terça-feira, 30 de outubro de 2018

Lições da mais dura derrota



“Fracassei em tudo o que tentei na vida.
Tentei alfabetizar as crianças brasileiras, não consegui.
Tentei salvar os índios, não consegui.
Tentei fazer uma universidade séria e fracassei.
Tentei fazer o Brasil desenvolver-se autonomamente e fracassei.
Mas os fracassos são minhas vitórias.
Eu detestaria estar no lugar de quem me venceu.”

A definição acima de Darcy Ribeiro define bem o meu sentimento no dia seguinte à vitória de Jair Bolsonaro. A semana da eleição foi basicamente uma contagem de tempo para um salto no abismo. Já era certo que o país optaria por eleger aquele que considero a pior pessoa já eleita para qualquer cargo público em qualquer lugar do mundo desde o fim da Segunda Guerra. Pode ser desconhecimento, mas se alguém souber de algo semelhante a esta eleição de Bolsonaro no período pós-45, me avise. Bolsonaro é um deputado completamente insignificante, sem nenhum projeto minimamente importante realizado em três décadas de mandato. Conquistou fama graças a aparições polêmicas em programas de subcelebridades, dispostos simplesmente a criar polêmicas em troca de um ou dois pontos de audiência. Obteve fama única e exclusivamente graças a ofensas e agressões. Estimulou preconceitos, revisionismos históricos e enalteceu torturadores. Muito se falará sobre quem é o culpado por isto. A culpa é simplesmente de quem votou nele. De mais ninguém. Não foi falta de informação que levou a maioria da população a eleger uma pessoa com este histórico. Todo mundo sabia em quem estava votando.
A grande lição que tiro desta eleição é como o excesso de privilégios em que fui criado fez com que eu criasse uma espécie de bolha interna que me tornasse incapaz de enxergar a verdadeira natureza da sociedade brasileira. Passei boa parte da eleição acreditando que qualquer um que fosse para o segundo turno contra Bolsonaro venceria. Imaginei que um candidato racista, machista e homofóbico jamais teria alguma condição de receber mais da metade dos votos e que a população seria capaz de reconhecer que preconceitos como este e tortura são coisas piores do que corrupção. Eu estava tremendamente enganado. Bolsonaro ganhou exatamente porque é assim e conseguiu de certa forma “libertar” os preconceitos que a maioria da população possui e deixou de se envergonhar. O Brasil é o país que é, desigual em todos os sentidos, porque há uma forte conivência da maior parte da sociedade. Somos uma sociedade formada por seres extremamente individualistas, que são basicamente incapazes de sentir qualquer tipo de verdadeira empatia com sofrimentos e preocupações alheias.
Desfiz amizades que não serão refeitas após as eleições. Acredito que não há espaço para pessoas que se dispuseram a ser cúmplices da ascensão de uma pessoa como Bolsonaro na minha vida. Vi pessoas que eu amava relativizando tortura e fazendo piadas preconceituosas. Decepcionei-me com parentes. Mas também vi muita gente com quem tenho enormes divergências políticas deixando diferenças de lado para lutar pela democracia. Pessoas que, com motivos, detestam o PT, mas que se puseram na luta pela democracia e pelos direitos humanos. Vi o quanto estas pessoas eram criticadas por pessoas próximas a elas, sem que desistissem. Dizem que às vezes são nos piores momentos que atos heroicos são capazes de aparecer. Se perdi amigos e sofri ao ver familiares escancararem seus preconceitos, pude também ver surgir em mim um sentimento de admiração por pessoas com as quais tinha apenas contato e pelas quais hoje tenho um grande respeito.
Supervalorizei o Brasil. Nossa história é basicamente composta de sangue e exploração. De escravidão e desigualdade. A nossa realidade é esta, o que vivemos entre 1994 e 2014 não passou de um breve sonho. Um breve sonho que melhorou a vida de muitas pessoas. Mas que incomodou outras. Bolsonaro e seus adoradores dizem sempre que queriam “tomar o Brasil de volta”. Conseguiram. Uma longa noite nos espera. Mas resistiremos. Ainda somos muitos. Já aviso, será difícil nos varrer. Em sua primeira entrevista, Bolsonaro já propôs um genocídio a movimentos sociais, do qual tratarei melhor no parágrafo seguinte e ameaçou a mídia livre com corte nas verbas públicas. Isto porque está “pegando leve”.
O momento exigirá reflexão e muita cooperação. Para começar a enfrentar isto, ajude. Converse. As primeiras vítimas de Bolsonaro, muito provavelmente, serão os movimentos sociais. Bolsonaro já deixou claro que os tratará como “terroristas”, numa clara tentativa de desumanizar as pessoas que fazem parte destes movimentos, garantindo assim o apoio da massa acéfala ao já presumível massacre. É o que todo regime autoritário faz. Por isso, a melhor resistência é fazer parte de algum. Minha indicação para quem mora em SP é o MTST. Moro no centro da cidade e vejo o trabalho maravilhoso que esta turma faz, ocupando prédios abandonados na maioria das vezes por algum playboy vagabundo, que tem o prédio como herança e não pode derrubá-lo, por ser tombado, e basicamente deixa o imóvel vazio e descuidado à espera que ele caia.
O mar da história é agitado. A minha geração ainda não havia passado por nenhuma grande privação ou teste histórico. A hora chegou.

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