“A eleição de Jair Bolsonaro é
comparável à queda de um avião. Você não pode justifica-la apenas com uma razão”.
Li esta frase em algum lugar e não me lembro quem a escreveu. Peço desculpas
por não citar a fonte. O objetivo aqui é entender alguns motivos para a “queda
do avião”. Já aviso aqui que quem se dispuser a ler esta análise não encontrará
por aqui respostas clichês como “falta de autocrítica do PT”, “Ciro ter ido pra
Paris” ou “busca pelo novo”. Resumir a eleição de Bolsonaro ao antipetismo é
uma tentativa de, mais uma vez, reduzir o debate a esta verdadeira obsessão
positiva ou negativa em relação ao PT. Havia várias opções não petistas nesta
eleição, a única que era racista, machista e homofóbica era Bolsonaro. Ele
venceu porque de certa forma conseguiu “libertar” essas pessoas, que por anos
tiveram que esconder seus preconceitos e agora puseram livremente expor suas
escrotices. Também não acho que sua vitória tenha sido a busca por algo novo,
referindo-me exclusivamente à eleição presidencial. Bolsonaro é o que há de
mais velho e tosco na política, tendo sido um deputado irrelevante por 28 anos
e passado por diversos partidos corruptos. O objetivo aqui é fugir do clichê.
Algo como Bolsonaro não aparece
do nada. É fruto de diversas mudanças, algumas imperceptíveis, que acontecem em
nossa sociedade às vezes com o passar de muito tempo. A primeira destas
mudanças, que eu enxergo como ganhando força já a partir dos anos 1990, é o
crescimento da glamourização da violência. A partir dos anos 2000, ligar a TV à
tarde basicamente é ver gente se matando. O discurso destes programas é quase
sempre marcado por uma junção entre o incentivo à violência policial e o desrespeito
à ideia de direitos humanos, interrompidos por propagandas de todo tipo, desde
sistemas de proteção ao automóvel até pílulas que prometem a cura do câncer.
Apresentadores charlatões ganharam fama e dinheiro mantendo um telespectador
preso em frente à TV com medo, criando nele a percepção de que vivemos no mundo
cão. Este processo explica a tara por segurança pública nas eleições estaduais
deste ano. Doria ganhou em SP prometendo que, a partir do dia um do seu
governo, policiais só atirariam para matar. Também disse que pagaria os
melhores advogados para policiais que matassem bandidos. Witzel venceu no Rio
colocando em seu plano de governo que a polícia teria o direito de “abater”
qualquer pessoa suspeita, sem especificar suspeita de quê. No dia seguinte à
eleição, apareceu com um projeto de contratar snipers para matar suspeitos, mesmo
que estes não estejam oferecendo riscos à segurança pública no momento do “abate”.
O uso deste verbo é importante para mostrar a tentativa clara de desumanizar o
outro lado, de forma a ganhar apoio do cidadão de bem. Doria e Witzel propõe um
estado psicopata, cuja principal função é matar bandidos. O que deveria ser a
última opção do policial se torna a primeira, num processo que não leva em
conta nem a segurança da vida do policial. Este processo não se reduz a SP e a
RJ. Em SC, por exemplo, foi eleito um coronel da PM que parece com um xerife do
Velho Oeste dos desenhos do Pica-Pau.
O processo de glamourização da
violência sem dúvidas encontrou o seu símbolo máximo na figura de Capitão
Nascimento. O personagem de Tropa de Elite é um psicopata que caiu nos gostos
do público. É ele que está no subconsciente popular no momento em que Doria e
Witzel fazem propostas que em qualquer lugar decente e civilizado do mundo
seriam tratadas como apologia ao crime e que provavelmente seriam suficientes
para colocar os dois na cadeia. Nascimento é o cara que resolve problemas
matando, desrespeitando direitos humanos e a lei. Uma mistura de Bolsonaro com
Sérgio Moro.
Um segundo ponto que indico é a
espetacularização do tratamento midiático na Operação Lava Jato. A cobertura da
operação para o grande pública foi feita de forma novelesca, dividindo
claramente a história entre mocinhos e bandidos. Sérgio Moro descumpriu
diversas vezes a lei e agiu de forma política, sem que houvesse quase nenhum
tipo de crítica da grande mídia. Tudo valia para colocar “os bandidos na cadeia”.
A parte mais tosca deste processo é a forma como condenação virou sinônimo de
justiça e absolvição de impunidade. Toda vez que Gilmar Mendes mandava soltar
alguém o objetivo era simplesmente ridicularizá-lo, sem que ninguém se
preocupasse minimamente em entender os motivos que levaram o juiz a libertar o
réu. Expedientes moralmente questionáveis como o abuso de prisões preventivas e
de delações premiadas sem provas foram aplaudidas. Não tenho dúvidas de que as
delações premiadas da Lava Jato estão incentivando a população a aceitar a
forma como deputados bolsonaristas e o próprio presidente eleito estão
incitando crianças a filmarem professores na sala de aula. Governos
autoritários tendem a transformar a população civil em vigilantes. A mídia
especializada preferiu defender um combate à corrupção seletivo feito de forma
ilegal ao invés de defender as instituições que garantem o funcionamento da
democracia.
Um terceiro ponto é a degradação
do debate político e a transformação do político profissional em alvo de
chacota. Neste processo julgo como fundamental a ação do programa CQC, que
abordava políticos de forma agressiva e editava as matérias de forma a fazê-los
parecer o mais ridículo possível. O argumento é que somos nós que pagamos os
salários dos políticos, desta forma podemos trata-los mal. O que está por trás
desta “ideia” é que basicamente o patrão pode tratar o empregado como bosta. As
perguntas-ataques eram feita de forma a impedir qualquer chance de resposta do
político, de forma que o repórter sempre “lacrasse”. O que o CQC fazia era
basicamente o que o MBL passou a fazer, uma operação em que o político servia
de escada para o herói-repórter, que saia como herói do conflito. Numa situação
em que a mídia busca tratar políticos como idiotas, nada mais natural que se
destaque o que é mais verdadeiramente idiota, no caso Bolsonaro. Ele sabia e
sabe lidar bem em situações em que não tem tempo para falar nada porque não tem
nada para falar. Bastava xingar alguém e aparecer como “mito” para a parcela da
população que odeia tudo. Bolsonaro soube usar como ninguém o espaço dado por
programas de subcelebridades dispostos a qualquer polêmica em troca de algum
ponto de audiência.
O quarto ponto que eu destaco é
um apontado por Wilhelm Reich em Psicologia
de Massas do Fascismo que é a economicidade da vida. As pessoas passaram a
ter como únicas preocupações na vida o emprego e a renda. Tudo vale para ter
algum emprego e um salário. Usando a eleição americana como exemplo, o “cidadão
de bem” americano não se importa em saber que uma família imigrante vai ser
separada e destruída como uma expulsão do país desde que isto o ajude a arrumar
um emprego. Economistas em geral não se envergonharam ao se juntar com um
político com as características de Bolsonaro que, para conquistar ao mercado,
adotou ideias neoliberais. Os possíveis ataques a gays, movimentos sociais e
minorias em geral são coadjuvantes perto dos ganhos que eles podem obter com as
privatizações de estatais. Parte desta enorme decadência moral é fruto da forma
como a educação sempre foi vista no Brasil. A função da educação sempre foi
mais formar mão-de-obra do que formar cidadãos pensantes. Desta forma, o brasileiro
médio com diploma só acha que ele faz sentido se conseguir um emprego melhor e
mais dinheiro com ele. O brasileiro com diploma e desempregado acha que a
faculdade foi uma perda de tempo, uma vez que não cresceu absolutamente nada
como pessoa. O governo do PT, embora tenha trazido avanços gigantescos nesta
área, de certa forma incentivou esta ideia. O Ciência sem Fronteiras, por
exemplo, abarcava apenas matérias de ciências exatas. O processo de
desvalorização das ciências humanas ajuda a explicar a facilidade com que as
pessoas desvalorizam a vida humana e buscam explicações simplistas para
problemas complexos. O Brasil passa, a meu ver, por uma espécie meio tosca de Reforma Protestante, com o crescimento das Igrejas Evangélicas. Não há dúvida de que elas fazem sim um trabalho importante em dar um sentido à vida de muitas pessoas e em agir em regiões em que o estado está completamente ausente. É fato também, que elas têm um claro projeto de poder, especialmente a Igreja Universal. Não à toa, a TV Record já assumiu o papel de TV Oficial do novo regime. O que está versão tosca de reforma está trazendo de mais importante, porém, é a ideia de que o trabalho é o valor máximo, o único meio de se demonstrar caráter e importância social. Não à toa um dos xingamentos favoritos de todo bolsonete a seus adversários é "vagabundo".
Um quinto ponto que eu enxergo é
a forma como todas as enormes evoluções sociais que passamos nos anos 2000
foram caracterizadas por uma maioria como “politicamente correto” e como o
combate a este “politicamente correto” se tornou a prioridade, especialmente
entre homens, brancos, héteros e ricos / classe média. Numa sociedade com uma
quantidade enorme de problemas, uma parcela da população com muito espaço na
opinião pública transformou o combate a uma ideia que tem no nome a palavra “correto”
em prioridade. Deu certo. Tudo que tentou ou tenta combater desigualdades
passou a ser visto como coitadismo.
Outros motivos podem existir,
claro. Ainda estou, por exemplo, tentando pensar de forma mais clara numa
teoria da infelicidade e do ódio que atinge atualmente pessoas de uma certa
faixa etária, que não tiveram seus sonhos realizados na vida e que por isso
querem basicamente que tudo se foda. Outro motivo é a forma como as redes
sociais uniram pessoas idiotas, que anteriormente tinham suas opiniões absurdas
refutadas e que agora veem seus egos aumentados a cada curtida em posts com
preconceitos. O fato é que o avião caiu.
Os possíveis estragos são enormes. Cabe a quem enxerga isto tentar diminuí-los.
E isto exigirá uma participação política e social que não pode mais ficar
restrita apenas às eleições. Política, mais do que nunca, tem que ser feita no
dia-a-dia.
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