sábado, 6 de outubro de 2018

Tropa de Elite e os indícios do fascismo



Antes de começar o texto em si, acho importante afirmar que não acho nunca que uma obra de arte seja de alguma forma responsável por algo. Acho que ela é sempre importante principalmente pela forma como consegue representar a sociedade. Acredito também que seja a arte a melhor forma de entender a história. Poucas coisas são melhores para entender a contracultura americana dos anos 60 do que ouvir Jefferson Airplane. Ou compreender a Revolução Russa a partir de Maiakovski. Nada é melhor para entender a culpa alemã do pós-guerra do que ler Dr. Fausto de Thomas Mann. Ou, nos últimos tempos, o funk ostentação como símbolo da era Lula. Jovens que enxergavam em bens de consumo o caminho para a felicidade e queriam ostentá-los. A ideia de que a felicidade e o valor estavam basicamente no consumo. Note que o objetivo aqui não é discutir qualidade. É discutir o papel fundamental que a arte tem de representar sociedades ou de funcionar como previsão de algo.
O fascismo já triunfou na sociedade brasileira. Ele não surgiu do nada de agora. É fruto de uma construção temporal. Fruto do hábito. O maior símbolo disto é a aceitação. Primeiro aceitamos que Bolsonaro teria 20% dos votos. Lembro-me da época em que eu dizia que achava um absurdo que um quinto do país votasse num fascista. Depois nos habituamos a achar que era normal ele ir para o segundo turno. Pois bem, ele pode ganhar no primeiro, coisa que não acho que vai acontecer, mas...
Em 2007 era lançado o filme Tropa de Elite. Foi possivelmente o maior sucesso do cinema nacional neste século. Posso estar errado, talvez Cidade de Deus ou aquelas farofadas da Globo Filmes tenham feito mais sucesso. Mas sinceramente não lembro de nenhum filme com mais repercussão do que Tropa de Elite. O herói do filme é Capitão Nascimento, um policial do Bope que procura alguém para substituí-lo. Uma pessoa com enormes problemas psicológicos, um pirado, ou um “cidadão de bem”. Nascimento considera-se numa missão nobre, combate bandidos. E no combate aos bandidos, vale tudo. O capitão tortura, agride e mata, tudo para deleite do público. Faz isto em nome do seu conceito de “bem”. O personagem principal do filme, a meu ver, na verdade é Mathias. Uma pessoa que tenta unir o estudo do direito à atividade policial. O filme mostra como Mathias vai abandonando a lei e se tornando cada vez mais como Nascimento até a cena final, em que o futuro capitão atira na cabeça do bandido, encontrado graças à prática da tortura, com a câmera na posição do bandido. O filme termina e o cinema composto por pessoas brancas de classe média em que eu assistia o filme delirou.
A grande sacada do diretor José Padilha neste filme foi, a meu ver, a ideia de ter um locutor que narrava o filme o tempo todo, impedindo assim que o espectador realizasse algum tipo de reflexão ou interpretação enquanto assistia ao filme. Não à toa Padilha repetiu este instrumento nas outras porcarias que fez dali pra frente. Em Narcos, da qual consegui assistir a um episódio inteiro, e em Mecanismo, no qual desisti na metade do primeiro episódio. A primeira função deste instrumento é, como já dito, impedir que o espectador tenha o apoio do silêncio para a reflexão e interpretação. As pessoas não têm tempo e nem saco para isto. Elas vão ao cinema hoje em dia, em geral, para comer pipoca e passar o tempo. A segunda é colocar o personagem principal numa situação quase divina. A voz que narra é a dele, que parece ser onisciente, onipresente e onipotente. Nascimento está em todo lugar ao mesmo tempo e é capaz de sabe quem merece a punição ou não. A lei é um detalhe. Há algo acima da lei que se pode chamar de, sei lá, “bem”, que justifica tudo. A tortura era aplaudida nas telas. Se em Tropa de Elite era o policial que era endeusado por desrespeitar a lei, em Mecanismo era o juiz. Entendeu a relação?
A grande sacada da campanha de Bolsonaro até agora é apresenta-lo da mesma forma como Padilha apresentava Nascimento. Não há nenhum espaço para reflexão e interpretação. Visões mentirosas e agressivas da sociedade são repetidas impedindo qualquer espaço para pensamento. Como os “maconheiros da PUC”, que são apresentados como hipócritas pela voz divina de nascimento, a “esquerda caviar” é o inimigo que tenta impedir Bolsonaro Nascimento de fazer o “bem” matando. Como “esquerda caviar” eles conseguem encaixar basicamente tudo que não os representa. Mulheres feministas, movimentos negros, gays. Todos são vistos como inimigos hipócritas.
Assim como Mathias, os eleitores de Bolsonaro abandonaram o conhecimento como a forma de encontro de soluções. Mathias larga Foucault e vai resolver no fuzil. Os eleitores de Bolsonaro quase gozam imaginando o corte que seu presidente fascista pretende fazer nos gastos com cultura. Ela não serve para nada e não resolve nada, pensam eles. A queima de livros não faria diferença em suas vidas, a maior forma de comunicação deste público é o Whatsapp, afinal.
Os comandantes da campanha Bolsonaro souberam ler seu público da mesma forma que Padilha. É um público incapaz de pensar, que precisa de alguém dizendo o que está acontecendo, se possível de forma simples, através de memes. Uma sociedade que glorifica a violência e quer a morte do que é diferente e incomoda. Que desvaloriza direitos humanos. Vejo uma câmera no papel do traficante morto na última cena de Tropa de Elite. Vejo Bolsonaro chegando com uma arma e matando a democracia, aquela que “não soube resolver nossos problemas”, mesmo que o período de 1994 a 2014 tenha sido o melhor da nossa história. A luz se apaga e o público aplaude. O filme só fez sucesso por causa do público. O problema é o público.

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