quinta-feira, 22 de agosto de 2024

Os dez minutos e o acaso

 


O relógio marcava 42 minutos do segundo tempo quando o juiz marcou falta para o Palmeiras na lateral esquerda da grande área.

Eu tenho um filho de 2 anos e a minha relação com futebol mudou desde que ele nasceu. Continuo acompanhando bastante o esporte, mas muito raramente assisto a uma partida quando ela começa às 21:30. Meu filho dorme MUITO mal e eu tenho que aproveitar toda a oportunidade em que ele dorme para tentar dormir junto. Muitas vezes ele acorda tipo 5 da manhã. Ontem resolvi abrir uma exceção. O jogo era importante e eu não fazia a menor ideia de quem ia ganhar. Normalmente eu sei se o Palmeiras é favorito ou não, mas ontem era diferente. O Botafogo tem mais time, está numa melhor fase e ganhou o primeiro jogo. No entanto, e quem acompanha futebol vai me entender, a gente nunca acha que o Botafogo vai ganhar. Há uma aura de derrota que cerca a equipe carioca, parece que sempre acontecerá que dará início a um destrambelhamento completo da equipe levando à derrota inevitável. Este algo pode ser uma proposta que tire o técnico, uma contusão, um pênalti perdido, um espirro, um latido de cachorro, qualquer coisa. E por isso lá estava eu, umas 10:10 da noite, assistindo Palmeiras e Botafogo aos 42 minutos do segundo tempo. Faltando 3 minutos para acabar o jogo, o Botafogo vencia por 3 gols no valor agregado, dominava a partida e demonstrava grande tranquilidade. O Palmeiras atacava sem nenhuma organização, cruzava bolas na área sem nenhum perigo, o tempo passava em mais uma partida de futebol que seria inesquecível só para aqueles que se esforçassem para não esquecer. Mas algo sempre acontece com o Botafogo. O destrambelhamento.

Aos 42 minutos do segundo tempo, após trezentos e cinquenta trilhões de cruzamentos que não deram em nada, Gabriel Menino cruzou e Flaco Lopez marcou o primeiro gol. Saída de bola, o Palmeiras recupera a bola e, sem nenhum resquício de organização vai chutando a bola para o alto, alguém que não lembro escora de cabeça, Rony chega tropeçando, chuta errado, a bola passa por cima do goleiro, o zagueiro fura em cima da linha. 45 minutos do segundo tempo.

Algo sempre acontece com o Botafogo. Todos são levados a um sentimento que une duas frases aparentemente distantes. “Eu sabia que isto ia acontecer”. “Não acredito que isto está acontecendo de novo”. Há uma aura no futebol que é o que mais me interessa no esporte, este sentimento coletivo que de certa forma é desencadeado por uma ação e começa a se tornar verdade meio porque todo mundo percebe que ele vai acontecer. Naquele exato instante todos os jogadores, torcedores, espectadores, narradores e até o árbitro perceberam o que estava acontecendo.

O juiz decidiu dar 5 minutos de acréscimo. O Botafogo prendeu bem a bola por 3 destes minutos, mas parecia meio claro o que iria acontecer. Era quase como algo destinado. O Palmeiras recuperou a bola e não tinha mais tempo, formação tática ou mesmo vontade de organizar um ataque organizadamente. Era o caos e a aposta neste destino. Bastava chutar a bola para o alto e para a frente, o acaso resolveria. E o acaso resolveu. Bola pra cima, um monte de cabeçadas, bate-e-rebate na área, a bola sobra para Gustavo Gomez que vira pro gol e chuta. A hecatombe. A catarse.

Em casa, eu me esforçava para não sair gritando e acordar meu filho, enquanto o som da rua não demonstrava tanta preocupação. O VAR, porém, mudou a minha relação com o gol. Entre saltos e pensamentos eufóricos, eu sempre me preocupo em ver se tá mesmo tudo ok. Foi notório que antes de chutar uma bomba no meio do gol, Gomez havia dominado a bola com o braço. Sem querer, mas dominou. A reação ao replay que mostra uma irregularidade no gol do seu time é sempre algo interessante. A minha primeira reação foi “putz, pegou no braço”. Em seguida, tentei achar alguma razão que justificasse aquilo não ser ilegal, partindo para o desespero final de “o VAR não vai ver”. Não tem como não ver. O VAR viu e chamou o árbitro. Este foi para a tela e tive realmente a impressão de que ele se esforçou para não ver a irregularidade. Se houvesse alguma possibilidade de interpretação no lance, não tenho dúvidas de que o juiz daria o gol. E não é porque ele foi comprado ou é ladrão. Mas é porque ele entendia o que estava acontecendo. Entendia que estava vivendo uma catarse e uma hecatombe. Mas quis o destino mudar.

Aos 50 minutos do segundo tempo a bola bateu na mão de Gustavo Gomez e o terceiro gol do Palmeiras foi corretamente anulado. Uns 5 centímetros para o lado e a bola teria batido no seu peito. Dois minutos mais tarde, no último lance da partida, Gabriel Menino bateu uma falta que bateu na trave. Uns 5 centímetros para o lado e a bola teria entrado no gol. Destino.

A catarse foi uma quase catarse. A hecatombe foi uma quase hecatombe. Aquilo que todo mundo sabia que ia acontecer quase aconteceu. Aquilo que ninguém acreditava que ia acontecer quase aconteceu.

A vitória do Botafogo acabou sendo heroica. Não pelo placar ou por eliminar o rival. Mas porque o Botafogo venceu algo maior do que uma partida. Venceu um fantasma. Mudou o seu destino. Sou palmeirense, mas só tenho a agradecer por estes 10 minutos que me causaram uma noite de insônia. Futebol é o que é não apenas pelas vitórias inesquecíveis. Mas também pelas derrotas que carregaremos para sempre.


sábado, 20 de julho de 2024

Em nome de "Deus"



Há exatos 80 anos, em 20/07/1944, “Deus” salvava a vida de Adolf Hitler. Um grupo de generais nazistas, descontentes com os rumos da guerra, resolveu que chegara a hora de matar o Führer. Colocaram uma bomba na sala do genocida, que escapou por alguns detalhes. O primeiro é que ele havia adiantado, sem motivos, o assunto de uma reunião por meia hora, o que fez com que os conspiradores pudessem armar apenas uma bomba, e não duas como previsto. O segundo é que no exato momento da explosão Hitler não estava onde deveria estar, havia notado um detalhe em um mapa que era examinado, sendo protegido pelo corpo de outro membro do Partido Nazista. Hitler logo creditou o fracasso da operação a “Deus” e acelerou aquilo que considerava sua missão “divina”: Erradicar a presença de judeus do continente europeu. O período entre o atentado e o fim da guerra foi o momento em que mais judeus foram mortos em campos de concentração durante a guerra.

Nada é mais perigoso do que um psicopata em missão divina. E isto nem é tão difícil de acontecer. Psicopatas costumam ser narcisistas e para eles é muito fácil se identificar com um ser superior que vive no céu, vê tudo o que fazemos, julga todos os nossos atos, está acima do bem e do mal e condena ao sofrimento eterno todos aqueles que ousam discordar dele. Nada é mais perigoso do que pessoas que chegam ao poder se apresentando como representantes deste “Deus”. Se “Deus” está ao lado dele, ele nunca está errado, uma vez que “Deus” é infalível. Não há certo e errado quando sabemos que “Deus” está ao nosso lado. Expulsar imigrantes, defender a tortura, a pena de morte, o acesso a armas, caçoar de pessoas doentes durante uma pandemia etc. E bota etc nisto. Deutschland über alles. Brasil acima de tudo, “Deus” acima de todos. Make America Great Again.

Felizmente, “Deus” não fez a Alemanha ganhar a guerra e não alterou a trajetória da bala que Hitler meteu na própria cabeça menos de um ano depois. Mas ter se sentido salvo por “Ele” fez com o que o líder se radicalizasse ainda mais. Se olharmos a história, é isto que nos espera após a salvação de Trump. Radicalização. Trump escapou de sua tragédia, naquilo que pode marcar o início da tragédia para muitos outros. Sempre, claro, em nome de “Deus”.


quinta-feira, 30 de maio de 2024

As "saidinhas"

 


Eu realmente acredito que podemos analisar o grau de evolução civilizatória de um povo ela forma como ela trata os seus presidiários. Sociedades que são capazes de não desumanizar a figura do presidiário, que são capazes de dar-lhes decência e oportunidades de arrependimento e reinserção, que não os usam como válvula de escape para ódios cotidianos são mais civilizadas em todos os aspectos.

Nesta semana tivemos no Brasil a aprovação pelo Congresso do fim das “saidinhas”. O próprio uso deste termo já mostra como o assunto foi manipulado, tratado com deboche. Presos podiam sair em alguns feriados específicos para visitar parentes. Natal, Páscoa, não sei mais quais. Algo como 95% dos presidiários que saiam voltavam sem problema. Os 5% que não voltavam eram um dos argumentos necessários para que aqueles que lucram com a desumanização da figura do presidiário convencessem uma boa parcela da população a se revoltar contra o assunto. A mídia sempre fez questão de enfatizar os abusos cometidos por estes 5% e de criar títulos sensacionalistas como “Suzanne Richtofen sai da cadeia no dia das mães”. Bom, deu certo.

É muito importante voltarmos à década de 1990 para entendermos a construção da barbárie que vivemos hoje e que está sendo um pouco atenuada pela saída provisória do bolsonarismo do poder central. Muita coisa que nos levou ao caos começou lá. A campanha midiática de ódio à classe política é uma delas. “O político não faz nada”, “eu pago meus impostos”, etc., tudo isto fez a carreira de um tipo de reacionarismo estilo Marcelo Tas, algo mais intelectualizado, que a partir do CQC na década seguinte convenceria jovens idiotas e despolitizados que ser idiota e despolitizado era inteligente. Um outro tipo de reacionarismo midiático viria com programas como “Aqui Agora” ou os do apresentador Ratinho, que simplesmente tratavam todo tipo de barbárie como entretenimento. A violência e o medo eram utilizados para atrair pessoas à frente da televisão, para vender bugigangas e para transformar figuras medíocres em justiceiros da população. Celso Russomano está aí até hoje.

O medo devora almas. O ódio devora almas. O ser com medo não pensa. O cidadão que “não sabe se seu filho vai voltar para casa hoje à noite” não pensa. Não tem mais alma. Perdeu a capacidade de sentir empatia por uma pessoa que passa a vida dentro de uma cela. Perdeu a capacidade de enxergar que aquela pessoa é um ser humano, perdeu a capacidade de enxergar no sofrimento que ela sofre algo que pertence à humanidade. Para ele, o presidiário deve apenas sofrer. Sofrer cada vez mais. Como se o sofrimento do presidiário tornasse a sociedade melhor, evitasse crimes e o fizesse se sentir mais seguro. Sinto muito. O fim da “saidinha” não tornará a sociedade melhor, não evitará crimes e não fará o “cidadão de bem” se sentir mais seguro. O que acontecerá é que este “cidadão de bem” vai procurar outras saídas. Algo que faça o presidiário sofrer ainda mais. Que tal trabalho escravo? Que tal tortura? Que tal pena de morte? Duas grandes características humanas são raciocínio e empatia. O medo e o ódio do “cidadão de bem” já devoraram isto. No lugar há algo ainda a ser nomeado. Como reumanizar um ser desumanizado? Não sei, o reumanizado não geraria tanto dinheiro assim.


quarta-feira, 21 de fevereiro de 2024

Netanyahu, Lula e as atrocidades

 



Uma constante da história da humanidade é a atrocidade. E uma constante sobre a atrocidade é que normalmente aquele que comete a atrocidade justifica a sua atrocidade argumentando que foi vítima de uma atrocidade anterior e que a sua atrocidade serve para impedir uma atrocidade posterior.

Na Iugoslávia dos anos 1940, tínhamos sérvios mais próximos da Rússia e bósnios-croatas mais próximos da Alemanha. Quando os alemães invadiram o país, coube basicamente a bósnios e croatas a missão de realizar uma limpeza étnica na região. Conseguiram. Aproximadamente metade da população sérvia foi assassinada durante o conflito. Por uma sorte do destino, porém, o líder do movimento de libertação dos sérvios era um croata, o marechal Tito. Com sua liderança, conseguiu impedir a revanche sérvia quando a guerra acabou. Veio a paz, que durou enquanto durou Tito. Com a morte do marechal, movimentos nacionalistas croatas e bósnios floresceram e bastou uma pessoa oportunista chegar ao poder na Sérvia, Slobodan Milosevic, para que o medo se instalasse entre os sérvios. A independência de Croácia e Bósnia foi vista como uma possibilidade de repetição da atrocidade dos anos 1940. E com o medo veio a força para a realização da nova atrocidade.

Em geral aquele que comete a atrocidade se sente uma vítima enquanto a comete. A atrocidade é um ato de justiça. O Holocausto judeu. Uma enorme atrocidade. Desde a fundação de Israel, em maior ou menor força, o Holocausto é a força motriz para a realização de todas as atrocidades cometidas pelo Estado. E para que esta força funcione bem, é importante que se realize uma gradação de atrocidades. O Holocausto tem que ser considerado a atrocidade maior, pois se toda a atrocidade for menor basicamente toda a atrocidade é justificada.

E muito difícil fazer uma gradação de atrocidades. Principalmente porque a atrocidade que sofremos será para nós sempre a atrocidade maior. Aproximadamente 3.000 pessoas morreram nos ataques terroristas de 11/09/01 em Nova Iorque. Uma atrocidade. Esta atrocidade serviu como justificativa para que os americanos invadissem o Iraque, ocasionando uma guerra que gerou aproximadamente 1.000.000 de mortos. Uma atrocidade. Qual atrocidade foi maior, a que causou 3.000 de mortos ou a que causou 1.000.000 de mortos? A resposta parece óbvia, mas pergunte a um americano.

A paz é algo muito difícil, pois quase toda paz é injusta. Vamos pegar a situação entre Israel e Palestina. Imagine que amanhã se assine um acordo de paz. O que sentirá a mãe israelense que teve um filho assassinado no ataque de 07/10 do Hamas no caso do assassino de seu filho não ser punido? Sentirá uma grande injustiça. O que sentirá a mãe palestina que teve um filho assassinado pelas forças israelenses no caso do assassino do seu filho não ser punido? Sentirá uma grande injustiça. A paz exige perdão e este perdão exige uma coragem extrema. Em 1990, Nelson Mandela saiu da prisão após 27 anos decidido a fazer a paz. Para conseguir esta paz, mostrou-se disposto a não punir os muitos criminosos da era do apartheid. Um grau de injustiça enorme. Coloquemo-nos no lugar de uma pessoa que teve a vida massacrada pelo regime do apartheid e que não viu seus opressores sendo punidos pelo crime. Imagine o sentimento de injustiça. Só funcionou porque havia Mandela. Mandela era capaz de olhar no olho desta pessoa massacrada e falar “Olha, eu me fodi também. Eu passei 27 anos trancafiado numa jaula. Se eu estou sendo capaz de passar por cima disto, você também consegue”.

Nenhuma pessoa neste conflito parece menos interessada na paz do que Benjamin Netanyahu. O primeiro-ministro israelense fez sua carreira boicotando toda tentativa de acordo de paz com os palestinos. Vendendo a seus eleitores a ideia de que a criação do estado palestino é injusta para o povo israelense. Desde a atrocidade de 07/10 vem cometendo todo tipo de atrocidade possível. E tudo registrado. Está acontecendo na frente dos nossos olhos. Netanyahu já DISSE, sim, ele já DISSE que seu objetivo é tirar os palestinos daquele região e ocupá-las com israelenses. Isto está dito. Para ele é fundamental que siga existindo a gradação de atrocidades que coloca o Holocausto no topo.

Lula em nenhum momento negou ou diminuiu o Holocausto. O que ele fez foi colocar a atrocidade contra os palestinos no mesmo grau. E isto choca Netanyahu, porque esta gradação de atrocidades é fundamental na manutenção de seu ciclo de atrocidades. Uma verdadeira máquina de mentiras entrou em ação. Lula foi acusado de “negar o Holocausto”. Tornou-se pessoa non grata em Israel. Não importa que o governo brasileiro tenha desde o primeiro dia condenado o ataque do Hamas. Netanyahu precisa de submissão total. Netanyahu mente sobre a fala de Lula e a usa como distração. A distração é fundamental para que as atrocidades sigam acontecendo. 

O governo brasileiro tenta desde o dia 1 trabalhar pela paz. Não deu certo. Todas as reuniões da ONU seguem terminando 13x1. Este 1 é dos EUA, que seguem rejeitando todas as tentativas de cessar-fogo. Não sei como será se um dia ficar 14x0. O governo israelense não se mostra muito disposto a respeitar decisões da ONU. Segue achando normal que um estado adote táticas semelhantes às de um grupo terrorista.

Em 1993, Yitzhak Rabin e Yasser Arafat deram as mãos naquele que prometia ser o momento da paz na região. Rabin foi assassinado dois anos depois. Netanyahu chegaria ao poder na eleição seguinte, prometendo desfazer o acordo de paz. Conseguiu. A paz exige coragem. Coisa que Netanyahu não tem. Cresceu prometendo atrocidades. É isto que consegue entregar.

sexta-feira, 8 de dezembro de 2023

O Botafogo e a vida

 

É algo curioso quando todo mundo meio que sabia que algo iria acontecer, aí quando este algo acontece fica todo mundo impressionado “meu Deus, algo aconteceu” quando no fundo todo mundo meio que sabia que algo iria acontecer. Pois bem, algo aconteceu. E foi com o Botafogo, o time com quem algo sempre acontece. Há uma espécie de sinergia. Um sentimento coletivo que antecede o algo que acaba provocando o algo. Qualquer faísca serve para provocar o grande incêndio de algo. Um apagão. Um cartão vermelho. Um pênalti desperdiçado. Um pênalti cometido. O impedimento por um micrômetro. Algo.

Amarelão. Pipoqueiro. Eu sempre me identifiquei com estes dois adjetivos. Sempre me achei meio amarelão. Sempre me achei meio pipoqueiro. E olhe que eu nem acho que tenha passado por situações tão estressantes assim. Qualquer coisa eu já fico nervoso. Sempre fui assim. Se eu fosse um jogador de futebol, sou do tipo que mandaria a bola do pênalti mais importante para fora do estádio. Se eu fosse jogador de basquete, meu lance livre decisivo não bateria nem no aro. Se eu fosse jogador de tênis, cometeria uma dupla falta no match point do adversário. Sempre achei curiosa esta identificação que as pessoas têm com atletas ou marcas vencedoras. Você se identifica com Roger Federer, Rafael Nadal ou Novak Djokovic? Eu me identifico, sei lá, com o Thiago Monteiro. Muito esforço e muita luta para chegar na segunda rodada. E olhe lá.

Se eu fosse um time, seria o Botafogo. Superstições, administrações atrapalhadas e poucos momentos de glória espalhados numa vida de sonhos e frustrações. Mas há uma certa beleza em perder muito e ganhar pouco. As muitas derrotas tornam as vitórias mais saborosas. E o esporte nos dá uma capacidade ímpar de aprender a recomeçar. E é isto que o Botafogo vai fazer. Recomeçar. É isto que estou fazendo sempre. Uma hora vai dar certo. Pode ser que não dê, mas por algum motivo sempre acreditamos. Uma hora derrotaremos o algo. E veremos que o algo não era tão foda assim. O Botafogo é o time que mais representa a vida. A vida não é o Palmeiras de Abel. Como não era o São Paulo de Telê ou o super Santos de Pelé (perdão por comparar o Palmeiras atual com aquele Santos. É como comparar um bom livro com, sei lá, Grande Sertão Veredas). A vida é o Botafogo. A sucessão de acasos que destrói os sonhos. Mas eles seguem lá. A sucessão de acasos que ao mesmo tempo destrói os sonhos servem para intensificá-los. Na primeira sequência de três vitórias o sonho e o trauma voltarão. Ainda mais fortes. E esta é a beleza da vida. É a beleza o Botafogo. No mundo competitivo e baseado nesta falsa identificação com os vitoriosos, o Botafogo sobrevive. Uma hora o pênalti vai entrar. O lance livre vai cair. Salvarei o match point com um ace. E o botafoguense vai sorrir no final.   




quarta-feira, 27 de setembro de 2023

A Assessora Negra, a Torcida Branca e o Pacto da Branquitude

 


Ter um público majoritariamente branco e que não sabe torcer em estádios não é exclusividade do São Paulo. À exceção talvez de Vasco e Santos, todos os grandes clubes brasileiros passaram por um processo intencional de elitização de seu público. Os dois instrumentos para isto foram o encarecimento dos ingressos e o programa de sócio-torcedor. Ninguém que não seja razoavelmente abastado tem condições de pagar uma mensalidade para poder, quem sabe, comprar ingresso em algum jogo. Cor de pele e classe social tem tudo a ver num país construído à base de escravidão e racismo. A área mais popular dos antigos estádios, a geral, foi destruída nas reformas de Maracanã e Mineirão. Ficou claro que os clubes não têm mais interesse em ter a camada mais popular em seus estádios. A isto a maior parte da mídia chamou de “modernidade”. Outras coisas “modernas” são a reforma da previdência e a reforma trabalhista. Sempre os mesmos beneficiados, sempre os mesmos prejudicados. O próximo passo da “modernidade” no futebol é tirar o esporte da grade da televisão aberta. Pay-per-view e streaming são o caminho para um esporte mais “moderno”, em que o torcedor é visto como um consumidor e a função do futebol é gerar receita. A parcela mais pobre da população já foi afastada do estádio e vai progressivamente sendo afastada da televisão. Sobrará o rádio, este sobrevivente da modernidade.

A assessora negra da ministra negra “ousou” apontar isto. Não apontou contra o time dela, o Flamengo, time mais popular do Brasil e que ironicamente é um dos líderes deste processo de elitização dos estádios. A mídia que defende a “modernidade” se revoltou e se levantou para pedir a demissão da assessora. Não importa que o que ela disse faça sentido, nem que ela tenha feito a crítica para um grupo interno de pessoas. O importante é impedir que o debate exista. Em geral, pessoas brancas detestam quando são apontadas como um grupo. Para elas, ir a um jogo de futebol e só ter pessoas brancas na arquibancada é “normal”. Assim como ir a um restaurante que só tem clientes brancos e atendentes negros. Tudo é “normal”. Quem ousa apontar alguma anormalidade nesta situação é rapidamente afastado. 

Marcelle Decothé e Anielle Franco estão em posições que causam incômodo ao país moldado pelo racismo. A assessora negra da ministra negra. Ainda ontem, a mídia “moderna” fez reportagens apontando os ganhos mensais da assessora negra. O rendimento mensal dela vira assunto. O de pessoas brancas, não. Isto independente da ideologia. Ninguém vai atrás de saber o rendimento mensal de Fernando Haddad, por exemplo. Ele pode estar onde está. Marcelle e Anielle, não.

O Pacto da Branquitude foi rápido em moer Marcelle. Não importa que ela seja extremamente preparada para o cargo que exercia. Cortaram o mal pela raiz. A ministra negra ligou para o presidente branco do time de torcida majoritariamente branca para pedir desculpas porque a sua assessora negra falou que o time de torcida majoritariamente branca tem torcida majoritariamente branca. E a vida vai seguir, com estádios cada vez mais brancos. É o que a “modernidade” exige.

Anielle segue, mas o Pacto da Branquitude estará sempre de olho, divulgando seus salários e criticando quando ela usar um avião público para participar de um evento especial. Este pacto se sente incomodado quando pessoas como Anielle chegam ao lugar em que chegaram e vai fazer de tudo para mostrar que “ela não presta”. Gostam de cortar o mal pela raiz. Mostrar o lugar de cada um. Não deixar ir longe demais. Imaginem se um dia uma mulher negra como Anielle chega, por exemplo, ao Supremo? Não, o Pacto não lidará bem com isto. O Pacto até está tentando fingir que é mais ou menos civilizado agora. Mas não verá problemas em fazer no futuro o que fez em 2016 e 2018. Explodir tudo para manter tudo como está. Como disse Emicida em entrevista ao futuro ministro Silvio de Almeida, "O Racismo vai morrer gritando". 

quinta-feira, 24 de agosto de 2023

Todos os sonhos do mundo

 


Estou cansado. Muito cansado. Estou exausto. À parte isto, tenho em mim todos os sonhos do mundo.

O bebê que não dorme. A aluna que faltou e não quer pagar pela aula. A aluna que cancelou o curso. A mulher da entrevista que deveria ter dado a resposta na semana passada. A dor nas costas que teima em não passar sozinha. A consulta ao médico que não paro de adiar. O fogo esquecido que queimou os legumes. A conta de luz. A verdade do universo. A bicicleta roubada. O governador fascista. A mãe paranoica mentindo. A mentira criando uma nova vítima. Larissa Manoela disparando meus gatilhos.

Calma.

Respira.

Conte até dez.

Um, dois, treis, cuatru, cincu, seis, seti, oitu, novi, deis. Fodam-se as regras gramaticais. Mas só algumas. Não se começa uma frase com pronome oblíquo.

Um Lucky Strike.

Pronto.

As palavras devem ser ditas ou escritas. Quando guardadas, as palavras causam estragos. Algo assim foi dito por Clarice Lispector ou por Belo. Na falta de dinheiro para a terapia, restará escrever mais.

Após cinco noites sem dormir, fiz a minha prova de alemão. Na aula seguinte, assinei a lista e tive que ir embora logo em seguida. Meu filho tava doente. Recebi a mensagem e foda-se tudo. Felizmente não era nada. Ou quase nada. Mas o filho com febrinha vira tudo. Dois dias sem cocô e vê-lo fazer cocô se torna a prioridade da minha vida. A alegria de chegar perto dela e sentir o cheiro de merda no terceiro dia. Nada paga. Tudo é relativo, até merda. Bom, na aula seguinte, recebi a lista novamente e lá tava o meu nome na aula anterior riscado. João Gabriel D. de Oliveira. Assim estava a minha presença naquela aula no fatídico dia. Era direito do professor, afinal, riscar a minha presença naquela aula no fatídico dia. A aula dele não é lugar para palhaços vagabundos. É sua função proteger o suado dinheiro do contribuinte público da ação parasitária de alunos picaretas que assinam a lista e vão embora curtir a vida. O que mais chamou a minha atenção, porém, não foi o risco. Foi que, além do risco, ele escreveu um F acima do meu nome riscado, circulou o F e deu um visto. Apenas riscar a minha assinatura já seria suficiente para cancelar a minha presença naquela aula no fatídico dia. Mas ela não bastava. Ele pôs também o F, o círculo e deu o visto. Para deixar claro que era ele que estava cancelando a minha presença naquela aula no fatídico dia, não uma outra pessoa que por algum motivo poderia ter raiva de mim a ponto de aproveitar a chance para cancelar a minha presença naquele fatídico dia. O risco, o F e o círculo foram feitos de caneta vermelha, o visto de caneta azul. Olhei para o professor, era um momento em que ele olhava alguma coisa no computador. Ele é daquela geração de homens que guarda uma caneta no bolso da camisa. A caneta era azul. Percebi que um outro aluno fez naquela aula a mesma coisa que eu havia feito naquele fatídico dia. A lista ainda não havia voltado para o professor e, assim que voltou, ele foi para um estojinho que tinha deixado em sua mesa e pegou a caneta vermelha. Risco, F e círculo. Guardou a caneta vermelha. Concluí que possivelmente aquela era a única função daquela caneta vermelha no mundo. Riscar, efezar e circular. Era quase um ritual de vingança. Ou de justiça. Às vezes, a linha que separa os dois termos é extremamente tênue.

Meu nome completo é João Gabriel Domingos de Oliveira. Aos 8 anos, tive que tomar uma decisão que decidiria a minha forma de identificação para o resto da minha vida. Fui fazer meu primeiro RG e minha mãe me pediu que eu abreviasse o Gabriel ou o Domingos, meu nome não caberia inteiro no espaço destinado à assinatura. Eu não tava preparado para aquilo. Abreviar o João e o Oliveira não era uma opção possível. Estes dois nomes estariam presos a mim para sempre. Optei por abreviar o Domingos. D. Tornei-me João Gabriel D. de Oliveira. Foi este nome que apareceria riscado, efezado e circulado na lista de alunos do curso na universidade pública trinta e um anos depois. Não sei se esta lista ficará arquivada por muito tempo. Acho que sim. Em algum futuro alguém achará o registro de que um tal João Gabriel D. de Oliveira quis enganar um professor universitário que não deixou barato a tentativa de esperteza do aluno folgado.

O Oliveira é uma prisão na minha vida. A família do meu é composta basicamente por filhos da puta. Não todo mundo, claro. Mas basicamente. Não que eu não ame alguns destes filhos da puta. Eu os amo. Mas o amor não me cega a ponto de não enxergar que um filho da puta é um filho da puta. É aquele tipo antigo de filho da puta. O filho da puta da metade do séc. XX. Gente ruim. Gente má. A matriarca da família (a irmã mais velha do meu pai) era uma empregada doméstica que se casou com o seu patrão, um homem rico. É muito raro alguém no Brasil que fosse rico nos anos 1950 e não fosse filho da puta. Ou filho de um filho da puta. Ou neto de um. Ou bisneto. A literatura brasileira foi escrita por gente rica. Gente que se beneficiou bastante de filhas da putagem. Não que não sejam bons. Alguns são, e muito. Apenas é preciso que isto fique claro. Tiveram um filho. Assim que ele nasceu, a matriarca “adotou” duas meninas, crianças, transformando-as em empregadas domésticas. A matriarca pensou no longo prazo. Queria alguém que servisse a seu filho a vida toda. Assim viveram as duas meninas, depois duas mulheres. Servindo a matriarca, o patrão e o filho único. O patrão morreu em 1989 de câncer. O filho único morreu de pneumonia em 1990. Uma das meninas já mulher morreu em 1998. Sobraram a matriarca e a outra menina já senhora. Uma era a única companheira que sobrou para a outra. A velha matriarca ficou um certo tempo morrendo. Não queria morrer de jeito nenhum. Morreu. E deixou tudo para a menina agora já senhora. A velha era rica e foi gananciosa até o fim. Gananciosa o suficiente para cair num golpe de pirâmide já aos 90 anos. A agora ex-empregada torrou tudo em um ano. Em menos até. Gastava com ódio. Como se quisesse se livrar daquilo logo. Encontrou sua tranquilidade quando o dinheiro acabou. Foi morar numa casa simples com um homem que conheceu neste período e começou a fazer bolo para vender. Eu a visitei quando uma outra tia minha faleceu. Ela foi ao enterro. Não chorou. Em certos momentos até riu, mas discretamente. Com respeito. Eu fui à sua casa, que ficava perto do cemitério, para usar o banheiro. Ela me ofereceu uma Coca-Cola quente e um bolo de cenoura mofado. Eu aceitei. Nossos olhares se encontraram enquanto eu pegava o bolo. O rancor estava lá. O rancor contra um Oliveira. Está marcado em meu nome. A opressão, a covardia.

Quando nasceu meu filho, cheguei à conclusão de que era hora de acabar com a saga dos Oliveira na terra. Não transmitir para o meu filho o sobrenome marcado pela opressão, o nome de uma família que em nome desta praticou crimes e barbaridades. Meu filho se tornou apenas Domingos. O D. abreviado do meu nome se tornou completo nele.

Um, dois, treis, cuatru, cincu, seis, seti, oitu, novi, deis.

O cigarro e o chocolate vêm ocupando o papel de válvula de escape no momento. Cinco quilinhos já ganhei com esta brincadeira. Na infância era o futebol. Até hoje sei os campeões brasileiros de Bahia em 59 até Palmeiras em 22. Foi o álcool na juventude. E foi muito álcool. E uma incapacidade de se divertir sem beber. Foi a literatura em parte da minha vida adulta madura. Foi a literatura que me deu forças para recomeçar num momento em que não tinha muitas forças para nada. Força que não encontrei nas pessoas que me cercavam. Recomeçar é difícil e libertário. Foi apenas quando recomecei que sinto que tomei conta da minha vida. Que cortei o cordão umbilical. Na bagunça encontrei um pouco mais de paz. Mas o recomeço parece que não acaba. E é repleto de fracassos e de tentações. Mas é o que há muitas vezes. A opção que sobra. Conheço muita gente que deveria recomeçar. Dá vontade de gritar “Recomece, porra”. Mas eu tô longe de ser o parâmetro de como se deve viver a vida. É quanto mais você tem, mais difícil é recomeçar. Cada posse é uma prisão. Cada relacionamento também pode ser uma espécie de prisão. Mas o contrário desta prisão não é a liberdade. É o vazio. Não há liberdade individual. A liberdade é uma conquista coletiva. Enquanto houver uma pessoa sendo oprimida, não existe a liberdade. Só existe o vazio.

Ter um filho mudou a visão que tenho sobre mim e minha relação com o mundo. Sinto que sou realmente importante para alguém. Importante como nunca fui. E isto é muito ruim, pois coloca uma pressão que não quero que meu filho tenha. Em algum momento, não serei mais tão importante para meu filho como ele é para mim, e tudo bem. Assim é a vida, assim que deve ser e eu devo saber lidar com isto. Minha mãe não soube. O recomeço é meu grande orgulho e sinto que será meu grande legado para ele. Até porque ele é também fruto deste recomeço.

Um, dois, treis, cuatru, cincu, seis, seti, oitu, novi, deis

Você chegou a existir? Quantas pessoas sua existência oprimiu? Quem pega a garrafa de cerveja vazia que você bebeu? Quem come os restos da comida que você deixou no prato? Quantas pessoas sua última viagem alimentaria? O que foi feito com o dinheiro do seu celular roubado? Onde foram parar os mendigos que estavam lá na frente ontem? Por que eles não voltaram? Quantos escravos me vestem? Quantos centavos recebeu a pessoa que apertou o último parafuso do meu celular? Eu e minha tia somos tão diferentes assim? Meu filho será diferente dela? Ele sentirá culpa? Somos todos culpados. A inocência é uma utopia tão grande quanto a liberdade. É importante nas sociedades modernas que as utopias sejam ridicularizadas. Ou que virem peças publicitárias. Quantas pessoas serão mortas para que eu me sinta seguro? Quanto medo você sente? O que você está disposto a aceitar para não ter mais medo? O que está disposto a perder?

“Papa”. “Pato”. “Sapato”. “Água”. “Casa”. “Vovó”. São as palavras que meu filho já sabe falar. Ele também imita animais. Leão, tigre, dinossauro e cachorro têm o mesmo barulho. O gato faz auau. Macaco faz nhã. Toda vez que uma palavra ou um gesto aparecem, a esperança renasce. O Recomeço. Tudo parece valer a pena. Apesar de tudo. Apesar de tudo. Apesar de tudo. Apesar de tudo. Apesar de tudo. Apesar de tudo. Apesar de tudo. Apesar de tudo. Apesar de tudo. Apesar de tudo. Apesar de tudo. Apesar de tudo. Apesar de tudo.

Estou cansado. Muito cansado. Tô exausto. Apesar disto, tenho em mim todos os sonhos do mundo.


domingo, 16 de julho de 2023

"Super" Xuxa e o Baixo Astral

 


Tenho às vezes a impressão de que algumas notícias aparentemente inocentes e irrelevantes são mais importantes e relevantes do que notícias aparentemente importantes e relevantes. Reforma Tributária, inelegibilidade do genocida, gado agredindo Xandão. Mas a notícia que mais me chamou a atenção foi a briga de Xuxa e Marlene Matos.

Possivelmente não há pessoa mais improvável na história da mídia brasileira. Não há história de sucesso mais improvável que a dela. Mulher num país machista. Negra num país racista. Nordestina num país em que o Sul-Sudeste trata com menosprezo a região Nordeste. Homossexual num país homofóbico. Obesa num país gordofóbico. Marlene é o tipo de pessoa que o Brasil oprime. É o perfil de pessoa que o Brasil silencia. Acho um mistério como uma pessoa como ela conseguiu triunfar num país tão preconceituoso como o Brasil e num ambiente em que estes preconceitos são tão aflorados quanto a televisão brasileira dos anos 1980.

Com exceção ao fato de ser mulher, Xuxa é todo o oposto de Marlene. A branca. Sulista. Heterossexual ex-namorada dos dois atletas mais importantes da história do país. Símbolo sexual. O choque entre Marlene e Xuxa é mais do que um choque entre duas personalidades. É o choque entre dois mundos.

Eu tenho pouco interesse em geral por biografias. Não sei muita coisa fora o já dito sobre Marlene. Procurei algo sobre a vida de Marlene quando a ideia deste texto surgiu e achei pouca coisa de muito interessante. O mais relevante é que ela entrou na Globo como datilógrafa. Deve ter ralado MUITO para chegar à diretora de um programa de televisão. Sei bastante sobre Xuxa. Sei o nome da sua filha, dos seus namorados e conheço um monte de música que ela cantou. Xuxa nunca foi boa atriz, nem boa cantora. Seus filmes foram sucesso de bilheteria e seus discos são recordes de venda até hoje. Xuxa nunca precisou ser tão boa, sua principal qualidade foi ter “carisma”. E o “carisma” é, em geral, algo muito restrito a um grupo de pessoas no Brasil. Ninguém nunca se interessou muito por Marlene. Todo mundo sempre se interessou por Xuxa.

Xuxa passou boa parte da sua vida sendo debiloide. Aparentemente está mudando. Um privilégio que pessoas brancas têm é de ter mais tempo para aprender. Pessoas negras não têm tanta sorte. Em geral, elas não podem errar.

Marlene não podia errar quando apostou todas as suas fichas na jovem Xuxa nos anos 1980. Entrou de cabeça, era a sua chance. A única chance. O que ela fez exatamente? Não sei. Ninguém parece muito interessado em saber e Marlene não parece estar a fim de contar. Xuxa está lançando um documentário para contar sua versão sobre a história. Parece que vai fazer sucesso.

O encontro de Xuxa e Marlene Mattos foi transmitido pelo “Fantástico”. O parto de Xuxa também. Marlene chocou Xuxa ao dizer que “não mudaria nada do que fez”. Ainda não sabemos ao certo o que Marlene fez. E provavelmente não veremos sua versão dos fatos. O Brasil nunca se interessou muito pela versão das Marlenes, afinal. Mas faz todo sentido que ela não queira mudar nada do que fez. Marlene é mulher num país que há 5 anos elegeu como presidente uma pessoa que dizia que ter filhas mulheres era sinal de fraquejada. Marlene é negra num país que há 5 anos elegeu como presidente uma pessoa que ria ao dizer que pessoas negras deveriam ser pesadas em arrobas. Marlene é maranhense num país que há 5 anos elegeu como presidente uma pessoa que dizia que a melhor coisa que existia no Maranhão era um presídio superlotado onde ocorrera naquela semana uma chacina. Marlene é homossexual num país que há 5 anos elegeu como presidente uma pessoa que defendia que crianças deveriam ser agredidas pelos pais caso demonstrassem inclinações homoafetivas. Marlene é a pessoa sem boa aparência num país que há 5 anos elegeu como presidente uma pessoa que disse que não estupraria uma então colega deputada porque ela era feia e não merecia. Marlene não tem que mudar nada. É todo o resto que tem que mudar. Xuxa mudou bastante. Inclusive a ponto de trabalhar aberta e corajosamente contra a reeleição deste presidente no ano passado. Mas não mudou a ponto de entender totalmente seus privilégios e de se colocar no lugar de Marlene. 

Marlene disse a Xuxa em seu encontro que “o mundo não é feito de flores”. Não, definitivamente não é. O documentário provavelmente transformará Marlene, a grande responsável pelo sucesso de Xuxa, em vilã. Marlene não parece muito preocupada com isto. Ela já está acostumada. O Brasil já está acostumado. A barbárie se converteu em costume. E é difícil abandonar mais de 500 anos de costumes.


terça-feira, 11 de abril de 2023

Angústia

 


Este blog funciona para mim como uma espécie de terapia. Clarice Lispector (e juro que foi ela mesmo quem disse) certa vez disse que palavras devem ser ditas ou escritas, senão elas te devoram. Os últimos anos foram muito angustiantes para mim e este blog me ajudou muito. A nova etapa da angústia e distopia brasileira parece ser a onda de ataques a escolas. Não há nada que indique que isto não vá virar uma epidemia, principalmente porque o país escolheu tratar este problema da pior forma possível, que é considerar estes ataques resultado de pura e simples maldade individual. Ela está lá, sem dúvida. Mas há algo mais acontecendo.

Torcida organizada. Igreja evangélica. Bolsonarismo. Todos estão em busca de uma noção de pertencimento. Um grupo do qual você faça parte e sinta que há algo acontecendo. Pode ser torcer para um time. Pode ser rezar para um suposto senhor que mora no céu e vê tudo que você faz. Pode ser se vestir de verde-e-amarelo e sair pelas ruas berrando todo tipo de barbaridade. A verdade é que um grupo de jovens encontrou nesta loucura nas escolas um grupo de pertencimento. Eles estão em redes sociais sendo incentivados a praticar estes atos absurdos e enxergam na realização dos mesmos uma chance de fazer algo que dê algum sentido a uma vida insignificante. Encontram na mais pura maldade uma voz. Palavras devem ser ditas ou escritas, senão elas te devoram. Ninguém quer ouvi-los. Ninguém quer lê-los. Eles estão sendo devorados. E resolveram levar outros juntos.

O Brasil se tornou uma cópia tosca dos EUA. A impressão que tenho é que tudo de mais tosco que existe lá está vindo para cá. Mais do que isto, somos incapazes de olhar os exemplos de lá e entender como agir por aqui. Todo mundo sabia que estes lunáticos bolsonaristas invadiriam o Congresso em algum momento. Nada foi feito. Agora é a hora de importar o que há de pior por lá, estes massacres em escolas. Duas lições de lá: Pena de morte não adianta. O Texas, estado com maior número de massacres nesta década, tem pena de morte. Não apenas isto, a maior parte das pessoas que praticam estes ataques se suicidam ou tentam se suicidar após fazê-los. Eles enxergam a morte como uma libertação. Os massacres são um último grito, algo para tornar a própria morte algo grandioso. Algo do tipo “morri, mas trouxe outros juntos”. Não li muitos detalhes sobre os ataques recentes em escolas brasileiras. Para um pai de um filho de um ano é uma tortura ver isto acontecendo. Mas acho bem provável que o suicídio estivesse nos planos dos que praticaram os ataques, talvez eles tenham sido capturados antes. Ameaçar de matar pessoas que tocaram o foda-se a tal ponto para a vida não é um bom plano. A segunda lição: armar a população (professores neste caso) não vai dar certo. Numa sociedade doente como a nossa, deixar uma pessoa armada numa sala de aula é pedir para mais merdas acontecerem.

Trocentas são as causas deste tipo de tragédia. É como a queda de um avião. Óbvio que há o componente maldade. Mas há também o componente exclusão. O componente silêncio. O componente competição, que cria uma sociedade de perdedores. Há principalmente o componente ódio, tão estimulado pelo grupo político que nos governou entre 2018 e 2022. E teremos que achar um jeito de lidar com isto. Normalizamos a barbárie diariamente. Com este tipo de barbárie ainda não estamos normalizados. Espero que não copiemos também isto dos EUA, mas acredito que copiaremos. A pandemia tirou a minha capacidade de achar que podemos resolver as coisas coletivamente. É cada um por si. Até a hora em que a tragédia bater na porta de casa. Seja tomando o tiro. Seja puxando o gatilho.


sexta-feira, 10 de março de 2023

A Educação no governo petista

 


Um fenômeno tipicamente brasileiro é o voto de pessoas instruídas na extrema-direita. O Brasil é um dos únicos lugares do mundo em que a probabilidade de uma pessoa votar em candidatos fascistas aumenta de acordo com o seu grau de escolaridade. Digo um dos únicos porque a mesma coisa aconteceu na última eleição presidencial chilena. Talvez isto seja um fenômeno latino-americano, mas temos que esperar.

Mais do que um instrumento de inclusão, a educação sempre foi vista no Brasil como um meio de diferenciação. Aquele que se instrui se acha melhor do que o que não teve instrução, e a sociedade faz tudo para confirmar este sentimento. Prisão especial para quem tem ensino superior, liberação do serviço militar, entre outras coisas. Mais do que tudo, uma parte significativa das pessoas que busca o ensino superior procura esta diferenciação.

A formidável inclusão de pessoas em cursos superiores nos governos Lula e Dilma não foi completada por formação política. Uma boa parte das pessoas que alcançou cursos superiores neste período, principalmente aqueles que entraram em universidades privadas, não enxerga esta conquista como fruto de uma luta política, mas sim como fruto de uma conquista pessoal. Algo do tipo “eu me matei de trabalhar, paguei o curso, o mérito é todo meu”. Para estas pessoas, o diploma só faz algum sentido se vier seguido por aumento salarial e emprego melhor. Como em MUITAS situações isto não veio, o novo diplomado se sentiu frustrado, encontrando no fascismo a válvula de escape para esta frustração.

Há também, claro, a rejeição daqueles que já frequentavam universidades e que perderam sua exclusividade. Pessoas que odeiam as cotas sociais. Nada frustra mais pessoas acostumadas com a exclusividade do que perdê-la. Vejamos o exemplo dos aeroportos, o rancor que a nossa elite teve em ter que dividir o avião com pessoas que ela acha que deveriam pegar ônibus. São pessoas que estão amando este novo mundo em que um moleque de bicicleta faz as suas compras no mercado por 10 reais, por exemplo. Pessoas que acham que vale a pena votar num maníaco psicopata porque ele vai privatizar a Eletrobrás. Pessoas ruins que de certa forma usam a educação para chamar a sua crueldade de racionalidade.

Poucas coisas sofrem mais com discurso vazio do que a educação. Às vezes mesmo pessoas claramente bem intencionadas, como Tábata Amaral, se perdem ao achar que o simples investimento em educação basta, ou que acreditam que a função da educação seja a formação de lideranças. Uma visão individualista.

 Mais do que investir em educação, é preciso mudar o conceito de educação. Por anos, inclusive durante os governos petistas, a educação brasileira seguiu a lógica de que sua função era simplesmente formar mão-de-obra qualificada para o mercado. As últimas décadas foram marcadas pela desvalorização das ciências humanas. Não à toa o programa Ciências sem Fronteiras não contemplou ciências humanas. O Brasil não se interessou em enviar filósofos ou sociólogos para estudarem fora, apenas engenheiros. Educação sem formação política e sem formação para a cidadania não forma uma sociedade melhor. Pelo contrário. O Brasil que gerou Bolsonaro é a prova disso. Dilma Rousseff era inclusive contrária à inclusão de filosofia e sociologia na grade curricular das escolas. Foi impedida de realizar estas retiradas pelo PT, cabendo a Temer realizar a tarefa.

Ainda não ficou totalmente claro qual o caminho que o novo governo petista seguirá na área educacional, se o PT entende os erros que cometeu nesta área. Erros estes, para deixar claro, que são menores do que os enormes acertos. Por enquanto, a área está sob comando do PT-CE, governo mais bem-sucedido na área educacional nas últimas décadas e onde a experiência fascista dos últimos cinco anos não vingou. Uma esperança.

A experiência de destruição do tecido social vivida com a Lava-Jato e com Bolsonaro deveria nos levar a uma forte reflexão e reconstrução de toda a sociedade. Um processo semelhante à desnazificação alemã. E este processo pela educação. Mas não pela educação que tínhamos e que de certa forma estimulou o fascismo. Um novo tipo de educação, que forme cidadãos e que pense na sociedade como um todo.