O Grande Inquisidor é o capítulo
mais famoso de Irmãos Karamazov, obra
derradeira da carreira de Fiodor Dostoievski. O capítulo é uma grande digressão
e não possui quase nenhuma ligação com o restante da obra. É comum inclusive
encontra-lo nas coletâneas de contos russos lançadas por aqui, tornou-se quase
que uma parte separada da obra que a contém. Quem praticamente narra o capítulo
é Ivan, um dos três irmãos que dão título à obra e narra-se os efeitos de uma
possível volta de Jesus ao mundo dos homens. Preocupada com o que isto pode
acarretar, a Igreja logo o captura e o condena à morte. O Inquisidor vai então
conversar com o condenado e explica o motivo de sua condenação. Diz o árbitro a
Jesus que a principal função da existência da ideia divina e de seu filho é o
controle que é exercido pela Igreja, detentora digamos que do monopólio dos
direitos sobre a palavra divina. Uma volta de Jesus significaria, portanto, a
quebra deste controle e causaria um caos social, com a destruição da
instituição capaz de controlar e organizar a humanidade. Jesus acompanha toda a
fala do Inquisidor em silêncio e com um sorriso. Há diferentes interpretações
para este silêncio. É possível se acreditar que há uma anuência entre Jesus e
seu algoz. No final, fica a reflexão, foi Deus que inventou o homem à sua
imagem e semelhança ou foi o homem que inventou Deus à sua imagem e semelhança?
São os homens que vieram à terra para atender os desejos de Deus ou é Deus que
existe para atender aos interesses humanos?
Dostoievski sabia que Irmãos Karamazov seria sua última obra e
a utiliza também para fazer um balanço reflexivo sobre sua existência. Cada
irmão representa uma fase do autor. Dimitri, o mais velho, representa sua
juventude, um personagem emotivo, quase um jovem irresponsável. Ivan, o irmão
do meio, é o autor numa fase adulta mais madura, extremamente racional e amante
das ciências. Aleksei, o mais jovem, representa a fase final da vida do autor,
em que ele se entregou a fé cristã com devoção. Os três passam a obra em choque
com o grande vilão da história, o pai Fiodor, que não à toa tem o nome de
Dostoievski. Todos os defeitos possíveis e imagináveis do autor e de qualquer
ser humano são encontrados no pai Karamazov. Não há na história da literatura
mundial um ser mais mesquinho, egocêntrico, vaidoso, egoísta, sarcástico e
vingativo do que o Deus do Velho Testamento. O Deus que vê tudo e está em todos
os lugares te julgando, que criou uma lista de Dez Mandamentos que devem ser
cumpridos e que, caso não sejam cumpridos, resultarão em punição eterna em um
lugar que pega fogo e cheira a enxofre. Um Deus que manda seus filhos à morte
em guerras pelo Seu nome e que chega ao cúmulo de exigir de um pai o sacrifício
do próprio filho apenas para ver se aquele realmente está disposto a tudo para
provar sua submissão. Em outras palavras, um Deus criado à imagem e semelhança
dos homens que o veneram. Fiodor surge quase como um Deus cristão na obra e
cada filho enfrenta esta divindade de uma forma. Dimitri, o irracional, busca
sempre o choque. Ivan, o racional, busca negá-lo. Alioucha, o religioso, busca
compreender a ele e a todos.
Não tenho a pretensão de achar
que alguém vá ler Irmãos Karamazov a
partir deste texto. Trata-se de um livro de 900 páginas e nas primeiras 300
páginas basicamente nada acontece. É literatura russa escrita no século XIX, um
momento em que a literatura era basicamente uma das únicas formas de
entretenimento realmente disponíveis e em que as pessoas tinham tempo para a
leitura. Digo isto porque darei alguns “spoilers” da obra agora. Fiodor é
assassinado e todos os indícios apontam Dimitri como autor do crime. Em um dado
momento, descobrimos que o assassino na verdade é Smerdiakov, apresentado na
obra como possível filho bastardo de Fiodor, fruto de um possível estupro do
pai Karamazov em uma antiga funcionária com problemas mentais. Digo “possível”
para os dois atos porque a obra não explicita se a situação é verdadeira ou
não. Smerdiakov pratica o crime a partir de uma conversa com Ivan, o racional,
em que o segundo irmão Karamazov questiona a ideia de culpa e diz que a
racionalidade exige atitudes que enfrentem qualquer tipo de moralismo. Grandes
homens são capazes de matar, argumenta Ivan, de certa forma argumentando com
Rodion Raskolnikov, protagonista de Crime
e Castigo. Smerdiakov se suicida após confessar seu crime a Ivan. Sem
conseguir provar a inocência do irmão e vivendo o remorso do assassinato
ocorrido por sua influência, Ivan enlouquece. Dimitri termina a obra preso pelo
crime que não cometeu, principalmente graças ao trabalho da acusação e o único
que consegue encontrar alguma paz no final é Alioucha, salvo pela fé e pela
capacidade de compreensão que ela traz.
O evento-chave da vida de
Dostoievski, e portanto de sua obra, é a prisão. O autor foi preso na metade do
século XIX, no ápice da sua juventude, por participar de grupos liberais. Foi
condenado à morte por conspirar contra o czar e chegou a ser posto à frente do
pelotão que iria fuzilá-lo. O czar, porém, havia mudado de ideia e só queria na
verdade “pregar uma peça”, dar um susto nos condenados. Nada mais similar ao
Deus do Novo Testamento, não? No fundo, o objetivo de todo regime autoritário é
representar na Terra este Deus antigo, seja se colocando como representante
Dele na Terra, seja o substituindo. Não à toa vemos a aliança entre o atual
regime autoritário brasileiro e as igrejas evangélicas, por exemplo. Pois bem,
foi a experiência na cadeia que transformou Dostoievski de Ivan em Alioucha.
Esta experiência, aliás, é narrada pelo autor no livro Memória da Casa dos Mortos, possivelmente um dos livros mais
tristes já escritos.
Os dois grandes clássicos do
autor russo vem desta fase pós-cadeia, sempre tendo a ideia de erro e redenção.
Em Crime e Castigo, a redenção para o
maior dos pecados vem através do amor. Rodion Raskolnikov mata para conquistar
a grandeza, quer ser como Napoleão, mas tudo o que encontra é a culpa. O
remorso o corrói e apenas o amor incondicional de Sonia é capaz de salva-lo. Em
Irmãos Karamazov temos o conhecimento
levando à loucura e apenas a compreensão levando à salvação. Se o pai Fiodor
representa o Deus maligno do Velho Testamento, Alioucha representa a caridade
divina do Novo Testamento. Este personagem não julga, não pune, apenas
compreende. Todos encontram nele o apoio nos inúmeros percalços que a vida
traz, culminando no extraordinário último capítulo em que o enterro de um
personagem infantil leva os personagens a uma celebração da vida. É de certa
forma o autor se preparando para seu fim e encontrando em Alioucha a sua calma
derradeira.
O homem não criou apenas Deus a
sua imagem e semelhança. Quase todas as crenças e mitos foram criados desta
forma. Por trás de todo mito há um projeto de poder, alguma forma de se tentar
justificar uma exploração. A principal função da religião é o controle e a
opressão. O Ocidente se moldou com a ideia de que existe um homem invisível,
que enxerga tudo que você faz, que sabe o que você pensa, ao qual você deve ser
submisso e obediente sem questionamentos. Todo sistema explorador e opressor no
Ocidente utiliza o cristianismo como base. É assim na família, na escola, no
emprego e em quaisquer outros locais. A fé aliada à cobiça levou o ser humano
aos maiores crimes de sua história. Os espanhóis dispostos a buscar ouro e
prata executaram índios com a justificativa de salvar suas almas para o Deus
que inventaram. Os alemães buscando recursos para sua guerra total praticamente
eliminaram um povo do continente europeu porque estes haviam matado o filho
deste mesmo Deus. “In God We Trust” está escrito nas notas de dólar usadas para
a construção de armas que são jogadas em países miseráveis do Oriente Médio.
Não há sistema autoritário que
funcione sem algum tipo de crença religiosa ou baseada nela. E a aposta dos
atuais regimes que vem dominando o chamado Ocidente é no Deus do Velho
Testamento. Onde há autoritarismo há Bíblia. Não há espaço para compreensão e
tudo vale para as figuras que conseguiram o patamar divino. A fé que seus
seguidores têm em seus ídolos divinos é cega. Não foi Deus que criou o homem, e
sim o inverso. O mesmo serve para qualquer figura que se aproveitando de
poderes míticos obtém algum tipo de poder. Não foi Hitler que criou a Alemanha
nazista, foi a Alemanha daquele período que criou condições para que um monstro
daqueles aparecesse. É a sociedade que pede um monstro que coloque em prática
os planos que, em certa medida, vem desde o Velho Testamento.
Somos desde cedo acostumados à
ideia de que o autoritarismo é uma coisa natural. Não à toa que a maior parte
dos regimes autoritários é tão apegada à noção de família, apresentando-se como
suas defensoras. Elas buscam na instituição mais antiga e a qual somos mais
apegados as justificativas para seus projetos. Afinal, quem vai ser contra
defender a família? O que estes governos propõem no fundo é a extensão do
aparato autoritário familiar para o Estado, tendo o grande líder o papel de
“pai” desta grande família. Bolsonaro, o grande símbolo de união entre discurso
religioso e interesse financeiro do novo milênio, cortou todos os ministérios
que pôde, mas criou o da família. O Deus do Velho Testamento, base intelectual
destes regimes, nada mais é do que o pai enérgico que pune.
O surgimento da ideia de estado
democrático de direito na sociedade moderna surge ao mesmo tempo em que se
pretende tirar da religião o poder de comando. Liberdade e cristianismo não
andam lado-a-lado. O Deus cristão te quer obediente à sua invisibilidade. A era
de ouro do cristianismo foi o feudalismo, em que o papa e o senhor feudal eram
literalmente donos da vida dos servos. A era de ouro do cristianismo é a era da
escuridão. Quando Montesquieu desenhou a separação de poderes, ele nada mais
fez do que quebrar a Santíssima Trindade. Deus é o pai, o filho e o Espírito
Santo porque legisla, julga e executa. Separar aquele que legisla daquele que
julga e daquele que executa tem exatamente a função de quebrar o laço divino
entre poder na vida terrena e a figura divina. Toda figura autoritária tem como
objetivo juntar estes três poderes novamente.
É muito comum o apelo que figuras
da Lava Jato fazem à Bíblia. Na semana passada, o juiz Marcelo Bretas
questionou Montesquieu como idealizador da separação dos três poderes. Disse o
Moro carioca: “A teoria da separação dos poderes foi mesmo idealizada por
Montesquieu? Veja o que o profeta Isaías escrevera aprox. 2.500 anos antes dele
(por volta de 750 AC): 'Porque o Senhor é o nosso juiz; o Senhor é o nosso
legislador; o Senhor é o nosso rei; ele nos salvará.' (Isaías 33:22)”. Não vou
entrar no mérito da assustadora incapacidade que um juiz de direito tem de
interpretar um texto. Ser capaz de ler e entender o que está lendo é a
qualidade básica de um juiz e Bretas não é capaz de entender algo que um
pré-adolescente alfabetizado consegue. O que importa aqui é ver o uso explícito
da religião por parte de um magistrado e a forma como ele enxerga no
autoritarismo do Deus do Velho Testamento o tipo de governo ideal, e não na
Constituição Liberal ou Social-Democrata. O mesmo Bretas já disse em entrevista
que o livro que para ele a Bíblia é mais importante em seus julgamentos do que
a Constituição. Bretas está longe de ser a exceção na Lava Jato. Deltan
Dallagnol se apresentava no Twitter como um temente a Deus formado em Harvard.
Com os escândalos de pessoas falsificando a presença em cursos de Harvard, o
procurador resolveu apagar esta parte.
Para o Deus do Velho Testamento
não há espaço para compreensão, apenas para julgamento. Embora este Deus seja
onipresente, onipotente e onisciente, seus súditos acreditam que sua função na
vida terrena é ajudar este Deus Todo Poderoso no Seu controle. Estão o tempo
todo preocupados com aquilo que a outra pessoa faz. Estão prontas para
denunciar. Para o Novo Testamento há apenas um crime quase imperdoável, a
delação. A figura mais difícil de se perdoar na fábula bíblica é Judas. Para os
amantes do Velho Testamento, porém, a delação é quase uma obrigação na sua
relação de submissão a Deus e àqueles que eles julgam serem seus representantes
na Terra.
Deus é uma figura invisível, mas
que está em todos os lugares, vê tudo que você vê, sabe tudo que você pensa,
sente tudo que você sente e que vai te punir dolorosamente a cada erro.
Substitua a palavra Deus pela palavra mercado e você entenderá o fanatismo que
as pessoas que nele e por ele trabalham sentem. Do mesmo jeito que o crente
coloca o interesse da figura mítica do Deus do Velho Testamento acima de tudo,
a pessoa do mercado coloca o interesse da sua versão de Deus acima de qualquer
coisa. Não há problemas em se aliar, por exemplo, a uma figura que prega a
execução de rivais políticos, a perseguição a pessoas de diferentes opções
sexuais, o armamento da população, o racismo, o machismo e a ignorância em
todos os sentidos. O mercado sempre atuou lado-a-lado da morte em nome de Deus.
As Cruzadas abriram um novo mercado executando “infiéis”. A colonização nas
Américas escravizou em nome do Senhor. No Brasil atual, vale tudo pela
privatização. Os dois interesses se encontram na Reforma da Previdência. O
mercado ganha a confiança dos investidores internacionais e novos clientes para
o setor de previdência privada. Em troca, os seguidores do Deus cristão ganham
a possibilidade de ocupar seis dos onze cargos no STF, com a mudança de idade
da aposentadoria dos juízes deste órgão de 75 para 70 anos. O caminho está
aberto para que a palavra de Deus substitua a Constituição.
Moro mentiu, fraudou e perseguiu.
Manipulou uma eleição. Nada disso incomoda a bancada evangélica, que declarou
apoio incondicional ao ministro. Identificam-se com o ministro, afinal. O que
Moro fez nada mais foi do que levar ao centro do poder as mesmas táticas que
fizeram a riqueza de boa parte dos pastores que hoje o apoiam. E, sim, podemos
afirmar também que ele usa as mesmas táticas do Deus do Velho Testamento. O
mesmo homem que criou Deus para atender seus interesses, também cria na
sociedade moderna os seus mitos. Brasil acima de tudo. America’s first.
Deutschland über alles. Deus acima de todos.
Dostoievski achou o caminho da
salvação na compreensão. Sua versão jovem termina presa. Sua versão racional
enlouquece. O conhecimento não lida bem com o mundo moderno. É difícil ver o
que está acontecendo por aqui e conviver com isto sabendo o que está acontecendo. O único que se
salva é aquele que compreende sem julgar. Para conseguir chegar a este nível,
porém, Dostoievski precisou chegar ao fundo do poço. Enxergar a morte de perto
e voltar para o mundo terreno. Ressuscitar no terceiro dia. Para ressuscitar é
preciso chegar até o fim. É para lá que caminhamos.
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