terça-feira, 11 de junho de 2019

A televisão sem som



A existência de televisores sem som em ambientes públicos é para mim um grande mistério. Nunca entendi muito bem a função deles. Outro dia fui numa UBS aqui no centro por um problema besta. Ouvido entupido de cera. Fui uma pessoa criada com todos os privilégios imagináveis e é um choque cair na real. Meu plano de saúde foi para o saco junto com meu emprego e chegou a hora de conhecer o SUS. A classe média em geral se apavora quando perde seus privilégios e não nego que foi um pouco assim comigo. Somos doutrinados a achar que vamos, sei lá, morrer se perdemos os privilégios. Basta falar com algum motorista que fica sem carro para ver o drama que ele faz. A primeira lição de vida que o SUS te dá é que você não é prioridade. As pessoas na vida real têm problemas mais sérios do que um ouvido entupido de cera e você vai ser atendido só quando essas pessoas com problemas de verdade forem atendidas. Não adianta surtar. No dia em que fui tentar desentupir meu ouvido, enquanto eu esperava, aconteceu um acidente perto da região e os feridos foram para lá. O médico que iria me atender foi deslocado para atender as vítimas deste acidente e tive que voltar no dia seguinte. Justo. Enquanto eu esperava, lidei com a televisão sem som. Eu e mais algumas pessoas assistíamos o programa da Ana Maria Braga. Muitas risadas, comidas, cores, mas nada de som. Mesmo assim, ficamos vidrados na tela. Em quase todo local público ela existe. A impressão que tenho é que as pessoas simplesmente precisam de algo para ficar olhando enquanto esperam. Uma distração qualquer. O celular provavelmente impactou muito o mundo da televisão sem som, mas ficou claro para mim naquele dia que nada superava a tal da televisão sem som.
Uma distração enquanto as pessoas vivem. Algo que ocupe nosso cérebro enquanto não pensamos. A Lava Jato sempre soube se apresentar como uma boa distração. Soube muito bem ler a linguagem do entretenimento. Eu demorei muito tempo para assistir a alguma entrevista com Sérgio Moro. Por muito tempo ele existiu só em foto ou em voz. As poucas entrevistas dele aconteciam ou em premiações ou para órgãos estrangeiros. Não conheço nenhuma pessoa que tenha ganho tantos prêmios fajutos num período tão curto de tempo como o ex-juiz. Em 2018, por exemplo, Moro ganhou da Isto É o prêmio de “juiz do ano”. Que porra de competição é essa? No mesmo ano, ele ganhou da empresa de João Doria Jr. o prêmio de “brasileiro do ano”. Duas coisas me chamaram a atenção neste prêmio. A primeira é que o prêmio de “brasileiro do ano” é entregue em Nova York. O segundo é que o vencedor do prêmio no ano anterior foi João Doria Jr. Basicamente João Doria Jr. se elegeu “brasileiro do ano” em 2017. Fora estes prêmios, o que existia de Moro eram as fotos de braços cruzados e a voz. A câmera em seus julgamentos estava sempre apontada para o réu e Moro surgia como quase uma figura divina, uma voz do além. Perfeito do ponto de vista do espetáculo.
Na época assisti a uma entrevista de Moro para a CNN. Moro não dava entrevistas para a mídia brasileira, mas estava todo felizão de apresentar a “Car Wash” nos EUA. Na época, achei a entrevista bizarra. Moro, num inglês sofrível, deu como principal fonte para sua forma de ação o filme “Os Imperdoáveis”. Anderson Cooper, o entrevistador, tratou o entrevistado como uma bizarrice típica de Terceiro Mundo, mas Moro não foi muito capaz de perceber isto. A primeira entrevista de Moro para a grande mídia brasileira aconteceu apenas em abril do ano passado. O então juiz aceitou participar do Roda Viva de despedida de Augusto Nunes, colunista de Veja e da rádio Jovem Pan, um ícone da extrema-direita. O foco de Moro naquela entrevista era o julgamento da prisão a partir da segunda instância, que seria julgado no Supremo naquela semana. O juiz aproveitou todo o momento para demonstrar sua visão um tanto quanto tosca de justiça e para pressionar Rosa Weber, juíza que estava indecisa e cujo voto iria decidir a questão. Justiça significa punição, deixou ele claro, para deleite dos jornalistas puxa-sacos que cumpriam a função de escada para a grande estrela da noite.
Sérgio Moro soube criar um espetáculo moderno. Eu ainda acho que em algum momento vamos descobrir que a Lava-Jato surgiu a partir de uma pesquisa de mercado. O que o público quer neste grande entretenimento? Assim como Moro, a maior parte da população brasileira teve um conceito de certo e errado criado a partir de obras televisivas e cinematográficas ruins. Se Moro vive citando filmes de heróis como base para seus julgamentos, a população brasileira em geral faz isso a partir de novelas, que tem quase sempre o mesmo enredo. Um homem rico, bom e trabalhado está noivo de uma mulher rica e vilã. Um pouco antes de casar, ele conhece uma mulher pobre, boa e trabalhadora e eles se apaixonam, mas são vítimas da mulher rica e vilã, que apronta horrores contra o casal, sempre com um aliado que tem como amante. No final, a vilã é desmascarada e tem como punição a morte ou a pobreza. Já a mulher pobre, boa e trabalhadora ganha como prêmio pela bondade a riqueza. A noção de justiça do brasileiro médio é essa. Não é, sei lá, a vilã indo para um julgamento justo com direito a defesa. Isto não tem graça no entretenimento.
“A fama e a riqueza são como a sede quando se bebe água do mar, quanto mais se bebe mais fome se tem”, disse o pensador alemão Arthur Schopenhauer. Duvido que Moro tenha lido algo deste tipo na vida. Talvez ele se interesse se sair um filme. Também não acho que ele tenha lido nada destes pensadores clássicos alemães, mas Moro inegavelmente entende de dialética. Ele sem dúvida percebeu que a lógica do sistema exigia a existência de um vilão para o surgimento de um herói. E quanto mais o vilão fosse derrubado, mais o herói subiria. A classe média e os privilegiados já tinham um vilão, aquele que odiavam desde sempre. O metalúrgico que virou presidente. O “analfabeto” que colocou pobres nas universidades públicas. O torneiro mecânico que ousou pôr pobre para andar de avião. Para estas pessoas Lula sempre foi “ladrão”. Você já viu onde o Lula mora? Pergunta a pessoa de classe média privilegiada revoltada porque o homem que presidiu o Brasil por oito anos tem um apartamento normal em São Bernardo e visitou um apartamento no Guarujá. Foi fácil se tornar o herói de uma parcela da população que já tinha o vilão.
Moro soube conduzir o espetáculo com apoio midiático. A cada ação circense da PF, sempre uma câmera ligada. Uma informação vazada aqui, outra lá. Pessoas sendo presas preventivamente de forma indevida e torturadas psicologicamente. “O Brasileiro do ano”. Delações sem provas sendo vazadas como verdades absolutas, destruindo reputações e gerando até mesmo suicídios. “Juiz do Ano”. Virou personagem de filme e de série. A prisão sem prova de Lula o transformou no herói que aquela parcela da população precisava. “Ganhar roubado é mais gostoso”, dizem na outra paixão nacional. Bolsonaro ganhou a eleição roubada de Lula e, como prêmio, chamou o herói para um ministério. O “herói” não se choca tanto com os defeitos do “mito”. A defesa da tortura, o machismo, a homofobia, os elogios à ditadura. Nada disso incomoda o “herói”.
A imprensa que serviu de escada para Moro na Lava Jato tentou servir de escada novamente no ministério. Apresentou-o como especialista na área de segurança pública. Curioso, fui procurar qual contribuição de qualquer tipo que o já ex-juiz havia dado na área, seja como ação ou como produção intelectual. Não existia nada. Tudo que a imprensa sabia dizer era que o agora ministro iria levar para o governo as táticas usadas na Lava Jato. Inegavelmente, prisões preventivas absurdas, tortura psicológica e desrespeito à lei são “qualidades” que agradam muito a alguém como Bolsonaro. Como ministro, porém, Moro não pôde mais ser apenas a foto ou a voz divina. Teve que começar a aparecer e a participar de entrevistas minimamente verdadeiras. O resultado foi assustador. O herói da classe média e da elite tosca e medíocre surgiu como alguém que, afinal, é tosco e medíocre. Moro é incapaz de passar mais de um minuto falando sobre qualquer assunto e muito raramente consegue desenvolver uma frase com início, meio e fim. Gagueja e não consegue olhar no olho de quem fez a pergunta. Não consegue citar um livro que leu. Como ministro, mostra-se incapaz de dialogar com a classe política que demonizou. Tudo que conseguiu até agora foi assinar o decreto que flexibilizou a posse de armas, iniciar um estudo para diminuir os impostos sobre o cigarro e lançar um pacote anticrimes de inclinação fascista, que basicamente libera o assassinato de pessoas suspeitas (quase sempre pobres e negras) por forças policiais.
Aparentemente a mídia tradicional vai até o fim com o herói que ajudou a construir. O site The Intercept divulgou uma série de conversas vazadas do “herói” em que fica basicamente claro que ele manipulou todo o processo que gerou seu “heroísmo”. Foi tudo uma farsa. Transformar o “herói” em vilão, no entanto, significará transformar o “vilão” em herói, e isto é tudo que a parcela da população que clama por Moro não quer. As conversas do Intercept mostram as relações mais do que indevidas que Moro tem com membros da imprensa. Os cúmplices do espetáculo. Mesmo a Globo, com sua postura crítica a Bolsonaro e em guerra com a Record, porta-voz oficial do capitão fracassado, segue idealizando o ministro. Evitam entrevista-lo ou perguntar coisas difícoeis. Já perceberam as limitações do “herói”. Hoje passei meia hora assistindo a Glbo News. O assunto era a dificuldade que a classe média carioca está encontrando para manter o ar condicionado. Um assunto leve num dia tenso. Algo que permite desligar o som da TV.
A Lava Jato é uma farsa. As eleições de 2018 foram uma farsa. As pessoas vivem farsas e se identificam com elas. O mal seduz com tolices para depois enganar. É uma frase de Macbeth. Em quase todas as obras de Shakespeare são os vilões que se apegam ao moralismo. Moro é clichê. Basta abrir um livro. Ou ligar o som da TV.

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