Em 2 de abril de 1982, a
Argentina entrou em um transe coletivo, uma histeria na verdade. O ditador
Leopoldo Galtieri, chefe da Junta das Forças Armadas que governava o país desde
1976 anunciava, para delírio de um povo em êxtase na Praça de Maio, que o país
estava invadindo as ilhas Malvinas, cuja posse os argentinos reivindicavam da
Grã-Bretanha desde o séc. XIX. Galtieri foi o segundo dos três presidentes da
ditadura argentina, que durou entre 1976 e 1983. Foi a ditadura mais cruel do
continente. Dados divergem sobre o número de mortos, mas as estatísticas falam
entre 10.000 e 30.000 mortos. Para se ter uma ideia, a ditadura brasileira, em
21 anos, matou 300 pessoas.
Em
1982 a Argentina passava por uma grave crise econômica e o governo militar era
mais contestado do que nunca. Precisava-se de algo que trouxesse novamente o
apoio popular. O arquipélago das Malvinas é a grande mágoa do povo argentino.
Duas ilhotas que quase nada tem, nem gente, mas cuja presença inglesa dói na
alma portenha. A invasão ocorreu de sopetão e a população do país embarcou com
coração e alma na aventura. A popularidade de Galtieri subiu acima de 90% e até
os grupos clandestinos de esquerda se alistaram na luta contra os “imperialistas
ingleses”.
Galtieri
jamais imaginava que a Inglaterra respondesse. Os argentinos acreditavam em um
suposto apoio americano à ocupação das ilhas. Dizia o acordo da OEA que todos
os países membros apoiariam um integrante que se envolvesse num conflito e os
americanos, até aquele momento, sempre olharam com bons olhos não apenas a
ditadura argentina, mas todas as outras ditaduras de direita do continente
sul-americano, com exceção dos quatro anos de governo Carter. Reagan, seu
sucessor, obviamente não cumpriu o acordo da OEA e apoiou incondicionalmente o
Reino Unido de Margareth Thatcher. Foi seguido por Pinochet, que permitiu
inclusive que os britânicos usassem o território chileno como base área, e, de
forma mais implícita, pelo Brasil, que liberou seu espaço aéreo e naval aos
europeus.
O
ditador argentino terminou seu discurso em 02/04/1982 com a frase “Que venham
os ingleses”. E eles foram. Com tudo. Margareth Thatcher passava por um período
conturbado em seu governo e nada como um conflito com um país claramente mais
fraco e agressor para garantir uns pontinhos de popularidade. Não houve guerra,
mas sim massacre. Menos de três meses depois da invasão a Argentina estava
humilhantemente derrotada. A autoestima de seu povo foi para o chão, junto com
a moral dos soldados derrotados e da Junta Militar, que não sobreviveria mais
um ano. Era um país em frangalhos.
Quis
o destino que quatro anos depois, em 22/06/1986, Argentina e Inglaterra se
encontrassem em um jogo de Copa do Mundo. Futebol é algo irrelevante perto de
uma guerra, mas não naquele dia, não para os argentinos. O nervosismo tomou
conta de Buenos Aires nos dias e horas que antecederam aquela partida. Ninguém
queria pensar como seria o dia posterior a uma possível nova derrota para os
ingleses. Ninguém imaginava também o que estava para acontecer.
O
primeiro tempo do jogo foi tenso, com brigas nas arquibancadas, cantos
provocativos da torcida inglesa e muita porrada no meio de campo. No segundo
tempo, os cinco minutos de glória. Aos 6 minutos, um baixinho acima do peso que
jogava pela Argentina tentou uma jogada que deu errado, a bola ricocheteou e
sobrou no alto para uma dividida entre este gordinho e o goleiro inglês de
quase dois metros. O baixinho, que jamais ganharia esta dividida, foi com a mão
na bola, que entrou, e saiu comemorando sem olhar para o lado. Todo estádio viu
a mão na bola, menos juiz e bandeirinha. O gordinho havia trapaceado contra os
ingleses. Isto é errado, mas não naquele dia. Nada poderia ser mais gostoso
para um argentino do que ver ingleses enfurecidos, sentindo-se enganados por um
portenho. A humilhação da guerra já era menor. Cinco minutos depois, porém, o
que já era gostoso tornou-se uma hecatombe, uma nova histeria coletiva. O mesmo
baixinho que era odiado pelos imperialistas enganados, driblou sete ingleses enfurecidos,
deixou dois inclusive no chão e fez o gol mais bonito da história do
campeonato. É impossível para quem não é argentino entender o que aqueles cinco
minutos representaram para a autoestima do país. Ver um portenho primeiro
enganar os ingleses com sua malícia e depois humilhá-los com seu talento lavou
a alma de um povo. Futebol é algo insignificante. Mas não aquele dia. A Argentina
ganharia o jogo e o campeonato, mas são estes cinco minutos que criaram um
mito. Diego Armando Maradona, o baixinho gordo que fez os vilões ingleses
chorarem por um dia enquanto os argentinos celebravam. Aquele dia representou
um novo início para o país. O luto havia acabado.
Para
quem gosta de história, o vídeo abaixo mostra imagem de 1982 de um programa da
TV argentina durante a guerra, chamado “24 horas pelas Malvinas”. Era uma
espécie de Teleton para arrecadar fundos para os soldados. Nele, Maradona
aparece fazendo uma contribuição em dinheiro. A maior contribuição, no entanto,
ele daria 4 anos depois. O povo argentino é eternamente grato.