quinta-feira, 1 de novembro de 2018

A queda do avião




“A eleição de Jair Bolsonaro é comparável à queda de um avião. Você não pode justifica-la apenas com uma razão”. Li esta frase em algum lugar e não me lembro quem a escreveu. Peço desculpas por não citar a fonte. O objetivo aqui é entender alguns motivos para a “queda do avião”. Já aviso aqui que quem se dispuser a ler esta análise não encontrará por aqui respostas clichês como “falta de autocrítica do PT”, “Ciro ter ido pra Paris” ou “busca pelo novo”. Resumir a eleição de Bolsonaro ao antipetismo é uma tentativa de, mais uma vez, reduzir o debate a esta verdadeira obsessão positiva ou negativa em relação ao PT. Havia várias opções não petistas nesta eleição, a única que era racista, machista e homofóbica era Bolsonaro. Ele venceu porque de certa forma conseguiu “libertar” essas pessoas, que por anos tiveram que esconder seus preconceitos e agora puseram livremente expor suas escrotices. Também não acho que sua vitória tenha sido a busca por algo novo, referindo-me exclusivamente à eleição presidencial. Bolsonaro é o que há de mais velho e tosco na política, tendo sido um deputado irrelevante por 28 anos e passado por diversos partidos corruptos. O objetivo aqui é fugir do clichê.
Algo como Bolsonaro não aparece do nada. É fruto de diversas mudanças, algumas imperceptíveis, que acontecem em nossa sociedade às vezes com o passar de muito tempo. A primeira destas mudanças, que eu enxergo como ganhando força já a partir dos anos 1990, é o crescimento da glamourização da violência. A partir dos anos 2000, ligar a TV à tarde basicamente é ver gente se matando. O discurso destes programas é quase sempre marcado por uma junção entre o incentivo à violência policial e o desrespeito à ideia de direitos humanos, interrompidos por propagandas de todo tipo, desde sistemas de proteção ao automóvel até pílulas que prometem a cura do câncer. Apresentadores charlatões ganharam fama e dinheiro mantendo um telespectador preso em frente à TV com medo, criando nele a percepção de que vivemos no mundo cão. Este processo explica a tara por segurança pública nas eleições estaduais deste ano. Doria ganhou em SP prometendo que, a partir do dia um do seu governo, policiais só atirariam para matar. Também disse que pagaria os melhores advogados para policiais que matassem bandidos. Witzel venceu no Rio colocando em seu plano de governo que a polícia teria o direito de “abater” qualquer pessoa suspeita, sem especificar suspeita de quê. No dia seguinte à eleição, apareceu com um projeto de contratar snipers para matar suspeitos, mesmo que estes não estejam oferecendo riscos à segurança pública no momento do “abate”. O uso deste verbo é importante para mostrar a tentativa clara de desumanizar o outro lado, de forma a ganhar apoio do cidadão de bem. Doria e Witzel propõe um estado psicopata, cuja principal função é matar bandidos. O que deveria ser a última opção do policial se torna a primeira, num processo que não leva em conta nem a segurança da vida do policial. Este processo não se reduz a SP e a RJ. Em SC, por exemplo, foi eleito um coronel da PM que parece com um xerife do Velho Oeste dos desenhos do Pica-Pau.
O processo de glamourização da violência sem dúvidas encontrou o seu símbolo máximo na figura de Capitão Nascimento. O personagem de Tropa de Elite é um psicopata que caiu nos gostos do público. É ele que está no subconsciente popular no momento em que Doria e Witzel fazem propostas que em qualquer lugar decente e civilizado do mundo seriam tratadas como apologia ao crime e que provavelmente seriam suficientes para colocar os dois na cadeia. Nascimento é o cara que resolve problemas matando, desrespeitando direitos humanos e a lei. Uma mistura de Bolsonaro com Sérgio Moro.
Um segundo ponto que indico é a espetacularização do tratamento midiático na Operação Lava Jato. A cobertura da operação para o grande pública foi feita de forma novelesca, dividindo claramente a história entre mocinhos e bandidos. Sérgio Moro descumpriu diversas vezes a lei e agiu de forma política, sem que houvesse quase nenhum tipo de crítica da grande mídia. Tudo valia para colocar “os bandidos na cadeia”. A parte mais tosca deste processo é a forma como condenação virou sinônimo de justiça e absolvição de impunidade. Toda vez que Gilmar Mendes mandava soltar alguém o objetivo era simplesmente ridicularizá-lo, sem que ninguém se preocupasse minimamente em entender os motivos que levaram o juiz a libertar o réu. Expedientes moralmente questionáveis como o abuso de prisões preventivas e de delações premiadas sem provas foram aplaudidas. Não tenho dúvidas de que as delações premiadas da Lava Jato estão incentivando a população a aceitar a forma como deputados bolsonaristas e o próprio presidente eleito estão incitando crianças a filmarem professores na sala de aula. Governos autoritários tendem a transformar a população civil em vigilantes. A mídia especializada preferiu defender um combate à corrupção seletivo feito de forma ilegal ao invés de defender as instituições que garantem o funcionamento da democracia.
Um terceiro ponto é a degradação do debate político e a transformação do político profissional em alvo de chacota. Neste processo julgo como fundamental a ação do programa CQC, que abordava políticos de forma agressiva e editava as matérias de forma a fazê-los parecer o mais ridículo possível. O argumento é que somos nós que pagamos os salários dos políticos, desta forma podemos trata-los mal. O que está por trás desta “ideia” é que basicamente o patrão pode tratar o empregado como bosta. As perguntas-ataques eram feita de forma a impedir qualquer chance de resposta do político, de forma que o repórter sempre “lacrasse”. O que o CQC fazia era basicamente o que o MBL passou a fazer, uma operação em que o político servia de escada para o herói-repórter, que saia como herói do conflito. Numa situação em que a mídia busca tratar políticos como idiotas, nada mais natural que se destaque o que é mais verdadeiramente idiota, no caso Bolsonaro. Ele sabia e sabe lidar bem em situações em que não tem tempo para falar nada porque não tem nada para falar. Bastava xingar alguém e aparecer como “mito” para a parcela da população que odeia tudo. Bolsonaro soube usar como ninguém o espaço dado por programas de subcelebridades dispostos a qualquer polêmica em troca de algum ponto de audiência.
O quarto ponto que eu destaco é um apontado por Wilhelm Reich em Psicologia de Massas do Fascismo que é a economicidade da vida. As pessoas passaram a ter como únicas preocupações na vida o emprego e a renda. Tudo vale para ter algum emprego e um salário. Usando a eleição americana como exemplo, o “cidadão de bem” americano não se importa em saber que uma família imigrante vai ser separada e destruída como uma expulsão do país desde que isto o ajude a arrumar um emprego. Economistas em geral não se envergonharam ao se juntar com um político com as características de Bolsonaro que, para conquistar ao mercado, adotou ideias neoliberais. Os possíveis ataques a gays, movimentos sociais e minorias em geral são coadjuvantes perto dos ganhos que eles podem obter com as privatizações de estatais. Parte desta enorme decadência moral é fruto da forma como a educação sempre foi vista no Brasil. A função da educação sempre foi mais formar mão-de-obra do que formar cidadãos pensantes. Desta forma, o brasileiro médio com diploma só acha que ele faz sentido se conseguir um emprego melhor e mais dinheiro com ele. O brasileiro com diploma e desempregado acha que a faculdade foi uma perda de tempo, uma vez que não cresceu absolutamente nada como pessoa. O governo do PT, embora tenha trazido avanços gigantescos nesta área, de certa forma incentivou esta ideia. O Ciência sem Fronteiras, por exemplo, abarcava apenas matérias de ciências exatas. O processo de desvalorização das ciências humanas ajuda a explicar a facilidade com que as pessoas desvalorizam a vida humana e buscam explicações simplistas para problemas complexos. O Brasil passa, a meu ver, por uma espécie meio tosca de Reforma Protestante, com o crescimento das Igrejas Evangélicas. Não há dúvida de que elas fazem sim um trabalho importante em dar um sentido à vida de muitas pessoas e em agir em regiões em que o estado está completamente ausente. É fato também, que elas têm um claro projeto de poder, especialmente a Igreja Universal. Não à toa, a TV Record já assumiu o papel de TV Oficial do novo regime. O que está versão tosca de reforma está trazendo de mais importante, porém, é a ideia de que o trabalho é o valor máximo, o único meio de se demonstrar caráter e importância social. Não à toa um dos xingamentos favoritos de todo bolsonete a seus adversários é "vagabundo".
Um quinto ponto que eu enxergo é a forma como todas as enormes evoluções sociais que passamos nos anos 2000 foram caracterizadas por uma maioria como “politicamente correto” e como o combate a este “politicamente correto” se tornou a prioridade, especialmente entre homens, brancos, héteros e ricos / classe média. Numa sociedade com uma quantidade enorme de problemas, uma parcela da população com muito espaço na opinião pública transformou o combate a uma ideia que tem no nome a palavra “correto” em prioridade. Deu certo. Tudo que tentou ou tenta combater desigualdades passou a ser visto como coitadismo.
Outros motivos podem existir, claro. Ainda estou, por exemplo, tentando pensar de forma mais clara numa teoria da infelicidade e do ódio que atinge atualmente pessoas de uma certa faixa etária, que não tiveram seus sonhos realizados na vida e que por isso querem basicamente que tudo se foda. Outro motivo é a forma como as redes sociais uniram pessoas idiotas, que anteriormente tinham suas opiniões absurdas refutadas e que agora veem seus egos aumentados a cada curtida em posts com preconceitos.  O fato é que o avião caiu. Os possíveis estragos são enormes. Cabe a quem enxerga isto tentar diminuí-los. E isto exigirá uma participação política e social que não pode mais ficar restrita apenas às eleições. Política, mais do que nunca, tem que ser feita no dia-a-dia.

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