Poucas imagens são tão marcantes
para demonstrar as relações de poder entre elite e classe média e a submissão
desta em relação àquela quanto a obtida na última quarta-feira na partida entre
CSA x Flamengo em Brasília. Buscando apoio após os vazamentos que comprovam os
crimes que cometeu durante a Operação Lava Jato que o alçou à fama, Sérgio Moro
foi com o presidente que se beneficiou dos seus crimes ao jogo do time de maior
torcida do Brasil na capital. Constrangido, pois definitivamente lidar com
pessoas não é sua maior habilidade, Moro vestiu uma camisa do Flamengo no
camarote, para delírio do público da numerada que estava abaixo do ministro. A
numerada sonha em ser o camarote e morre de medo de voltar a ser arquibancada.
A classe média sonha em ser elite e morre de medo de ser confundida com povo. É
através deste medo e deste sonho que ela é facilmente manipulada pela elite,
que impõe a ela os valores que justificam sua exploração e sua infelicidade.
O Flamengo é atualmente o time
mais rico do país. Sua folha de pagamento de salário para jogadores ultrapassa
os R$ 3 milhões mensais, gastou aproximadamente R$ 50 milhões para a temporada
e quer títulos. No começo deste ano, um grupo de garotos buscando o sonho de
jogar profissionalmente na equipe morreu num incêndio nas categorias de base do
clube. Dez garotos entre 14 e 16 anos perderam suas vidas enquanto dormiam em
containers sem condições e sem alvará. A primeira proposta que o Flamengo fez
para as famílias de cada um dos meninos mortos foi de R$ 400 mil por vida,
provavelmente algo próximo do salário mensal do técnico português Jorge Luz,
que acabou de contratar. As famílias que não aceitassem teriam que enfrentar o
clube na justiça, onde a situação duraria anos. Algumas famílias aceitaram,
outras não. O clube não sofreu nenhuma punição desportiva pela morte dos
garotos e na semana passada o seu presidente foi indiciado criminalmente pelas
mortes. Não sei se ele estava no camarote com Bolsonaro e Moro na partida.
Acredito que não, mas também acredito que ninguém veria problemas na situação.
Afinal, o que são dez vidas adolescentes perdidas perto do “Mengão”?
O apoio do pessoal do camarote
foi fundamental para que Bolsonaro e Moro chegassem ao poder. Foram anos de revolta
vendo pessoas “diferentes” saindo das arquibancadas e chegando ao camarote e
aquilo precisava ser derrotado. Anos de frustração e infelicidade que
encontraram sua voz numa pessoa frustrada e infeliz, o “mito”. Bolsonaro é a
voz da classe média do camarote, que enxerga nele as mesmas características
toscas que vê em si. Assim, como ela, o “mito” é ignorante, arrogante,
preconceituoso, paranoico e mentiroso. Preguiçoso intelectualmente, rejeita
qualquer tipo de conhecimento que julgue “inútil”, como a arte e as ciências
humanas. O pensamento e a reflexão incomodam, o que vale mesmo é falar merda
com base em nada. A falta de capacidade do atual presidente em falar por mais de um minuto sobre o mesmo assunto é plenamente compartilhada por esta turma. Bolsonaro chegou ao poder da mesma forma como a classe média
do camarote vive a vida.
Defender os crimes de Sérgio Moro
está longe de ser algo difícil para a classe média do camarote. Estas pessoas
cometem delitos diariamente. Não pagam direitos trabalhistas, sonegam impostos,
pagam outras pessoas para que assumam seus pontos na carteira etc. Descobrir
que Moro é um criminoso que forjou um processo contra o cara da arquibancada
que ousou pôr pessoas como ele no camarote apenas aumentou a admiração que esta
turma tem por ele.
Para que uma pessoa enxergue a
gravidade que é um juiz e um advogado de defesa atuam em conluio é necessário
que ela tenha algum apego pelo estado democrático de direito e este
definitivamente não é o caso da classe média do camarote. A tirania é a base da
vida e da infelicidade destas pessoas que, incapazes de refletir, dedicam-se ao
trabalho de defender até a morte o sistema que as mantêm aprisionadas. Não à
toa, a maior defesa das elites é a transformação do setor público em setor
privado, que é tirânico por natureza. “Precisamos de gestão”, repete o cara da
classe média do camarote, que não percebe que a sua relação de trabalho é o que
causa sua infelicidade.
Em geral, as pessoas da classe
média do camarote odeiam quase todos os aspectos da sua vida. Odeiam o
trabalho, odeiam o chefe. Odeiam o carro, odeiam o trânsito. Odeiam pagar contas,
odeiam tudo. Estão dispostas a tudo para manter o emprego, adoram bajular o
chefe. Entram na prestação de um novo carro assim que acabam de pagar o antigo,
não cogitam usar transporte público. Não cogitam a ideia de defender que o
serviço público funcione, contentam-se em buscar no setor privado a “solução”
para tudo e assim a vida se resume a pagar contas. A frustração leva ao
desespero, gerando medo e violência. O cidadão com medo e com raiva é
facilmente manipulado. A elite do camarote está lá para fazer isto.
As revelações sobre os crimes de
Moro dificilmente gerarão algo. No fundo, todo mundo já sabia que Moro havia
cometido crimes na Lava Jato. Isto apenas está provado. Mas para a classe média
do camarote, isto é o de menos. Quem aplaudiu uma condenação sem provas não
terá problemas em aplaudir a absolvição do criminoso no caso em que há provas. Desde que o pessoal da arquibancada fique cada vez mais longe. “Força, Mengão”.
Nenhum comentário:
Postar um comentário