Uma chave para tentar entender o
funcionamento da futura gestão federal de Bolsonaro talvez esteja na análise da
gestão Doria em SP. Deixando bem claro que, obviamente, há diferenças entre os
dois. Considero Bolsonaro uma figura mais ideologicamente formada do que Doria.
Enquanto o futuro presidente realmente acredita no que diz, o futuro governador
me parece ser do tipo que se adapta à vontade refletida em pesquisas. Ele está
lá para dizer o que a maioria quer ouvir. E, obviamente, Doria nunca se disse
abertamente machista, racista e homofóbico, nunca defendeu a tortura, embora
esteja estimulando o lado psicopata da população ao propor que policial atire
para matar.
As quatro principais
características da gestão Doria em SP foram manipulação dos dados, controle da
informação da mídia, uso excessivo de redes sociais e estímulo ao antipetismo.
Nunca um gestor mentiu tanto e de forma tão consciente. A principal sacada de
Doria foi perceber que as pessoas se informam mal e não perdem tempo para saber
se a informação que lhes foi passada era ou não verdadeira. E mais, ele
percebeu que, caso diga uma mentira na segunda, ela será descoberta apenas na
terça ou na quarta, dias em que o ex-prefeito já havia criado um novo assunto,
deixando a revelação da mentira em segundo plano. Há exemplos claros da forma
como Doria usou a falta de memória e de interesse da população pela questão
pública em seu interesse. Logo no começo de seu governo, Doria inaugurou um
banheiro público no centro de SP e fez uma basta festa para isto. Criou até um
nome para um programa de instalação de banheiros públicos em SP, com um nome do
tipo “Tiramos você do aperto”. Após a festa, nenhum outro banheiro foi
instalado e depois de alguns meses o único banheiro que tinha também foi
desativado. Um outro caso claro foi o dos chamados “muros verdes” nas regiões
em que grafites haviam sido apagados. Após a repercussão ruim da destruição dos
grafites, Doria apareceu com um super projeto de criar estes muros verdes onde
antes havia arte, que seriam segundo ele os maiores muros verdes do mundo.
Viralizou entre seus seguidores. Um ano e meio depois, ninguém mais lembra
deste projeto. Não importa, o ganho já havia acontecido.
Uma boa publicidade suplanta
qualquer dado. O corujão da saúde foi um sucesso pela forma como foi divulgado,
e não pelos dados. Ninguém quer saber muito de dados, afinal, e esta talvez
tenha sido a grande sacada de Doria na Prefeitura. As pessoas não têm o menor
interesse em se informar de verdade, o que torna o ambiente propício para a
manipulação. Doria falsificou até a própria história na vida política. Sua
fortuna é basicamente fruto de herança, seu pai era o maior publicitário do
país. Mas Doria convenceu a população de que conseguiu sua riqueza trabalhando.
Quando seu pai voltou do exílio e não podia ser registrado como trabalhador,
seus amigos “empregaram” seu filho como forma de contratar na realidade o pai.
Doria transformou isto em prova de que havia começado a trabalhar na
adolescência. Sua vida profissional é um grande fracasso. Sua passagem na
Embratur foi uma vergonha, seus programas de TV não chegavam a um ponto de
audiência. Suas edições apresentando O Aprendiz foram as mais mal sucedidas.
Conseguiu espaço no PSDB graças a uma empresa de lobby que aproximava empresários
de políticos e ganhou a vaga para disputar a prefeitura de SP comprando votos
nas prévias do partido e pagando a dívida que Geraldo Alckmin havia deixado em
sua campanha para governador em 2014. Na Prefeitura, repetiu na gestão pública
sua vida de fracassos na esfera privada. Não conseguiu privatizar nada que
havia prometido, não resolveu as filas na saúde, não “resolveu” a cracolândia,
nada.
Caso a simples propaganda não
funcione para fazer a população acreditar naquilo que não foi feito ou não
existe, Doria parte para o último subterfúgio, culpar o PT. Foi assim quando o
seu “brilhante” plano de distribuir ração para alunos de escolas públicas
naufragou. A culpa não era da tosquice da ideia, mas da esquerda que não o
deixou vingar. A mesma coisa aconteceu na fracassada ação da cracolândia, que
Doria disse que havia acabado no próprio dia da ação. Doria é totalmente
incapaz de executar alguma ação. Não sabe, fruto de pura incompetência e
afobação. Mas sabe fazer propaganda do que não fez como ninguém. Na sua campanha
eleitoral, chamou até Paulo Skaf de comunista.
Doria fez sua gestão toda
contrariando a opinião de especialistas. Percebeu que a população vê
especialistas como “chatos que não conhecem a vida real”. A incapacidade e
preguiça de procurar e analisar dados criou na população média a raiva a quem
obtém e divulga estes dados. Logo nos primeiros meses do mandato, Doria disse
que não fazia seu governo para istas, no que incluiu ativistas, especialistas e
petistas. É a mesma coisa que Bolsonaro já anda dizendo, aliás.
Ainda está difícil imaginar o
tamanho dos estragos que Bolsonaro fará em sua gestão. Embora completamente
tosco e ignorante, já ficou claro que o presidente eleito não é burro. A forma
como neutralizou Moro e trouxe para si a popularidade do “juiz super homem”
mostra que ele tem uma capacidade grande de analisar o cenário político. Com
certeza conseguirá fazer “mais” do que Doria, o que é ruim pela sua visão de
mundo e também não é muito difícil, pois qualquer pessoa consegue fazer mais do
que Doria. É aí que mora o perigo. O presidente eleito tem realmente um plano
de poder, que já está incorporado aos interesses de igrejas evangélicas e das
camadas mais reacionários do Exército e do Poder Judiciário. As duas
instituições que poderiam controlar as ânsias autoritárias do presidente são
parceiras dele na visão de mundo. As táticas utilizadas para distração e
propagação de mentiras, porém, serão as mesmas de Doria. E são parte
fundamental no avanço do projeto de poder. Afinal, como convencer trabalhadores
que o fim do Ministério do Trabalho é algo bom? Gravando um vídeo falando mal
do PT e falando bem da família. Vamos rezar.
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