É muito fácil encontrar uma pessoa e
responsabilizá-la por todas as nossas mazelas. Jair Bolsonaro é a pior pessoa
do mundo, mas é fruto de uma sociedade doente, uma sociedade em que mais da
metade dos eleitores topou ser cúmplice de um projeto de governo lunático e
assassino. Mais do que isto, uma sociedade que fez tudo que pôde para permitir
que esta pessoa chegasse ao poder, prendendo num processo completamente fajuto
aquele que impediria este maníaco de chegar ao poder. Sim, a prisão de Lula
custou vidas. Bolsonaro é sem dúvida o maior responsável pelo fracasso
brasileiro na contenção da Covid. Fez o inferno para atrapalhar qualquer medida
que impedisse a propagação do vírus e salvasse vidas. Boicotou as medidas de distanciamento
social, incentivou aglomerações, atrasou o máximo que pôde o pagamento do auxílio
que permitiria aos autônomos fazer algum tipo quarentena por algum período com alguma
estabilidade financeira, caçoou dos doentes, atrapalhou a compra de vacinas,
espalhou notícias falsas sobre as mesmas, incentivou o uso de um remédio
ineficaz. Fez o diabo e não foi afastado. Em qualquer país minimamente decente,
a classe política e a sociedade teriam se unido para tirar este maníaco do
poder quando ficasse claro que a sua loucura significaria a morte de milhares
de pessoas. Mas o país que fez impeachment por causa de um Fiat Elba e que inventou
um crime chamado “pedalada fiscal” foi incapaz de realizar este impeachment.
Como dito, Bolsonaro é fruto de uma sociedade doente.
Isto dito, uma outra causa
importantíssima do nosso fracasso em salvar vidas foi a precariedade do
trabalho. Quase a metade da população ativa brasileira trabalha na informalidade
(40,6%). Temos um sistema de proteção social montado para proteger apenas os
trabalhadores formais. Previdência, seguro-desemprego e auxílio-doença, apenas
quem tem carteira assinada tem estes direitos. Estes 40,6% inicialmente tiveram
sua renda reduzida basicamente a zero no começo da pandemia e a um pouco mais
de metade de um salário mínimo após o auxílio emergencial que chegou atrasado.
R$ 600 ou R$ 1200 ajudaram, mas não dá para um pai ou para uma mãe de família ficar
em casa com este valor. Uma lição que a sociedade deveria retirar disto é que
precisamos urgentemente trazer esta multidão para o sistema de proteção social,
e isto se faz expandindo-o para os sem carteira assinada ou incentivando a
contratação com carteira assinada.
Antes de falar mal desta bosta de Reforma,
é importante dizer que a precarização do trabalho não é fruto da Reforma
Trabalhista. Sempre fomos um lugar de trabalho precarizado. Não há nada mais
insano do ponto de vista lógico, por exemplo, do que esta maluquice de MEI. Pare
para pensar, por favor. Uma pessoa se cadastra como uma empresa, tendo a si
mesma como proprietária e única funcionária, trabalha muitas vezes para uma
única empresa e é tratada como uma fornecedora, e não como uma trabalhadora. A
relação trabalhador x empresa se transforma em uma relação empresa x empresa, e
o trabalhador-empresa que jogou pela janela todos os seus direitos em nome
disto é enganado pela ideia de que vai pagar menos imposto. Se você acredita
realmente que ter MEI é melhor para você, você está sendo enganado.
Simplesmente não é. Chegamos ao ponto em que empresas simplesmente não aceitam
mais contratar trabalhadores sem que eles sejam MEI. A MEI que ficou em casa
durante a pandemia faliu. E o ministro da Fazenda maníaco do governo maníaco
disse que não ia fazer nada para ajudar pequenas empresas porque elas não geram
emprego. Vai se foder. O Brasil passou anos estimulando a ideia de que o
trabalhador deve ser individualizado e qualquer tipo de união entre eles foi
demonizada. Os sindicatos foram basicamente demolidos. Uma boa parte dos
trabalhadores, os de classe média principalmente, foram convencidos da ideia de
que qualquer dinheiro que seja gasto por alguma coletividade era roubo. Taxa
sindical e imposto. Ele foi acostumado a lutar por si e se afastar destas
coisas. Foi despolitizado. O grande problema da Reforma de 2017, fora o fato de
que ela foi feita por um governo sem legitimidade e por um vice que foi eleito
numa chapa que prometera o contrário, foi que com ela o Estado deu um gigante
passo para reconhecer que esta realidade é “moderna” e que o problema não está
na ausência de direitos trabalhistas deste mundo de pessoas, mas nos direitos
daqueles que os têm. Não só nada é feito para incluir aqueles que não têm
direitos como parte do sistema de proteção social, como ainda estimula que mais
pessoas saiam deste sistema. Incentivou terceirização e prometeu empregos fictícios
enquanto facilitou e barateou as demissões. Os empregos não vieram, o crescimento
não veio, e isto me parece meio óbvio. O país não vai crescer tornando a vida
das pessoas uma bosta.
Não gosto de dizer que deveríamos
tirar um ensinamento da pandemia. Acho que às vezes isto acaba servindo para
romantizar a tragédia. Mas é fato que a pandemia deveria ter servido para
mostrar que nenhum ser humano é uma ilha. A saída para a pandemia era, e ainda
é, coletiva. Não adiantava (e não adianta) apenas você ficar em casa do mesmo
jeito que não adianta apenas você tomar vacina. É necessário que todos façam a
sua parte para que a solução seja alcançada. Não há sucesso individual, apenas
coletivo. Não adianta se fechar numa porra de um condomínio, morar no último
andar, colocar 5 trancas na porta, contratar seguranças armados, viajar duas
vezes por ano, pagar um plano de saúde, trocar de carro uma vez por ano, pôr o
filho para aprender inglês. Uma hora a conta pelo seu egoísmo vai chegar. E vai
chegar na forma de medo. E vai chegar na forma de demissão e falência. Vai
chegar na forma de violência. Sua vida não ficará melhor enquanto você não
pensar no coletivo e não entender que este individualismo nos leva a barbárie. A
pandemia não vai acabar com você ficando em casa, mas com o garoto precarizado
rodando a cidade de bicicleta para trazer o seu hambúrguer. A sociedade não vai
melhorar enquanto este garoto não estiver recebendo o suficiente para ter uma
vida decente e tendo um Estado que garanta a sua proteção caso algo o impeça de
trabalhar.
Vivemos em uma sociedade em que o
último presidente eleito recebeu mais de 50% dos votos prometendo prender e
matar oponentes. Pessoas que votam em alguém assim perderam qualquer capacidade
de enxergar o outro, e por isto é fundamental restabelecer os laços de
comunidade. E o mundo do trabalho é um dos focos disto. O outro trabalhador
deve ser visto como colega e não como concorrente. O coletivo precisa estar
preparado para ajudar os mais carentes e falhamos fortemente nesta missão
durante a pandemia. Uma possível revogação da Reforma Trabalhista seria um
passo fundamental para iniciar uma nova era no Brasil. Um país que precisa ser reconciliado
e reconstruído. O Brasil precisa de paz, e a paz só é obtida compartilhando.
E na boa, a Reforma foi uma bosta.
Está tudo uma bosta. Se você acha que ela foi um avanço, na boa, não foi avanço
porra nenhuma. Acorda e olha para o que está ao seu redor.