelha no mundo. Riscar, efezar e circular. Era quase um ritual de vingança. Ou de justiça. Às vezes, a linha que separa os dois termos é extremamente tênue.

Meu nome completo é João Gabriel Domingos de Oliveira. Aos 8 anos, tive que tomar uma decisão que decidiria a minha forma de identificação para o resto da minha vida. Fui fazer meu primeiro RG e minha mãe me pediu que eu abreviasse o Gabriel ou o Domingos, meu nome não caberia inteiro no espaço destinado à assinatura. Eu não tava preparado para aquilo. Abreviar o João e o Oliveira não era uma opção possível. Estes dois nomes estariam presos a mim para sempre. Optei por abreviar o Domingos. D. Tornei-me João Gabriel D. de Oliveira. Foi este nome que apareceria riscado, efezado e circulado na lista de alunos do curso na universidade pública trinta e um anos depois. Não sei se esta lista ficará arquivada por muito tempo. Acho que sim. Em algum futuro alguém achará o registro de que um tal João Gabriel D. de Oliveira quis enganar um professor universitário que não deixou barato a tentativa de esperteza do aluno folgado.

O Oliveira é uma prisão na minha vida. A família do meu é composta basicamente por filhos da puta. Não todo mundo, claro. Mas basicamente. Não que eu não ame alguns destes filhos da puta. Eu os amo. Mas o amor não me cega a ponto de não enxergar que um filho da puta é um filho da puta. É aquele tipo antigo de filho da puta. O filho da puta da metade do séc. XX. Gente ruim. Gente má. A matriarca da família (a irmã mais velha do meu pai) era uma empregada doméstica que se casou com o seu patrão, um homem rico. É muito raro alguém no Brasil que fosse rico nos anos 1950 e não fosse filho da puta. Ou filho de um filho da puta. Ou neto de um. Ou bisneto. A literatura brasileira foi escrita por gente rica. Gente que se beneficiou bastante de filhas da putagem. Não que não sejam bons. Alguns são, e muito. Apenas é preciso que isto fique claro. Tiveram um filho. Assim que ele nasceu, a matriarca “adotou” duas meninas, crianças, transformando-as em empregadas domésticas. A matriarca pensou no longo prazo. Queria alguém que servisse a seu filho a vida toda. Assim viveram as duas meninas, depois duas mulheres. Servindo a matriarca, o patrão e o filho único. O patrão morreu em 1989 de câncer. O filho único morreu de pneumonia em 1990. Uma das meninas já mulher morreu em 1998. Sobraram a matriarca e a outra menina já senhora. Uma era a única companheira que sobrou para a outra. A velha matriarca ficou um certo tempo morrendo. Não queria morrer de jeito nenhum. Morreu. E deixou tudo para a menina agora já senhora. A velha era rica e foi gananciosa até o fim. Gananciosa o suficiente para cair num golpe de pirâmide já aos 90 anos. A agora ex-empregada torrou tudo em um ano. Em menos até. Gastava com ódio. Como se quisesse se livrar daquilo logo. Encontrou sua tranquilidade quando o dinheiro acabou. Foi morar numa casa simples com um homem que conheceu neste período e começou a fazer bolo para vender. Eu a visitei quando uma outra tia minha faleceu. Ela foi ao enterro. Não chorou. Em certos momentos até riu, mas discretamente. Com respeito. Eu fui à sua casa, que ficava perto do cemitério, para usar o banheiro. Ela me ofereceu uma Coca-Cola quente e um bolo de cenoura mofado. Eu aceitei. Nossos olhares se encontraram enquanto eu pegava o bolo. O rancor estava lá. O rancor contra um Oliveira. Está marcado em meu nome. A opressão, a covardia.

Quando nasceu meu filho, cheguei à conclusão de que era hora de acabar com a saga dos Oliveira na terra. Não transmitir para o meu filho o sobrenome marcado pela opressão, o nome de uma família que em nome desta praticou crimes e barbaridades. Meu filho se tornou apenas Domingos. O D. abreviado do meu nome se tornou completo nele.

Um, dois, treis, cuatru, cincu, seis, seti, oitu, novi, deis.

O cigarro e o chocolate vêm ocupando o papel de válvula de escape no momento. Cinco quilinhos já ganhei com esta brincadeira. Na infância era o futebol. Até hoje sei os campeões brasileiros de Bahia em 59 até Palmeiras em 22. Foi o álcool na juventude. E foi muito álcool. E uma incapacidade de se divertir sem beber. Foi a literatura em parte da minha vida adulta madura. Foi a literatura que me deu forças para recomeçar num momento em que não tinha muitas forças para nada. Força que não encontrei nas pessoas que me cercavam. Recomeçar é difícil e libertário. Foi apenas quando recomecei que sinto que tomei conta da minha vida. Que cortei o cordão umbilical. Na bagunça encontrei um pouco mais de paz. Mas o recomeço parece que não acaba. E é repleto de fracassos e de tentações. Mas é o que há muitas vezes. A opção que sobra. Conheço muita gente que deveria recomeçar. Dá vontade de gritar “Recomece, porra”. Mas eu tô longe de ser o parâmetro de como se deve viver a vida. É quanto mais você tem, mais difícil é recomeçar. Cada posse é uma prisão. Cada relacionamento também pode ser uma espécie de prisão. Mas o contrário desta prisão não é a liberdade. É o vazio. Não há liberdade individual. A liberdade é uma conquista coletiva. Enquanto houver uma pessoa sendo oprimida, não existe a liberdade. Só existe o vazio.

Ter um filho mudou a visão que tenho sobre mim e minha relação com o mundo. Sinto que sou realmente importante para alguém. Importante como nunca fui. E isto é muito ruim, pois coloca uma pressão que não quero que meu filho tenha. Em algum momento, não serei mais tão importante para meu filho como ele é para mim, e tudo bem. Assim é a vida, assim que deve ser e eu devo saber lidar com isto. Minha mãe não soube. O recomeço é meu grande orgulho e sinto que será meu grande legado para ele. Até porque ele é também fruto deste recomeço.

Um, dois, treis, cuatru, cincu, seis, seti, oitu, novi, deis

Você chegou a existir? Quantas pessoas sua existência oprimiu? Quem pega a garrafa de cerveja vazia que você bebeu? Quem come os restos da comida que você deixou no prato? Quantas pessoas sua última viagem alimentaria? O que foi feito com o dinheiro do seu celular roubado? Onde foram parar os mendigos que estavam lá na frente ontem? Por que eles não voltaram? Quantos escravos me vestem? Quantos centavos recebeu a pessoa que apertou o último parafuso do meu celular? Eu e minha tia somos tão diferentes assim? Meu filho será diferente dela? Ele sentirá culpa? Somos todos culpados. A inocência é uma utopia tão grande quanto a liberdade. É importante nas sociedades modernas que as utopias sejam ridicularizadas. Ou que virem peças publicitárias. Quantas pessoas serão mortas para que eu me sinta seguro? Quanto medo você sente? O que você está disposto a aceitar para não ter mais medo? O que está disposto a perder?

“Papa”. “Pato”. “Sapato”. “Água”. “Casa”. “Vovó”. São as palavras que meu filho já sabe falar. Ele também imita animais. Leão, tigre, dinossauro e cachorro têm o mesmo barulho. O gato faz auau. Macaco faz nhã. Toda vez que uma palavra ou um gesto aparecem, a esperança renasce. O Recomeço. Tudo parece valer a pena. Apesar de tudo. Apesar de tudo. Apesar de tudo. Apesar de tudo. Apesar de tudo. Apesar de tudo. Apesar de tudo. Apesar de tudo. Apesar de tudo. Apesar de tudo. Apesar de tudo. Apesar de tudo. Apesar de tudo.

Estou cansado. Muito cansado. Tô exausto. Apesar disto, tenho em mim todos os sonhos do mundo.


domingo, 16 de julho de 2023

"Super" Xuxa e o Baixo Astral

 


Tenho às vezes a impressão de que algumas notícias aparentemente inocentes e irrelevantes são mais importantes e relevantes do que notícias aparentemente importantes e relevantes. Reforma Tributária, inelegibilidade do genocida, gado agredindo Xandão. Mas a notícia que mais me chamou a atenção foi a briga de Xuxa e Marlene Matos.

Possivelmente não há pessoa mais improvável na história da mídia brasileira. Não há história de sucesso mais improvável que a dela. Mulher num país machista. Negra num país racista. Nordestina num país em que o Sul-Sudeste trata com menosprezo a região Nordeste. Homossexual num país homofóbico. Obesa num país gordofóbico. Marlene é o tipo de pessoa que o Brasil oprime. É o perfil de pessoa que o Brasil silencia. Acho um mistério como uma pessoa como ela conseguiu triunfar num país tão preconceituoso como o Brasil e num ambiente em que estes preconceitos são tão aflorados quanto a televisão brasileira dos anos 1980.

Com exceção ao fato de ser mulher, Xuxa é todo o oposto de Marlene. A branca. Sulista. Heterossexual ex-namorada dos dois atletas mais importantes da história do país. Símbolo sexual. O choque entre Marlene e Xuxa é mais do que um choque entre duas personalidades. É o choque entre dois mundos.

Eu tenho pouco interesse em geral por biografias. Não sei muita coisa fora o já dito sobre Marlene. Procurei algo sobre a vida de Marlene quando a ideia deste texto surgiu e achei pouca coisa de muito interessante. O mais relevante é que ela entrou na Globo como datilógrafa. Deve ter ralado MUITO para chegar à diretora de um programa de televisão. Sei bastante sobre Xuxa. Sei o nome da sua filha, dos seus namorados e conheço um monte de música que ela cantou. Xuxa nunca foi boa atriz, nem boa cantora. Seus filmes foram sucesso de bilheteria e seus discos são recordes de venda até hoje. Xuxa nunca precisou ser tão boa, sua principal qualidade foi ter “carisma”. E o “carisma” é, em geral, algo muito restrito a um grupo de pessoas no Brasil. Ninguém nunca se interessou muito por Marlene. Todo mundo sempre se interessou por Xuxa.

Xuxa passou boa parte da sua vida sendo debiloide. Aparentemente está mudando. Um privilégio que pessoas brancas têm é de ter mais tempo para aprender. Pessoas negras não têm tanta sorte. Em geral, elas não podem errar.

Marlene não podia errar quando apostou todas as suas fichas na jovem Xuxa nos anos 1980. Entrou de cabeça, era a sua chance. A única chance. O que ela fez exatamente? Não sei. Ninguém parece muito interessado em saber e Marlene não parece estar a fim de contar. Xuxa está lançando um documentário para contar sua versão sobre a história. Parece que vai fazer sucesso.

O encontro de Xuxa e Marlene Mattos foi transmitido pelo “Fantástico”. O parto de Xuxa também. Marlene chocou Xuxa ao dizer que “não mudaria nada do que fez”. Ainda não sabemos ao certo o que Marlene fez. E provavelmente não veremos sua versão dos fatos. O Brasil nunca se interessou muito pela versão das Marlenes, afinal. Mas faz todo sentido que ela não queira mudar nada do que fez. Marlene é mulher num país que há 5 anos elegeu como presidente uma pessoa que dizia que ter filhas mulheres era sinal de fraquejada. Marlene é negra num país que há 5 anos elegeu como presidente uma pessoa que ria ao dizer que pessoas negras deveriam ser pesadas em arrobas. Marlene é maranhense num país que há 5 anos elegeu como presidente uma pessoa que dizia que a melhor coisa que existia no Maranhão era um presídio superlotado onde ocorrera naquela semana uma chacina. Marlene é homossexual num país que há 5 anos elegeu como presidente uma pessoa que defendia que crianças deveriam ser agredidas pelos pais caso demonstrassem inclinações homoafetivas. Marlene é a pessoa sem boa aparência num país que há 5 anos elegeu como presidente uma pessoa que disse que não estupraria uma então colega deputada porque ela era feia e não merecia. Marlene não tem que mudar nada. É todo o resto que tem que mudar. Xuxa mudou bastante. Inclusive a ponto de trabalhar aberta e corajosamente contra a reeleição deste presidente no ano passado. Mas não mudou a ponto de entender totalmente seus privilégios e de se colocar no lugar de Marlene. 

Marlene disse a Xuxa em seu encontro que “o mundo não é feito de flores”. Não, definitivamente não é. O documentário provavelmente transformará Marlene, a grande responsável pelo sucesso de Xuxa, em vilã. Marlene não parece muito preocupada com isto. Ela já está acostumada. O Brasil já está acostumado. A barbárie se converteu em costume. E é difícil abandonar mais de 500 anos de costumes.


terça-feira, 11 de abril de 2023

Angústia

 


Este blog funciona para mim como uma espécie de terapia. Clarice Lispector (e juro que foi ela mesmo quem disse) certa vez disse que palavras devem ser ditas ou escritas, senão elas te devoram. Os últimos anos foram muito angustiantes para mim e este blog me ajudou muito. A nova etapa da angústia e distopia brasileira parece ser a onda de ataques a escolas. Não há nada que indique que isto não vá virar uma epidemia, principalmente porque o país escolheu tratar este problema da pior forma possível, que é considerar estes ataques resultado de pura e simples maldade individual. Ela está lá, sem dúvida. Mas há algo mais acontecendo.

Torcida organizada. Igreja evangélica. Bolsonarismo. Todos estão em busca de uma noção de pertencimento. Um grupo do qual você faça parte e sinta que há algo acontecendo. Pode ser torcer para um time. Pode ser rezar para um suposto senhor que mora no céu e vê tudo que você faz. Pode ser se vestir de verde-e-amarelo e sair pelas ruas berrando todo tipo de barbaridade. A verdade é que um grupo de jovens encontrou nesta loucura nas escolas um grupo de pertencimento. Eles estão em redes sociais sendo incentivados a praticar estes atos absurdos e enxergam na realização dos mesmos uma chance de fazer algo que dê algum sentido a uma vida insignificante. Encontram na mais pura maldade uma voz. Palavras devem ser ditas ou escritas, senão elas te devoram. Ninguém quer ouvi-los. Ninguém quer lê-los. Eles estão sendo devorados. E resolveram levar outros juntos.

O Brasil se tornou uma cópia tosca dos EUA. A impressão que tenho é que tudo de mais tosco que existe lá está vindo para cá. Mais do que isto, somos incapazes de olhar os exemplos de lá e entender como agir por aqui. Todo mundo sabia que estes lunáticos bolsonaristas invadiriam o Congresso em algum momento. Nada foi feito. Agora é a hora de importar o que há de pior por lá, estes massacres em escolas. Duas lições de lá: Pena de morte não adianta. O Texas, estado com maior número de massacres nesta década, tem pena de morte. Não apenas isto, a maior parte das pessoas que praticam estes ataques se suicidam ou tentam se suicidar após fazê-los. Eles enxergam a morte como uma libertação. Os massacres são um último grito, algo para tornar a própria morte algo grandioso. Algo do tipo “morri, mas trouxe outros juntos”. Não li muitos detalhes sobre os ataques recentes em escolas brasileiras. Para um pai de um filho de um ano é uma tortura ver isto acontecendo. Mas acho bem provável que o suicídio estivesse nos planos dos que praticaram os ataques, talvez eles tenham sido capturados antes. Ameaçar de matar pessoas que tocaram o foda-se a tal ponto para a vida não é um bom plano. A segunda lição: armar a população (professores neste caso) não vai dar certo. Numa sociedade doente como a nossa, deixar uma pessoa armada numa sala de aula é pedir para mais merdas acontecerem.

Trocentas são as causas deste tipo de tragédia. É como a queda de um avião. Óbvio que há o componente maldade. Mas há também o componente exclusão. O componente silêncio. O componente competição, que cria uma sociedade de perdedores. Há principalmente o componente ódio, tão estimulado pelo grupo político que nos governou entre 2018 e 2022. E teremos que achar um jeito de lidar com isto. Normalizamos a barbárie diariamente. Com este tipo de barbárie ainda não estamos normalizados. Espero que não copiemos também isto dos EUA, mas acredito que copiaremos. A pandemia tirou a minha capacidade de achar que podemos resolver as coisas coletivamente. É cada um por si. Até a hora em que a tragédia bater na porta de casa. Seja tomando o tiro. Seja puxando o gatilho.


sexta-feira, 10 de março de 2023

A Educação no governo petista

 


Um fenômeno tipicamente brasileiro é o voto de pessoas instruídas na extrema-direita. O Brasil é um dos únicos lugares do mundo em que a probabilidade de uma pessoa votar em candidatos fascistas aumenta de acordo com o seu grau de escolaridade. Digo um dos únicos porque a mesma coisa aconteceu na última eleição presidencial chilena. Talvez isto seja um fenômeno latino-americano, mas temos que esperar.

Mais do que um instrumento de inclusão, a educação sempre foi vista no Brasil como um meio de diferenciação. Aquele que se instrui se acha melhor do que o que não teve instrução, e a sociedade faz tudo para confirmar este sentimento. Prisão especial para quem tem ensino superior, liberação do serviço militar, entre outras coisas. Mais do que tudo, uma parte significativa das pessoas que busca o ensino superior procura esta diferenciação.

A formidável inclusão de pessoas em cursos superiores nos governos Lula e Dilma não foi completada por formação política. Uma boa parte das pessoas que alcançou cursos superiores neste período, principalmente aqueles que entraram em universidades privadas, não enxerga esta conquista como fruto de uma luta política, mas sim como fruto de uma conquista pessoal. Algo do tipo “eu me matei de trabalhar, paguei o curso, o mérito é todo meu”. Para estas pessoas, o diploma só faz algum sentido se vier seguido por aumento salarial e emprego melhor. Como em MUITAS situações isto não veio, o novo diplomado se sentiu frustrado, encontrando no fascismo a válvula de escape para esta frustração.

Há também, claro, a rejeição daqueles que já frequentavam universidades e que perderam sua exclusividade. Pessoas que odeiam as cotas sociais. Nada frustra mais pessoas acostumadas com a exclusividade do que perdê-la. Vejamos o exemplo dos aeroportos, o rancor que a nossa elite teve em ter que dividir o avião com pessoas que ela acha que deveriam pegar ônibus. São pessoas que estão amando este novo mundo em que um moleque de bicicleta faz as suas compras no mercado por 10 reais, por exemplo. Pessoas que acham que vale a pena votar num maníaco psicopata porque ele vai privatizar a Eletrobrás. Pessoas ruins que de certa forma usam a educação para chamar a sua crueldade de racionalidade.

Poucas coisas sofrem mais com discurso vazio do que a educação. Às vezes mesmo pessoas claramente bem intencionadas, como Tábata Amaral, se perdem ao achar que o simples investimento em educação basta, ou que acreditam que a função da educação seja a formação de lideranças. Uma visão individualista.

 Mais do que investir em educação, é preciso mudar o conceito de educação. Por anos, inclusive durante os governos petistas, a educação brasileira seguiu a lógica de que sua função era simplesmente formar mão-de-obra qualificada para o mercado. As últimas décadas foram marcadas pela desvalorização das ciências humanas. Não à toa o programa Ciências sem Fronteiras não contemplou ciências humanas. O Brasil não se interessou em enviar filósofos ou sociólogos para estudarem fora, apenas engenheiros. Educação sem formação política e sem formação para a cidadania não forma uma sociedade melhor. Pelo contrário. O Brasil que gerou Bolsonaro é a prova disso. Dilma Rousseff era inclusive contrária à inclusão de filosofia e sociologia na grade curricular das escolas. Foi impedida de realizar estas retiradas pelo PT, cabendo a Temer realizar a tarefa.

Ainda não ficou totalmente claro qual o caminho que o novo governo petista seguirá na área educacional, se o PT entende os erros que cometeu nesta área. Erros estes, para deixar claro, que são menores do que os enormes acertos. Por enquanto, a área está sob comando do PT-CE, governo mais bem-sucedido na área educacional nas últimas décadas e onde a experiência fascista dos últimos cinco anos não vingou. Uma esperança.

A experiência de destruição do tecido social vivida com a Lava-Jato e com Bolsonaro deveria nos levar a uma forte reflexão e reconstrução de toda a sociedade. Um processo semelhante à desnazificação alemã. E este processo pela educação. Mas não pela educação que tínhamos e que de certa forma estimulou o fascismo. Um novo tipo de educação, que forme cidadãos e que pense na sociedade como um todo.

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2023

O primeiro semestre de 1998

 


1998. Muitas vezes eu acho que idealizo o primeiro semestre de 1998. Mas toda vez que penso numa época muito feliz, eu volto ao primeiro semestre de 1998. O U2 veio para o Brasil. A Copa foi legal. Teve o meu primeiro beijo. Minha primeira viagem de avião. Teve o gol do Didi. Teve o gol do Oseas. Teve Titanic. E principalmente, teve o que se seguiu no segundo semestre de 1998. Se eu acho que idealizo o primeiro semestre de 1998, não tenho dúvidas de que o segundo semestre de 1998 foi uma merda. Foi quando perdi meu pai. Sempre que penso no primeiro semestre de 1998, penso no meu pai saudável. Claro que ele não estava saudável, ele já tinha câncer há uns 10 anos. Mas na minha memória ficou saudável. Eu tinha 14 anos e já faz tempo afinal. O segundo semestre foi só tristeza.

O gol do Didi. Tinham se passado uns 20 minutos do segundo tempo da final do Campeonato Paulista entre São Paulo x Corinthians. O Timão havia vencido o primeiro jogo por 1x0 ou 2x1, não lembro, jogava pelo empate, e o tricolor vencia o segundo jogo por 1x0, com um gol do Raí, que tinha voltado para o SP depois de uma passagem em Paris e fazia seu primeiro jogo na volta. Didi era o pior jogador do Corinthians. Um atacante horroroso. Eu sou palmeirense e meu pai era corintiano. Como eu enchi o saco do meu pai por causa deste cara. Muito. Eis que aos 20 do segundo tempo (ou algo do tipo), Didi recebe a bola pela esquerda, na entrada da área. Corta o zagueiro e com o pé direito chuta a bola por cobertura. Há um tipo de gol no futebol que eu gosto muito, que é aquele cujo chute faz o tempo parar. Gols por cobertura têm esta característica. No curto período em que a bola saiu do pé de Didi e foi na direção do ângulo do gol defendido pelo jovem Rogério Ceni, a Terra parou de girar. Neste segundo, todas as pessoas assistindo ao jogo aspiraram o ar com força, um som meio “fffff”, até a bola estufar a rede e vir a explosão. Eu assistia o jogo na sala, andar de baixo, e meu pai no quarto, andar de cima, de um sobrado cujo piso era de madeira, a casa inteira ouvia quando alguém andava. Meu pai, embora na minha memória estivesse saudável, já estava doente e não saia muito do quarto. Pois eis que quando a bola entra, não ouço nenhum grito. Só ouço um “tum”, que era levantando da cama, seguido por mais alguns “tum” de seus passos indo até a escada e uns “tum” mais forte dele descendo a escada. Meu pai chega na sala vermelho, suado, com um sorriso que eu nunca mais esqueceria e grita “CHUPA”. O SP viria a ganhar o jogo e o campeonato, mas o que ficou para mim deste jogo foi o gol do Didi. Às vezes penso que se eu pudesse mudar o resultado de um evento esportivo na história do mundo, seria o desta final do Paulista. Não consigo imaginar o que meu pai faria se o Corinthians tivesse sido campeão com aquele gol do Didi. Mas o título se tornou o de menos na minha memória. Alguns dias depois, o Palmeiras ganhou a Copa do Brasil com um gol improvável de Oseas no último lance do jogo. Até hoje não sei como aquela bola entrou. Havia chegado a hora de devolver a meu pai a visita. Desta vez era eu quem fazia o “tum tum tum” em direção ao seu quarto. Lá chegando, encontrei meu pai feliz e de pé. Ele me abraçou e me deu parabéns. Eu não sabia, mas de certa forma ele começava a se despedir.

Titanic. Não sei se depois daquilo houve algo semelhante no cinema. E digo não sei porque sou ignorante sobre cinema mesmo. Não faço ideia do que está acontecendo desde que filmes de heróis ocuparam as salas. Há um tempo, antes da pandemia, eu trabalhei numa Wizard em Itapevi e a escola conseguiu ingressos gratuitos para seus alunos assistirem Os Vingadores. Foi uma loucura. Talvez tenha sido algo semelhante ao que foi com Titanic. Não sei. Mas bom, para falar do que foi Titanic no meu 1998, é necessário passar por duas personagens do meu 1998, Tatinha e Aninha. Eu era apaixonadinho pelas duas. Ora por uma, ora pela outra, ora pelas duas. Eu me apaixonava bastante em 1998. Tatinha e Aninha eram duas pessoas que, como o diminutivo mostra, eram pequenas e andavam sempre juntas. Tatinha era a nerd da turma e Aninha era sua melhor amiga esforçada que passava aos trancos e barrancos. A paixonete por Tatinha é fácil de explicar. Eu era nerd, ela era nerd, pronto, isto bastava para que eu nos imaginasse juntos. Já Aninha era um pessoa mais interessante. A primeira coisa sobre ela é que ela tinha uma autoestima tão baixa quanto à minha à época. A segunda é que ela tinha uma mãe tão controladora e competitiva quanto a minha. Toda vez que existia alguma competição na escola que exigia alguma participação materna, eu ficava em primeiro e ela em segundo, ou vice-versa. Lembro uma vez em que houve uma competição para ver qual aluno levava mais latinhas para reciclagem. Aninha liderava até o último dia, quando minha mãe apareceu com uma caralhada de latinhas. Venci. Meus prêmios foram um boné e uma bola que perdi no mesmo dia. A terceira característica de Aninha é que ela tinha uma letra linda. Uma vez fui ajudá-la em algum texto de história, estava absolutamente tudo errado, mas a letra era linda. Tenho planos de ser professor e serei do tipo que darei pontos a alunos com letras bonitas. Tenho uma certa queda por talentos que perderam espaço. E a quarta característica de Aninha é que ela era obsessiva-compulsiva. Não faço ideia de onde isto a levou na vida, mas ela mergulhava com intensidade em tudo. E mergulhou no Titanic.

Aninha ia duas vezes por semana ao cinema assistir Titanic. Eu achava incrível porque eu ainda não havia nem conseguido ingresso para ver o filme e ela dizia que tinha ido de novo. Aninha mergulhou também em Di Caprio. Tinha absolutamente tudo sobre ele. A ponto de ir ao cinema repetidas vezes assistir O Homem da Máscara de Ferro. No mesmo ano de Titanic, saiu este outro filme com o Di Caprio e é tipo o pior filme de todos os tempos. É tipo muito muito ruim. E ela ia ver. Não apenas isto. Tinha alguma rádio de SP que tocava My Heart Will Go On uma vez a cada hora. Uma vez a cada hora. E My Heart Will Go On, possivelmente a pior música de todos os tempos. Pois Aninha passava o dia inteiro ouvindo esta rádio para não perder a música sendo tocada naquela hora específica. Ficava ouvindo um walkman escondida durante as aulas, se ferrou algumas vezes por isto aliás. Um belo dia, alguém perguntou a ela se ela não tinha comprado o CD com esta música. Ela respondeu que sim, e este alguém perguntou por quê ela não ficava ouvindo o CD ao invés de esperar a música tocar na rádio a cada hora. Aninha respondeu com um gemido. Ela sabia que o cara que perguntou não seria capaz de entender que esperar a música tocar na rádio é bem mais legal.

Minha mãe estava desesperada para ver Titanic. Ela já não ia mais ao cinema, achava caro e ver em casa na fita cassete era mais confortável. Mas ela não aguentava mais. Queria ver Titanic. Minha família já estava numa fase mais shoppinglizada da vida. Até 1995, eu morava num apartamento na Santa Cecília, depois fomos para um sobrado no Cambuci. Engraçado é que a minha vida de certa forma se fechou depois que saí do centro. Antes fazia tudo por lá. No Cambuci, tudo se tornou mais “perigoso”. Cinema só no shopping. Mas eis que minha mãe não conseguia ingresso de jeito nenhum. Contei a história de Aninha e ela xingou a coitada. Chamou-a de mentirosa. Um belo sábado minha mãe falou: “Chega!”. Me puxou pelo braço e disse: “Hoje vamos ver Titanic”. Sua solução foi ir no Cine Ipiranga.

O Cine Ipiranga. Joia da era de ouro do cinema paulistano nos anos 1950, em franca decadência nos anos 1990. A sala tinha lugar para 1.200 pessoas, 1.500 com o andar de cima aberto. Lá chegando, a fila dava uma volta no quarteirão. Após uma hora e meia, ingresso comprado, mas para a sessão seguinte. Teríamos que esperar mais 2 horas e meia para entrar. Sentamos e esperamos, na sala de espera do cinema. Minha mãe vai ao banheiro e, então, o inesperado acontece. Uma adolescente da minha idade senta ao meu lado e me oferece pipoca. Vou repetir. Uma adolescente da minha idade senta ao meu lado e me oferece pipoca. Isto nunca mais aconteceu na minha vida. Acho que nunca mais acontecerá. Eu travei, ao mesmo tempo que me apaixonei instantaneamente pela menina. A minha versão adolescente se apaixonava automaticamente por qualquer garota que demonstrasse qualquer interesse em mim. Ainda travado, respondi que não e me levantei. Passei uns 2 anos para superar este não. Na saída do cinema, vi a menina beijando um outro cara. Prometi que nunca mais recusaria uma pipoca. Um mês depois desta sessão eu daria meu primeiro beijo. Aconteceu com uma menina chamada Claudia, durante o trailler de Missão Impossível, ao som de Bed of Roses do Bon Jovi. Depois dividimos uma pipoca.

Pois bem, entramos no cinema. A parte de cima estava fechada para reforma. Mas por algum erro, o cinema havia vendido 1.500 ingressos para 1.200 lugares. Superlotação rolando, a galera sentando em todo canto, de repente alguém fala “Vamos invadir lá em cima”. Correria. Gritos. Porta caindo. Gritos. Com a parte de cima já ocupada, começa a cantoria “se o filme não começar, ole ole olá, o pau vai quebrar”. Ao nosso lado na sala, uma senhora que estava lá para assistir ao filme pela quarta vez. No trailer ela começa a chorar. “O que houve?”, pergunta minha mãe. “Estou pensando no final”, responde ela.

Assistir filme no Cine Ipiranga era uma experiência totalmente diferente do que já era minha experiência cinematográfica e do que seria no futuro. Não havia espaço para silêncio. Era gritaria e festa o tempo todo. “Corno vagabundo” quando aparecia o vilão. “Gostosa” quando aparecia Kate Winslet. “Lindo” quando aparecia Di Caprio. O barulho na hora em que Di Caprio desenha Kate Winslet sem roupa me lembrou o gol de Didi. Gostei daquilo. Até o fim do cinema, ia ao Ipiranga assistir filmes quando este tipo de atmosfera fosse “permitida”. Filmes do Eddie Murphy, por exemplo. Fim do filme. Choro e desespero na sala. Minha mãe vira para a sua vizinha de cadeira que chorava copiosamente e diz “não gostei, esperava mais”. Eu tinha certeza que ela falaria isso. Na volta compro uma pipoca com bacon do pipoqueiro na frente do cinema e pegamos um táxi. Minha mãe passa o caminho inteiro falando mal do filme com o taxista. Eu pensava na garota da pipoca.

Um pouco depois, minha primeira viagem de avião. Viagem de formatura da oitava série para as Serras Gaúchas. Toda vez que penso no primeiro semestre de 1998, penso que eu era rico. Fui a primeira pessoa da família a viajar de avião. A Copa rolava durante esta viagem. A Copa na adolescência / infância. Não há nada melhor. Tive um filho em 2022, se tiver que escolher uma Copa para o Brasil ganhar, que seja 2030, quando ele tiver 8 anos. Eu tinha 10 quando o Brasil ganhou em 1994. Tinha 14 quando perdeu em 1998. Isto foi em julho. Dois dias depois da final, eu e minha irmã viajamos para visitar uma tia em Santa Cruz do Rio Pardo. Quatro horas de viagem na ida, quatro na volta. Meu pai e minha mãe foram nos levar na rodoviária. Ficaram esperando o ônibus sair. Meu pai estava de boina e cachecol. Ele sorria. Quando voltamos duas semanas depois, apenas minha mãe foi nos buscar. Começava o segundo semestre de 1998.