terça-feira, 18 de junho de 2019

Dostoievski, o Deus do Velho Testamento e o autoritarismo bíblico do séc. 21



O Grande Inquisidor é o capítulo mais famoso de Irmãos Karamazov, obra derradeira da carreira de Fiodor Dostoievski. O capítulo é uma grande digressão e não possui quase nenhuma ligação com o restante da obra. É comum inclusive encontra-lo nas coletâneas de contos russos lançadas por aqui, tornou-se quase que uma parte separada da obra que a contém. Quem praticamente narra o capítulo é Ivan, um dos três irmãos que dão título à obra e narra-se os efeitos de uma possível volta de Jesus ao mundo dos homens. Preocupada com o que isto pode acarretar, a Igreja logo o captura e o condena à morte. O Inquisidor vai então conversar com o condenado e explica o motivo de sua condenação. Diz o árbitro a Jesus que a principal função da existência da ideia divina e de seu filho é o controle que é exercido pela Igreja, detentora digamos que do monopólio dos direitos sobre a palavra divina. Uma volta de Jesus significaria, portanto, a quebra deste controle e causaria um caos social, com a destruição da instituição capaz de controlar e organizar a humanidade. Jesus acompanha toda a fala do Inquisidor em silêncio e com um sorriso. Há diferentes interpretações para este silêncio. É possível se acreditar que há uma anuência entre Jesus e seu algoz. No final, fica a reflexão, foi Deus que inventou o homem à sua imagem e semelhança ou foi o homem que inventou Deus à sua imagem e semelhança? São os homens que vieram à terra para atender os desejos de Deus ou é Deus que existe para atender aos interesses humanos?
Dostoievski sabia que Irmãos Karamazov seria sua última obra e a utiliza também para fazer um balanço reflexivo sobre sua existência. Cada irmão representa uma fase do autor. Dimitri, o mais velho, representa sua juventude, um personagem emotivo, quase um jovem irresponsável. Ivan, o irmão do meio, é o autor numa fase adulta mais madura, extremamente racional e amante das ciências. Aleksei, o mais jovem, representa a fase final da vida do autor, em que ele se entregou a fé cristã com devoção. Os três passam a obra em choque com o grande vilão da história, o pai Fiodor, que não à toa tem o nome de Dostoievski. Todos os defeitos possíveis e imagináveis do autor e de qualquer ser humano são encontrados no pai Karamazov. Não há na história da literatura mundial um ser mais mesquinho, egocêntrico, vaidoso, egoísta, sarcástico e vingativo do que o Deus do Velho Testamento. O Deus que vê tudo e está em todos os lugares te julgando, que criou uma lista de Dez Mandamentos que devem ser cumpridos e que, caso não sejam cumpridos, resultarão em punição eterna em um lugar que pega fogo e cheira a enxofre. Um Deus que manda seus filhos à morte em guerras pelo Seu nome e que chega ao cúmulo de exigir de um pai o sacrifício do próprio filho apenas para ver se aquele realmente está disposto a tudo para provar sua submissão. Em outras palavras, um Deus criado à imagem e semelhança dos homens que o veneram. Fiodor surge quase como um Deus cristão na obra e cada filho enfrenta esta divindade de uma forma. Dimitri, o irracional, busca sempre o choque. Ivan, o racional, busca negá-lo. Alioucha, o religioso, busca compreender a ele e a todos.
Não tenho a pretensão de achar que alguém vá ler Irmãos Karamazov a partir deste texto. Trata-se de um livro de 900 páginas e nas primeiras 300 páginas basicamente nada acontece. É literatura russa escrita no século XIX, um momento em que a literatura era basicamente uma das únicas formas de entretenimento realmente disponíveis e em que as pessoas tinham tempo para a leitura. Digo isto porque darei alguns “spoilers” da obra agora. Fiodor é assassinado e todos os indícios apontam Dimitri como autor do crime. Em um dado momento, descobrimos que o assassino na verdade é Smerdiakov, apresentado na obra como possível filho bastardo de Fiodor, fruto de um possível estupro do pai Karamazov em uma antiga funcionária com problemas mentais. Digo “possível” para os dois atos porque a obra não explicita se a situação é verdadeira ou não. Smerdiakov pratica o crime a partir de uma conversa com Ivan, o racional, em que o segundo irmão Karamazov questiona a ideia de culpa e diz que a racionalidade exige atitudes que enfrentem qualquer tipo de moralismo. Grandes homens são capazes de matar, argumenta Ivan, de certa forma argumentando com Rodion Raskolnikov, protagonista de Crime e Castigo. Smerdiakov se suicida após confessar seu crime a Ivan. Sem conseguir provar a inocência do irmão e vivendo o remorso do assassinato ocorrido por sua influência, Ivan enlouquece. Dimitri termina a obra preso pelo crime que não cometeu, principalmente graças ao trabalho da acusação e o único que consegue encontrar alguma paz no final é Alioucha, salvo pela fé e pela capacidade de compreensão que ela traz.
O evento-chave da vida de Dostoievski, e portanto de sua obra, é a prisão. O autor foi preso na metade do século XIX, no ápice da sua juventude, por participar de grupos liberais. Foi condenado à morte por conspirar contra o czar e chegou a ser posto à frente do pelotão que iria fuzilá-lo. O czar, porém, havia mudado de ideia e só queria na verdade “pregar uma peça”, dar um susto nos condenados. Nada mais similar ao Deus do Novo Testamento, não? No fundo, o objetivo de todo regime autoritário é representar na Terra este Deus antigo, seja se colocando como representante Dele na Terra, seja o substituindo. Não à toa vemos a aliança entre o atual regime autoritário brasileiro e as igrejas evangélicas, por exemplo. Pois bem, foi a experiência na cadeia que transformou Dostoievski de Ivan em Alioucha. Esta experiência, aliás, é narrada pelo autor no livro Memória da Casa dos Mortos, possivelmente um dos livros mais tristes já escritos.
Os dois grandes clássicos do autor russo vem desta fase pós-cadeia, sempre tendo a ideia de erro e redenção. Em Crime e Castigo, a redenção para o maior dos pecados vem através do amor. Rodion Raskolnikov mata para conquistar a grandeza, quer ser como Napoleão, mas tudo o que encontra é a culpa. O remorso o corrói e apenas o amor incondicional de Sonia é capaz de salva-lo. Em Irmãos Karamazov temos o conhecimento levando à loucura e apenas a compreensão levando à salvação. Se o pai Fiodor representa o Deus maligno do Velho Testamento, Alioucha representa a caridade divina do Novo Testamento. Este personagem não julga, não pune, apenas compreende. Todos encontram nele o apoio nos inúmeros percalços que a vida traz, culminando no extraordinário último capítulo em que o enterro de um personagem infantil leva os personagens a uma celebração da vida. É de certa forma o autor se preparando para seu fim e encontrando em Alioucha a sua calma derradeira.
O homem não criou apenas Deus a sua imagem e semelhança. Quase todas as crenças e mitos foram criados desta forma. Por trás de todo mito há um projeto de poder, alguma forma de se tentar justificar uma exploração. A principal função da religião é o controle e a opressão. O Ocidente se moldou com a ideia de que existe um homem invisível, que enxerga tudo que você faz, que sabe o que você pensa, ao qual você deve ser submisso e obediente sem questionamentos. Todo sistema explorador e opressor no Ocidente utiliza o cristianismo como base. É assim na família, na escola, no emprego e em quaisquer outros locais. A fé aliada à cobiça levou o ser humano aos maiores crimes de sua história. Os espanhóis dispostos a buscar ouro e prata executaram índios com a justificativa de salvar suas almas para o Deus que inventaram. Os alemães buscando recursos para sua guerra total praticamente eliminaram um povo do continente europeu porque estes haviam matado o filho deste mesmo Deus. “In God We Trust” está escrito nas notas de dólar usadas para a construção de armas que são jogadas em países miseráveis do Oriente Médio.
Não há sistema autoritário que funcione sem algum tipo de crença religiosa ou baseada nela. E a aposta dos atuais regimes que vem dominando o chamado Ocidente é no Deus do Velho Testamento. Onde há autoritarismo há Bíblia. Não há espaço para compreensão e tudo vale para as figuras que conseguiram o patamar divino. A fé que seus seguidores têm em seus ídolos divinos é cega. Não foi Deus que criou o homem, e sim o inverso. O mesmo serve para qualquer figura que se aproveitando de poderes míticos obtém algum tipo de poder. Não foi Hitler que criou a Alemanha nazista, foi a Alemanha daquele período que criou condições para que um monstro daqueles aparecesse. É a sociedade que pede um monstro que coloque em prática os planos que, em certa medida, vem desde o Velho Testamento.
Somos desde cedo acostumados à ideia de que o autoritarismo é uma coisa natural. Não à toa que a maior parte dos regimes autoritários é tão apegada à noção de família, apresentando-se como suas defensoras. Elas buscam na instituição mais antiga e a qual somos mais apegados as justificativas para seus projetos. Afinal, quem vai ser contra defender a família? O que estes governos propõem no fundo é a extensão do aparato autoritário familiar para o Estado, tendo o grande líder o papel de “pai” desta grande família. Bolsonaro, o grande símbolo de união entre discurso religioso e interesse financeiro do novo milênio, cortou todos os ministérios que pôde, mas criou o da família. O Deus do Velho Testamento, base intelectual destes regimes, nada mais é do que o pai enérgico que pune. 
O surgimento da ideia de estado democrático de direito na sociedade moderna surge ao mesmo tempo em que se pretende tirar da religião o poder de comando. Liberdade e cristianismo não andam lado-a-lado. O Deus cristão te quer obediente à sua invisibilidade. A era de ouro do cristianismo foi o feudalismo, em que o papa e o senhor feudal eram literalmente donos da vida dos servos. A era de ouro do cristianismo é a era da escuridão. Quando Montesquieu desenhou a separação de poderes, ele nada mais fez do que quebrar a Santíssima Trindade. Deus é o pai, o filho e o Espírito Santo porque legisla, julga e executa. Separar aquele que legisla daquele que julga e daquele que executa tem exatamente a função de quebrar o laço divino entre poder na vida terrena e a figura divina. Toda figura autoritária tem como objetivo juntar estes três poderes novamente.
É muito comum o apelo que figuras da Lava Jato fazem à Bíblia. Na semana passada, o juiz Marcelo Bretas questionou Montesquieu como idealizador da separação dos três poderes. Disse o Moro carioca: “A teoria da separação dos poderes foi mesmo idealizada por Montesquieu? Veja o que o profeta Isaías escrevera aprox. 2.500 anos antes dele (por volta de 750 AC): 'Porque o Senhor é o nosso juiz; o Senhor é o nosso legislador; o Senhor é o nosso rei; ele nos salvará.' (Isaías 33:22)”. Não vou entrar no mérito da assustadora incapacidade que um juiz de direito tem de interpretar um texto. Ser capaz de ler e entender o que está lendo é a qualidade básica de um juiz e Bretas não é capaz de entender algo que um pré-adolescente alfabetizado consegue. O que importa aqui é ver o uso explícito da religião por parte de um magistrado e a forma como ele enxerga no autoritarismo do Deus do Velho Testamento o tipo de governo ideal, e não na Constituição Liberal ou Social-Democrata. O mesmo Bretas já disse em entrevista que o livro que para ele a Bíblia é mais importante em seus julgamentos do que a Constituição. Bretas está longe de ser a exceção na Lava Jato. Deltan Dallagnol se apresentava no Twitter como um temente a Deus formado em Harvard. Com os escândalos de pessoas falsificando a presença em cursos de Harvard, o procurador resolveu apagar esta parte.
Para o Deus do Velho Testamento não há espaço para compreensão, apenas para julgamento. Embora este Deus seja onipresente, onipotente e onisciente, seus súditos acreditam que sua função na vida terrena é ajudar este Deus Todo Poderoso no Seu controle. Estão o tempo todo preocupados com aquilo que a outra pessoa faz. Estão prontas para denunciar. Para o Novo Testamento há apenas um crime quase imperdoável, a delação. A figura mais difícil de se perdoar na fábula bíblica é Judas. Para os amantes do Velho Testamento, porém, a delação é quase uma obrigação na sua relação de submissão a Deus e àqueles que eles julgam serem seus representantes na Terra.
Deus é uma figura invisível, mas que está em todos os lugares, vê tudo que você vê, sabe tudo que você pensa, sente tudo que você sente e que vai te punir dolorosamente a cada erro. Substitua a palavra Deus pela palavra mercado e você entenderá o fanatismo que as pessoas que nele e por ele trabalham sentem. Do mesmo jeito que o crente coloca o interesse da figura mítica do Deus do Velho Testamento acima de tudo, a pessoa do mercado coloca o interesse da sua versão de Deus acima de qualquer coisa. Não há problemas em se aliar, por exemplo, a uma figura que prega a execução de rivais políticos, a perseguição a pessoas de diferentes opções sexuais, o armamento da população, o racismo, o machismo e a ignorância em todos os sentidos. O mercado sempre atuou lado-a-lado da morte em nome de Deus. As Cruzadas abriram um novo mercado executando “infiéis”. A colonização nas Américas escravizou em nome do Senhor. No Brasil atual, vale tudo pela privatização. Os dois interesses se encontram na Reforma da Previdência. O mercado ganha a confiança dos investidores internacionais e novos clientes para o setor de previdência privada. Em troca, os seguidores do Deus cristão ganham a possibilidade de ocupar seis dos onze cargos no STF, com a mudança de idade da aposentadoria dos juízes deste órgão de 75 para 70 anos. O caminho está aberto para que a palavra de Deus substitua a Constituição.
Moro mentiu, fraudou e perseguiu. Manipulou uma eleição. Nada disso incomoda a bancada evangélica, que declarou apoio incondicional ao ministro. Identificam-se com o ministro, afinal. O que Moro fez nada mais foi do que levar ao centro do poder as mesmas táticas que fizeram a riqueza de boa parte dos pastores que hoje o apoiam. E, sim, podemos afirmar também que ele usa as mesmas táticas do Deus do Velho Testamento. O mesmo homem que criou Deus para atender seus interesses, também cria na sociedade moderna os seus mitos. Brasil acima de tudo. America’s first. Deutschland über alles. Deus acima de todos.
Dostoievski achou o caminho da salvação na compreensão. Sua versão jovem termina presa. Sua versão racional enlouquece. O conhecimento não lida bem com o mundo moderno. É difícil ver o que está acontecendo por aqui e conviver com isto sabendo o que está acontecendo. O único que se salva é aquele que compreende sem julgar. Para conseguir chegar a este nível, porém, Dostoievski precisou chegar ao fundo do poço. Enxergar a morte de perto e voltar para o mundo terreno. Ressuscitar no terceiro dia. Para ressuscitar é preciso chegar até o fim. É para lá que caminhamos.

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