A existência de televisores sem
som em ambientes públicos é para mim um grande mistério. Nunca entendi muito
bem a função deles. Outro dia fui numa UBS aqui no centro por um problema besta.
Ouvido entupido de cera. Fui uma pessoa criada com todos os privilégios
imagináveis e é um choque cair na real. Meu plano de saúde foi para o saco
junto com meu emprego e chegou a hora de conhecer o SUS. A classe média em
geral se apavora quando perde seus privilégios e não nego que foi um pouco
assim comigo. Somos doutrinados a achar que vamos, sei lá, morrer se perdemos
os privilégios. Basta falar com algum motorista que fica sem carro para ver o
drama que ele faz. A primeira lição de vida que o SUS te dá é que você não é
prioridade. As pessoas na vida real têm problemas mais sérios do que um ouvido
entupido de cera e você vai ser atendido só quando essas pessoas com problemas
de verdade forem atendidas. Não adianta surtar. No dia em que fui tentar
desentupir meu ouvido, enquanto eu esperava, aconteceu um acidente perto da
região e os feridos foram para lá. O médico que iria me atender foi deslocado
para atender as vítimas deste acidente e tive que voltar no dia seguinte.
Justo. Enquanto eu esperava, lidei com a televisão sem som. Eu e mais algumas
pessoas assistíamos o programa da Ana Maria Braga. Muitas risadas, comidas,
cores, mas nada de som. Mesmo assim, ficamos vidrados na tela. Em quase todo
local público ela existe. A impressão que tenho é que as pessoas simplesmente
precisam de algo para ficar olhando enquanto esperam. Uma distração qualquer. O
celular provavelmente impactou muito o mundo da televisão sem som, mas ficou
claro para mim naquele dia que nada superava a tal da televisão sem som.
Uma distração enquanto as pessoas
vivem. Algo que ocupe nosso cérebro enquanto não pensamos. A Lava Jato sempre
soube se apresentar como uma boa distração. Soube muito bem ler a linguagem do
entretenimento. Eu demorei muito tempo para assistir a alguma entrevista com
Sérgio Moro. Por muito tempo ele existiu só em foto ou em voz. As poucas
entrevistas dele aconteciam ou em premiações ou para órgãos estrangeiros. Não
conheço nenhuma pessoa que tenha ganho tantos prêmios fajutos num período tão
curto de tempo como o ex-juiz. Em 2018, por exemplo, Moro ganhou da Isto É o
prêmio de “juiz do ano”. Que porra de competição é essa? No mesmo ano, ele
ganhou da empresa de João Doria Jr. o prêmio de “brasileiro do ano”. Duas
coisas me chamaram a atenção neste prêmio. A primeira é que o prêmio de “brasileiro
do ano” é entregue em Nova York. O segundo é que o vencedor do prêmio no ano
anterior foi João Doria Jr. Basicamente João Doria Jr. se elegeu “brasileiro do
ano” em 2017. Fora estes prêmios, o que existia de Moro eram as fotos de braços
cruzados e a voz. A câmera em seus julgamentos estava sempre apontada para o réu
e Moro surgia como quase uma figura divina, uma voz do além. Perfeito do ponto
de vista do espetáculo.
Na época assisti a uma entrevista
de Moro para a CNN. Moro não dava entrevistas para a mídia brasileira, mas
estava todo felizão de apresentar a “Car Wash” nos EUA. Na época, achei a
entrevista bizarra. Moro, num inglês sofrível, deu como principal fonte para
sua forma de ação o filme “Os Imperdoáveis”. Anderson Cooper, o entrevistador,
tratou o entrevistado como uma bizarrice típica de Terceiro Mundo, mas Moro não
foi muito capaz de perceber isto. A primeira entrevista de Moro para a grande
mídia brasileira aconteceu apenas em abril do ano passado. O então juiz aceitou
participar do Roda Viva de despedida de Augusto Nunes, colunista de Veja e da
rádio Jovem Pan, um ícone da extrema-direita. O foco de Moro naquela entrevista
era o julgamento da prisão a partir da segunda instância, que seria julgado no
Supremo naquela semana. O juiz aproveitou todo o momento para demonstrar sua
visão um tanto quanto tosca de justiça e para pressionar Rosa Weber, juíza que
estava indecisa e cujo voto iria decidir a questão. Justiça significa punição,
deixou ele claro, para deleite dos jornalistas puxa-sacos que cumpriam a função
de escada para a grande estrela da noite.
Sérgio Moro soube criar um
espetáculo moderno. Eu ainda acho que em algum momento vamos descobrir que a
Lava-Jato surgiu a partir de uma pesquisa de mercado. O que o público quer
neste grande entretenimento? Assim como Moro, a maior parte da população
brasileira teve um conceito de certo e errado criado a partir de obras
televisivas e cinematográficas ruins. Se Moro vive citando filmes de heróis como
base para seus julgamentos, a população brasileira em geral faz isso a partir
de novelas, que tem quase sempre o mesmo enredo. Um homem rico, bom e
trabalhado está noivo de uma mulher rica e vilã. Um pouco antes de casar, ele
conhece uma mulher pobre, boa e trabalhadora e eles se apaixonam, mas são
vítimas da mulher rica e vilã, que apronta horrores contra o casal, sempre com
um aliado que tem como amante. No final, a vilã é desmascarada e tem como
punição a morte ou a pobreza. Já a mulher pobre, boa e trabalhadora ganha como
prêmio pela bondade a riqueza. A noção de justiça do brasileiro médio é essa.
Não é, sei lá, a vilã indo para um julgamento justo com direito a defesa. Isto
não tem graça no entretenimento.
“A fama e a riqueza são como a
sede quando se bebe água do mar, quanto mais se bebe mais fome se tem”, disse o
pensador alemão Arthur Schopenhauer. Duvido que Moro tenha lido algo deste tipo
na vida. Talvez ele se interesse se sair um filme. Também não acho que ele
tenha lido nada destes pensadores clássicos alemães, mas Moro inegavelmente
entende de dialética. Ele sem dúvida percebeu que a lógica do sistema exigia a
existência de um vilão para o surgimento de um herói. E quanto mais o vilão
fosse derrubado, mais o herói subiria. A classe média e os privilegiados já
tinham um vilão, aquele que odiavam desde sempre. O metalúrgico que virou
presidente. O “analfabeto” que colocou pobres nas universidades públicas. O
torneiro mecânico que ousou pôr pobre para andar de avião. Para estas pessoas
Lula sempre foi “ladrão”. Você já viu onde o Lula mora? Pergunta a pessoa de
classe média privilegiada revoltada porque o homem que presidiu o Brasil por
oito anos tem um apartamento normal em São Bernardo e visitou um apartamento no
Guarujá. Foi fácil se tornar o herói de uma parcela da população que já tinha o
vilão.
Moro soube conduzir o espetáculo
com apoio midiático. A cada ação circense da PF, sempre uma câmera ligada. Uma
informação vazada aqui, outra lá. Pessoas sendo presas preventivamente de forma
indevida e torturadas psicologicamente. “O Brasileiro do ano”. Delações sem
provas sendo vazadas como verdades absolutas, destruindo reputações e gerando
até mesmo suicídios. “Juiz do Ano”. Virou personagem de filme e de série. A
prisão sem prova de Lula o transformou no herói que aquela parcela da população
precisava. “Ganhar roubado é mais gostoso”, dizem na outra paixão nacional.
Bolsonaro ganhou a eleição roubada de Lula e, como prêmio, chamou o herói para
um ministério. O “herói” não se choca tanto com os defeitos do “mito”. A defesa
da tortura, o machismo, a homofobia, os elogios à ditadura. Nada disso incomoda
o “herói”.
A imprensa que serviu de escada
para Moro na Lava Jato tentou servir de escada novamente no ministério.
Apresentou-o como especialista na área de segurança pública. Curioso, fui
procurar qual contribuição de qualquer tipo que o já ex-juiz havia dado na
área, seja como ação ou como produção intelectual. Não existia nada. Tudo que a
imprensa sabia dizer era que o agora ministro iria levar para o governo as
táticas usadas na Lava Jato. Inegavelmente, prisões preventivas absurdas,
tortura psicológica e desrespeito à lei são “qualidades” que agradam muito a
alguém como Bolsonaro. Como ministro, porém, Moro não pôde mais ser apenas a
foto ou a voz divina. Teve que começar a aparecer e a participar de entrevistas
minimamente verdadeiras. O resultado foi assustador. O herói da classe média e
da elite tosca e medíocre surgiu como alguém que, afinal, é tosco e medíocre. Moro
é incapaz de passar mais de um minuto falando sobre qualquer assunto e muito
raramente consegue desenvolver uma frase com início, meio e fim. Gagueja e não
consegue olhar no olho de quem fez a pergunta. Não consegue citar um livro que
leu. Como ministro, mostra-se incapaz de dialogar com a classe política que
demonizou. Tudo que conseguiu até agora foi assinar o decreto que flexibilizou
a posse de armas, iniciar um estudo para diminuir os impostos sobre o cigarro e
lançar um pacote anticrimes de inclinação fascista, que basicamente libera o
assassinato de pessoas suspeitas (quase sempre pobres e negras) por forças
policiais.
Aparentemente a mídia tradicional
vai até o fim com o herói que ajudou a construir. O site The Intercept divulgou
uma série de conversas vazadas do “herói” em que fica basicamente claro que ele
manipulou todo o processo que gerou seu “heroísmo”. Foi tudo uma farsa.
Transformar o “herói” em vilão, no entanto, significará transformar o “vilão”
em herói, e isto é tudo que a parcela da população que clama por Moro não quer.
As conversas do Intercept mostram as relações mais do que indevidas que Moro
tem com membros da imprensa. Os cúmplices do espetáculo. Mesmo a Globo, com sua
postura crítica a Bolsonaro e em guerra com a Record, porta-voz oficial do
capitão fracassado, segue idealizando o ministro. Evitam entrevista-lo ou
perguntar coisas difícoeis. Já perceberam as limitações do “herói”. Hoje passei meia hora assistindo a Glbo News. O assunto era a dificuldade que a classe média carioca está encontrando para manter o ar condicionado. Um assunto leve num dia tenso. Algo que permite desligar o som da TV.
A Lava Jato é uma farsa. As
eleições de 2018 foram uma farsa. As pessoas vivem farsas e se identificam com
elas. O mal seduz com tolices para depois enganar. É uma frase de Macbeth. Em
quase todas as obras de Shakespeare são os vilões que se apegam ao moralismo.
Moro é clichê. Basta abrir um livro. Ou ligar o som da TV.
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