terça-feira, 2 de outubro de 2018

Digressões sobre a Lava Jato, o fascismo, a barbárie e o hábito



A Lava Jato perdeu totalmente a vergonha de deixar claro qual seu candidato nesta eleição. Após anos de bajulação e de aprovação incondicional de boa parte da grande mídia e da opinião pública, a Operação não sente mais necessidade nenhuma de esconder seu caráter fascista. São anos de abusos e arbitrariedades que culminaram na situação tosca que vivemos atualmente. Apenas nos últimos três dias, vimos o juiz Marcelo Bretas, chefe da Operação no Rio, deixar implícito em suas redes sociais seu apoio ao candidato fascista. O mesmo ocorreu com Rosangela Moro, esposa do “sub-Deus” da Lava Jato, que postou em seu Instagram uma mensagem desrespeitosa às mulheres que participaram do protesto do #elenão. Uma semana antes, havia postado fotos de pessoas apoiando o impeachment com a frase “tudo aquilo não foi para nada”. Após dedicar o mês de setembro a ações cinematográficas contra políticos do PSDB do PR e de SP, com prisões desnecessárias, Moro decidiu, faltando seis dias para a eleição, que era hora de tornar públicas as delações realizadas por Antônio Palocci, delações que não haviam sido aprovadas pelo próprio Ministério Público por falta de provas, aliás.
Palocci está preso há dois anos. Pelo acordo de delação, terá sua pena reduzida em dois terços caso prove o que diz. Você sabe qual a pena de Palocci? Darei um tempo para pensar. Não sabe? Sim, a pena ainda não existe. Palocci está HÁ DOIS ANOS em prisão preventiva. A prática mais comum usada pela Operação Lava Jato é esta. O uso abusivo da prisão preventiva, de forma não prevista nos preceitos constitucionais, como instrumento de tortura psicológica a fim de obter as informações que julgue necessárias, com ou sem provas. A grande “contribuição” que a Operação Lava Jato deu a esta onda fascista foi sem dúvida esta. A forma como conseguiu convencer a maior parte da opinião pública que o desrespeito à lei e a noções básicas de direitos humanos é aceitável em busca de algo que considere um “bem maior”, no caso o combate à corrupção. Todo discurso bolsonarista tem isto como base. Matar pessoas vale a pena se elas forem cometer crimes, derrubar a democracia é válido para impedir que viremos uma Venezuela etc.
Uma onda fascista como a que vivemos não surge por acaso. A barbárie é fruto de anos de preparação. Para quem se interessa pelo tema, os meus dois livros favoritos sobre este assunto são Gostaríamos de informa-lo que amanhã seremos mortos com nossas famílias, de Philip Gourevitch, e Origens do Totalitarismo, de Hannah Arendt, o primeiro tratando do genocídio dos tutsis praticado pelos hutus em Ruanda no ano de 1994, e o segundo tratando sobre os séculos de perseguição aos judeus na Europa que culminaram com o Holocausto. Mostra Arendt que os séculos de perseguição aos judeus fizeram com que a sociedade em geral se acostumasse com a ideia de tirar direitos daquela parte da população, até o momento em que o único direito que ainda restava para ser tirado era a vida. Gourevitch parte desta mesma ideia para explicar a forma como o genocídio em Ruanda foi de certa forma quase normalizado pela população local. Tanto o Holocausto quanto o genocídio de Ruanda, argumenta brilhantemente os autores, foram praticados por pessoas “normais”, daquelas cuja única preocupação na vida é pagar as contas. A barbárie se torna um hábito.
A barbárie já é um hábito. Moro no centro de São Paulo. Basta descer na estação Sé do metrô e vir até a estação República, onde moro. Pessoas completamente abandonadas pelo poder público e pelo resto da sociedade de classe média, que vai tocando a vida se trancando em condomínios-presídios. Acostumamo-nos. A Prefeitura de SP apresentou um projeto para tirar a cracolândia da região da Luz e manda-la para Zona Norte. A justificativa é que isto irá valorizar a região. Construtoras já anunciam empreendimentos para a classe média naquela região. Estúdios de 1 dormitório, com áreas de lazer e metrô perto. Na borda da Sala São Paulo. A preocupação é com o lugar, não com as pessoas. Tirá-las de lá é o foco, se possível para um lugar onde elas não sejam vistas. Simplesmente nos acostumamos.
A principal atração que Bolsonaro pratica sobre seu eleitorado é a ideia de que ele vai matar bandido. E na classificação de bandido desta gente entra todo mundo que pode ser visto como diferente. Gays, feministas e petistas, principalmente. Gays devem apanhar na infância, feministas são pouco higiênicas (Rosangela Moro concorda) e petistas devem ser metralhados. Presidiários devem ser obrigados a trabalhar, numa versão moderna de escravidão. A tortura é um instrumento válido e deve ser aplicado na obtenção de informações importantes. Uma próxima etapa do que já faz Moro com sua tortura psicológica. Como um candidato destes está em primeiro? É simples, costume.
Ligando a TV ontem, pude assistir um debate sobre “como o governo Bolsonaro fará para criar empregos”. Tortura, homofobia, racismo, machismo. Tudo isto está em segundo plano para o objetivo supremo de “criar empregos”. A Bolsa sobre com Bolsonaro. Mudando de canal, cheguei num programa que mostrava uma operação policial bem sucedida, com bandidos mortos e policiais sendo premiados. Corte para uma propaganda política, em que João Doria Jr. diz que policial deve ter licença irrestrita para matar. Corte para outra propaganda, com Márcio França condecorando a policial que matou o bandido na frente da escola. Corte para outra propaganda, a policial que matou o bandido concorrendo a deputada federal dizendo que merece o voto do eleitor porque matou o bandido. Volta o jornal, dizendo que foram provavelmente policiais que mataram a vereadora Marielle Franco no RJ. A causa do crime é porque ela denunciava torturas e assassinatos cometidos por milícias policiais em favelas na cidade. Marielle. Negra, lésbica, mulher. Bolsonaro. Tortura, homofobia, racismo e machismo. Marielle é tudo que Bolsonaro persegue. 2018 é o ano em que Marielle foi assassinada e Bolsonaro pode ser alçado à presidência da República. Os assassinos de Marielle estão soltos. Enquanto debatemos empregos. Parece que as ações das empresas fabricantes de armas estão subindo, aliás. É um bom investimento, diz um analista econômico.
Simplesmente nos acostumamos. O que a candidatura que lidera a campanha presidencial é basicamente a formação de um Estado psicopata, que elimina aqueles que causam “problemas e mal-estar”. Basta um passo para que o outro seja dado. Estamos caminhando na barbárie faz muito tempo. Sérgio Moro é só uma etapa. Bolsonaro é a próxima. Já nos acostumamos a Moro.

Nenhum comentário:

Postar um comentário