O paulistano médio tem algumas
paixões. As padarias com catraca, as academias espelhadas e a selfie no elevador
estão entre elas. Mas nenhuma delas supera o carro e todo tipo de infelicidade
e reclamações que ele permite. Nada no planeta, por exemplo, é mais chato do
que paulistano falando sobre trânsito. As lamentações sobre a demora de duas
horas para chegar ao trabalho, quase sempre causada pela “imprudência de algum motoqueiro”,
o grande inimigo do motorista paulistano médio na guerra do trânsito. É lá
também que o paulistano gosta de mostrar sua “esperteza”. Ver paulistanos
falando sobre qual caminho fizeram para fugir do trânsito é um verdadeiro teste
para qualquer tipo de paciência. “Ao invés de pegar, sei lá, a Marginal, eu
entrei à direita na rua tal, virei à esquerda na avenida outra, segui reto num
beco lá e consegui chegar... ufa, se não fosse isso, não sei que horas que eu chegaria”.
O colega que seguiu na Marginal demorou mais cinco minutos.
O carro de certa forma simboliza
e incentiva tudo que há de pior na nossa sociedade. É um símbolo da prisão em
uma vida infeliz, abastecida através de stress, consumismo e status. Em geral, o
motorista de carro é individualista, estressado, egoísta, irresponsável e incapaz
de fazer uma autocrítica. Isto fica claro quando assistimos ou ouvimos a mídia
voltada para o trânsito. Não sei como é em outros lugares, mas as informações da
manhã do paulistano se resumem ao trânsito. “Marginal Pinheiros parada para
resgate de um motoqueiro”. O foco não é na perda da vida, e sim no fato de que
o trânsito está parado. Tem sempre um helicóptero voando e mostrando o trânsito
parado do alto. Nas rádios são constantes aqueles barulhos da hélice de
helicóptero noticiando a mesma notícia todo dia. Os repórteres sempre falam com
pressa, sem que eu saiba muito bem a razão. Os seus ouvintes estão parados e a
notícia é sempre a mesma. De certa forma eles incorporam o stress dos ouvintes
e tem como função estimulá-lo. Stress vicia e um cidadão estressado é mais
facilmente manipulado, especialmente para o consumo e para o ódio.
Para uma parcela significativa da
população paulistana, a vida gira em torno do carro. O stress do trânsito no
dia da semana se converte em stress procurando vaga de estacionamento no shopping
no fim de semana, passando pela fuga das batidas policiais que procuram
motoristas bêbados aos sábados à noite. Sim, o paulistano criou um aplicativo
em que se compartilham informações sobre onde estão as blitz e fala sobre isto
abertamente. O motorista paulistano está sempre certo. Há algum tempo, a mídia
do trânsito cunhou o termo “indústria da multa” para falar sobre a ação “covarde
e arbitrária” dos governantes que, olha só, buscavam punir os “bravos e
valentes” motoristas que praticam infrações no trânsito. O mesmo cidadão “de
bem” que reclama que a polícia não faz nada e pede leis mais duras contra todos
os crimes enxerga de outra forma a situação quando a infração é cometida por
ele. Numa situação bizarra, um motorista em alta velocidade diz que a culpa
pela sua infração não é dele, e sim do radar que captou o momento. “Ele estava
escondido”, “argumenta” o motorista, com o uso das aspas na palavra argumenta
mais do que justificado. O mesmo paulistano que pede cadeia para tudo e para
todos quer destruir o sistema que no trânsito pega e pune os infratores. Há na
cidade um verdadeiro comércio de transferência de pontos entre motoristas. O
mesmo cidadão de “bem” que pede responsabilidade aos crimes não pensa duas
vezes antes de pagar alguém que aceite ficar com os pontos da infração.
O motorista paulistano é uma
versão moderna do Pateta maluco. Neste episódio, o Pateta simplesmente se
transforma ao entrar dentro de um automóvel, deixando de se tornar um dócil
cidadão comum para se transformar num fera quando está atrás do volante. Mas na
vida moderna a versão maluca do Pateta venceu. Ao ser uma das principais fontes
de infelicidade na vida do paulistano médio, é também uma das suas maiores
paixões e este cidadão está disposto a passar por cima de tudo para manter-se
parado no trânsito e surtando. O primeiro político a perceber isto com maestria
foi João Doria Jr. Nas eleições de 2016, Doria tinha como principal promessa de
campanha o aumento da velocidade nas Marginais e a desinstalação de radares de
velocidade. Seu antecessor, Fernando Haddad, havia reduzido de 90 para 70 km/h
a velocidade permitida nestas vias e instalou radares para pegar quem não cumprisse
a nova lei. As medidas de Haddad resultaram numa queda no número de acidentes,
com redução no número de mortos e impacto positivo no trânsito. Embora a velocidade
máxima tenha sido reduzida, a redução no trânsito em razão da queda no número
de acidentes elevou a velocidade média da via, isto não segundo a gestão Haddad,
mas segundo o órgão fiscalizador do governo do Estado, gerido pelo partido de
Doria. Este não quis saber destes dados, disse que sua impressão era outra e,
com base neste “argumento” maravilhoso, conquistou os corações dos paulistanos
médios, sendo eleito no primeiro turno. Sua primeira ação no governo foi, como
prometido, rever as medidas. Como resposta ao aumento no número de acidentes e
mortes na via, a gestão Doria apostou na distribuição de panfletos e na
colocação de duas ambulâncias no acostamento da via para, segundo palavras do
prefeito, “atender as vítimas com maior agilidade e liberar o trânsito o mais
rápido possível”.
O carro se sobrepõe à vida no
conceito tosco de existência do paulistano médio. Durante as eleições de 2016,
era quase impossível convencer motoristas paulistanos de que a redução de
velocidade era algo bom com base no argumento da redução do número de mortos.
Ninguém estava nem aí para isto. Passei a notar então que todas as campanhas de
conscientização sobre o assunto não se baseiam na ideia de empatia pura e simples
com o outro, e sim em fazer com que o “cidadão de bem” enxergue que ele pode
ser a vítima que hoje ele despreza. Só há efeito se o motorista enxergar a “si”
como vítima, enquanto for o “outro” a possibilidade de conscientização é
mínima. Durante a mesma eleição, li uma análise que mostrava que um paulistano
a velocidade de 90 km/h demoraria aproximadamente 2 minutos a menos para
percorrer a Marginal se comparado a um paulistano a 70 km/h. Entre dois minutos
e a vida de “outro”, o paulistano optou pelos dois minutos. “Acelera, São Paulo”.
O eleitor de Doria em 2016 votou
em Bolsonaro em 2018. Os números dos dois na capital paulista são bem
parecidos, embora eu ache que a comparação entre os dois não deve ser tão
radical. Bolsonaro consegue ser muito pior do que Doria. Mas em alguns aspectos
a gestão Bolsonaro leva ao país métodos que Doria tentou implantar na gestão
paulistana e um deles é, sem dúvida, a completa ausência de preocupação com
dados e com a opinião de analistas no momento da implantação de políticas
públicas. Assim como Doria privilegiou seus achismos frente aos dados que
comprovavam a eficácia da redução de velocidades na Marginal, Bolsonaro os ignorou
completamente na sua nova empreitada a favor da matança nas estradas. Ignorar o
conhecimento, aliás, é uma das marcas desta nova gestão. É assim no pacote
anticrime do ministro Moro, nas “ideias” educacionais etc. Contrariando qualquer
lógica e bom senso, Bolsonaro quer, entre outras coisas, aumentar o número de
pontos na carteira que proíbem um motorista de continuar conduzindo, tirar a
obrigatoriedade da cadeirinha de criança no banco de trás e acabar com a
necessidade de exame toxicológico para motoristas profissionais. De verdade, basta
pensar um pouco, bem pouquinho mesmo. Refiro-me com isto a pessoas que não são
apoiadoras do atual governo, seria impossível exigir de quem ainda apoia algo
tão difícil quanto o pensamento. Quem se beneficia com este tipo de medidas? Aumentar
o número de pontos, os únicos beneficiados são aqueles que cometem muitas
infrações e poderão cometer mais, certo? Retirar a obrigatoriedade do exame
toxicológico só beneficia quem não passaria neste exame, certo? Mas podemos
ficar “tranquilos”, uma vez que o caminhoneiro que não passaria neste exame também
poderá portar uma arma.
Não há espaço para empatia na “nova
política” de Doria e Bolsonaro. Nenhum de seus eleitores está preocupado com o
óbvio aumento no número de acidentes e de mortes que as novas medidas do presidente
vão ocasionar. Isto porque a morte e os acidentes impactam o “outro”, enquanto
o benefício aparente é individual. “Posso tomar mais multa”, pensa o paulistano
médio que, indiscutivelmente, conseguiu expandir sua visão de mundo para o
restante do país. A “nova política” representa a ausência de empatia. Toda a
sua plataforma é baseada no incentivo ao individualismo, algumas vezes
travestido da palavra empreendedorismo, e na rejeição a qualquer coisa que
pense no coletivo. O exemplo mais extremo é o do Rio de Janeiro, em que a sociedade
aceita com um silêncio aprovador a matança que vem sido organizada pelo
governador Wilson Witzel nas regiões mais pobres do estado. São Paulo “acelerou”
e deixou alguns mortos no caminho. Agora é o Brasil que “acelera”. Em marcha
ré.
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