segunda-feira, 12 de novembro de 2018

Sobre Uber, Whatsapp e Piscinas



Durante muito tempo trabalhei numa editora de grande porte e fui obrigado a ir para Brasília profissionalmente alguma vezes. Umas sete ou oito, acho, entre 2010 e 2012. A Stora Enso, empresa finlandesa de papel, era (ou ainda é, não sei) dona da única fábrica no Brasil que possui um tipo específico de papel e havia entrado com um processo de acusação de dumping basicamente contra todas as fábricas estrangeiras que vendiam este papel ao Brasil, com exceção das que ficavam na França e na Itália. Eu e mais um grupinho de engravatados íamos para Brasília para fazer lobby contra este pedido da Stora Enso. Encontrávamo-nos um senador da região Norte, que foi ministro em um monte de governos, que era o contato direto entre o lobby das editoras e o governo central. Nas duas últimas vezes que fomos encontra-lo, o tal senador não apareceu. Mau sinal. A Stora Enso ganhou o processo e foi imposta uma sobre taxa de importação ao papel vindo de todos os países dos quais importávamos, a exceção de França e Itália. A mídia impressa e seus parceiros começaram uma verdadeira guerra contra o senador da região Norte, que passou a ter seus escândalos não mais acobertados. A sangria, no caso dele, não foi mais estancada. A Stora Enso era dona da única fábrica deste tipo de papel na França e passou a vender de lá para o Brasil. O então presidente da Stora Enso no Brasil pediu as contas e passou a representar uma fábrica italiana aqui no Brasil. Lembro-me da sua reação uma vez em que alguém havia deixado implícito que ele já estava negociando com a fábrica italiana e por isso a havia deixado fora do pedido de antidumping. Ele ficou transtornado e ameaçou processar e agredir quem disse isto. Se tivéssemos filmado aquilo e colocado na TV, o cara ganharia um Emmy de melhor ator. Acho um desperdício alguém com um talento tão grande para a interpretação passar a vida vendendo papel. Mas bom, o que me fez lembrar isto não é a picaretagem do empresário do setor privado, nem a relação entre mídia e política. E sim o fato de que eu achava bizarro que em Brasília era necessário ter telefone para chamar táxi.
Eu não uso Uber. Já escrevi um texto sobre isto. Numa época eu era chato e tentava convencer as pessoas a fazer o mesmo. Percebi que era chato e não faço mais. O que me fez mudar a minha atitude foi exatamente o texto que escrevi. Não tenho a maior autoestima do mundo, mas acho que aquele texto está bem escrito e bem argumentado. Uma amiga minha no dia seguinte ao texto me veio dizer que havia gostado e que a partir dele havia decidido não mais usar Uber, pagar mais caro no táxi e foda-se. Aquilo fez muito bem para o meu ego, eu a acho inteligente. Dois dias depois, recebo uma nova mensagem dela. Ela havia sido assaltada por um taxista.
Embora não tenha o aplicativo, não me oponho a entrar num Uber quando outra pessoa o chama. Não quero ser chato. E gosto do mecanismo. Acho fascinante que eles saibam onde estamos e que vejamos o desenho do carrinho se movimentando. Também acho legal a forma como o carro nunca nos acha, mesmo com este desenho. Quase sempre rio quando vejo o carrinho passando reto. A minha grande objeção ao Uber hoje é que está cada vez mais difícil conseguir um táxi em SP sem o uso de aplicativos. Sou um cara à moda antiga, para mim o jeito correto de chamar um táxi é parar em algum ponto na rua, ver o táxi vindo, esticar a mão e pronto. Sinto que sou a única pessoa que está percebendo que está se tornando um parto conseguir táxi assim em SP. Se você não está, sei lá, na Avenida Paulista, não vai aparecer uma porra de um táxi pra você pegar. Nada.
Sempre fui ruim de tecnologia. Dentre as pessoas da minha bolha, sou quase sempre a última a ter as coisas. Em geral acho chato. No começo da faculdade, nos anos 2000, não tinha celular. Fui a última pessoa que eu conheço a trocar o celular analógico por um com chip. Era motivo de chacota no trabalho por isto. Certa vez, a caminho casa, fui assaltado e levaram meu celular. Já do outro lado da rua, o ladrão me perguntou quanto dinheiro eu tinha. Eu respondi dez reais. Ele me propôs que eu desse estes dez reais e recebesse meu celular de volta. Eu aceitei. Minha vida começou a mudar quando o meu antigo chefe me deu um smatphone que um outro diretor havia devolvido porque estava velho. Comecei a usar, mas ainda não havia instalado Whatsapp. Era divertido ver as pessoas reclamando porque eu havia mandado um SMS. Isto foi mais ou menos em 2013. Eu achava todo mundo meu zumbi. Achava até meio bizarro minha namorada à época ficar o dia todo no whatsapp. Ela me contava que diversas amigas haviam feito grupos e falavam sobre tudo neles. A minha vida voltou a mudar em 2015. Eu ia passar um tempo viajando e resolvi instalar o tal do whatsapp para que elas pudessem me encontrar mesmo eu estando longe. Virei zumbi. Estou até hoje vendo esta merda toda hora, mesmo tendo em mente que quase nada importante acontece por lá. É um novo tipo de comunicação, estamos cada vez mais distantes, recebendo cada vez mais informações que significam cada vez menos.
Mais ou menos na época em que ganhei o smatphone que mudou minha vida, tive outra decisão que impactaria minha existência. Decidi que era hora de realizar o sonho de toda pessoa de classe média e comprar um apartamento. Eu estava feliz no meu relacionamento, tinha 29 anos, tinha um emprego que me permitia fazer lobby engravatado em Brasília, havia chegado o momento de ter um teto, dois filhos e um cachorro. Meu primeiro passo foi procurar um amigo meu que é extremamente burro, mas muito bom quando o assunto é dinheiro. E quando eu digo que ele é extremamente burro, estou dizendo muito muito burro. Ele é incapaz de interpretar um texto, fez dez anos de Cultura Inglesa e não sabia conjugar o verbo to be, passou a vida tomando pastorzinho de mim no xadrez. Sério, eu passei uns dez anos fazendo a mesma jogada e o cérebro dele era incapaz de reconhecer aquilo. Mas quando o assunto é dinheiro, o cara vira um Einstein. É um verdadeiro fenômeno da natureza. Alguma coisa entra em ação no seu cérebro quando ele ouve a falar em dinheiro e tudo se transforma. Enquanto eu recebia as dicas, ele me disse que o seu sobrinho estava trabalhando como corretor de imóveis e marcou um encontro entre nós. Fomos numa padaria, ele me pagou um pão de queijo e começamos o papo. Ele queria me vender um imóvel na Vila Anastácio. Não lembro ao certo o porquê, mas eu conhecia aquela região em que o prédio seria construído. Não tem nada. A impressão que tenho é que é a única região do planeta que está intocada desde que a Terra surgiu. É outro conceito de nada. Segundo ele, o fato de lá não ter nada era um coisa boa, porque era um sinal de que algo iria ser feito por lá. Sim, o fato de não ter nada era uma qualidade. O preço do apartamento era algo do tipo R$ 400 mil. Um valor que eu, como engravatado que ia de vez em quando para Brasília fazer lobby a favor de uma mídia bandida, iria demorar tipo uns 30 anos para pagar. Ao ouvir isto, o sobrinho corretor riu e disse que todo mundo ficava assustado, mas que a maioria das pessoas conseguia pagar em 20 anos.
Vinte anos. Eu tinha 29 anos na época. Arredondei para 30. Terminaria de pagar aos 49. Arredondei para 50. Após a conversa com o sobrinho corretor, fui falar com o amigo burro gênio com dinheiro. Ele começou a me falar que valia a pena a compra e como, após terminar de pagar o imóvel, eu poderia usá-lo como entrada na compra de um outro imóvel. Na minha cabeça eu estava pensando, bom, se eu termino este aos 50, acabo o outro aos 70, é isto? Homem na minha família vive até, em média, uns 65 anos, então daqui pra frente minha vida vai se dedicar a isto? Pagar um imóvel? Eu tinha 29, arredondando 30. Então já acabou? Enquanto ele falava sobre o investimento que viria com o investimento e geraria mais investimento, comecei a me sentir pela primeira vez ao lado dele burro. Perguntei-me se ele não se sentia da mesma forma quando tomava um pastorzinho. Até que ponto, aliás, o fato de passar uma vida tomando pastorzinhos não o preparou para aquilo?
Mas bom, não desisti. Seguindo o conselho do meu amigo burro e gênio dos negócios, fui atrás de imóveis novos. Todos custariam ao menos 20 anos da minha vida. Mas todos deixaram claro que eu estaria tranquilo aos 50 anos. Uma coisa que me impressionou nesta época é que é impossível achar um apartamento simples nestes novos empreendimentos em SP. Quando digo simples, não me refiro a tamanho, porque eles são cada vez menores. Refiro-me ao fato de que eu queria simplesmente um apartamento para deixar minhas coisas e ficar lendo e ouvindo música. Só isto. Mas todos têm sauna, salão de jogos, quadra e piscina.
Piscina. Aí está a palavra que define a forma como classe média enxerga o que é sucesso na vida. Não há nada que dê mais status na vida do que desperdiçar dinheiro. “Veja, eu tenho tanto dinheiro que posso simplesmente jogá-lo pela janela”. Não há desperdício de dinheiro maior do que uma piscina. As pessoas que têm muito dinheiro têm tanto dinheiro que em algum momento da vida elas pensam que vale a pena abrir um buraco na terra e encher de água com cloro. E mais, elas têm tanto dinheiro que até contratam alguém só pra cuidar do buraco na terra cheio de água e cloro. Lembro-me que na escola eu tinha um colega rico e todo mundo sabia que ele era rico porque ele tinha uma piscina. Lembro-me que um dia ele marcou uma festa e estávamos todos animados porque seria na piscina. Pus uma sunga por baixo do short, passei protetor 50 na pele e fui animado. Chegando lá, vi que ninguém estava na piscina. Foi uma descoberta para mim perceber que a maior parte das pessoas que vão para piscinas nestas situações não entram na água. A festa era basicamente um monte de jovens brancos em torno da piscina conversando.
Fui a algumas outras festas em piscinas na vida e quase todas elas foram meio assim. Muito pouca gente entra na água. A piscina é apenas um cenário, quase o altar de um culto. Um buraco na terra cheio de água e cloro. O sonho da classe média é ser rica, afinal. O que estes condomínios novos fazem é permitir à classe média realizar o maior sonho que ela tem, desperdiçar dinheiro enchendo um buraco na terra com água e cloro. Como a maioria das pessoas não tem grana suficiente para isto, as pessoas de classe média se juntam numa comunidade de pessoas de classe média em que elas se unem para sustentar o buraco na terra cheio de água e cloro. Piscinas de condomínio estão quase sempre vazias. A maioria das pessoas que a frequentam não entram na água. Ficam do lado de fora tomando Sol, lendo, existindo. Coisas que poderiam fazer num gramado. Mas fazem na borda do buraco na terra cheio de água e cloro. Uma coisa que acho curiosa sobre pessoas que moram em condomínios com piscina é que ir à piscina significa algo. Tipo, o que você fez ontem? Resposta: fui na piscina. Então você não fez nada, certo?
Acabei não comprando o apartamento. Mas descobri coisas interessantes. Descobri que kitnet agora se chama Studio. Descobri também que vaga de garagem tem escritura. Lembro-me que achei isto bizarro quando fiquei sabendo. Sim, existe um documento dizendo que um pedaço de chão marcado com uma tinta amarela em que cabe um carro é seu. Descobri que você tem que declarar a vaga de garagem no Imposto de Renda. É que as pessoas acham isto normal.
 “A gente se habitua a tudo, até a não se habituar”. É uma das frases mais repetidas no meu livro favorito, A Montanha Mágica, de Thomas Mann. Não acho que possa julgar as pessoas que passam vinte anos pagando pelo seu apartamento com um buraco na terra cheio de água e cloro ou com sua escritura de vaga de garagem. Também não me julgo por ter passado tanto tempo fazendo lobby em favor dos interesses financeiros de uma mídia podre. Como mostra o exemplo da minha amiga assaltada no táxi, as coisas não são tão fáceis. A sociedade nos engole. Enquanto escrevia este texto que boa parte das pessoas não lerá até o fim (é o texto mais longo deste blog) olhei duas vezes para o Whatsapp. Nada importante aconteceu.

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