Toda vez que ocorre um escândalo
com um destes youtubers, eu descubro que estou ficando velho. Nunca ouvi falar
de nenhum. Para falar a verdade, não sei nem muito bem o que eles fazem. Posso
estar errado, mas a impressão que tenho é que eles fazem vídeos meios sobre
qualquer coisa que, por algum motivo que desconheço, fazem sucesso. Júlio
Cocielo é um deles. Depois do seu escândalo de racismo, ele atingiu a minha
bolha. Fui assistir algum vídeo dele, consegui por um minuto. Ele tinha (acho
que tem ainda) um trilhão de visualizadores e patrocínios de marcas
gigantescas, tipo Coca-Cola e McDonalds. Vi outros tweets dele e,
aparentemente, ele é uma pessoa muito escrota. Faz anos que ele é racista, e
ninguém, acho, falava nada.
Na semana passada, terminei de
ler A Marca Humana, de Philip Roth.
Trata-se, a meu ver, de uma das melhores obras sobre o impacto do racismo na
sociedade americana. Conta a história de Coleman Silk, renomado professor universitário
de letras clássicas que vê a carreira entrar em colapso após uma acusação de
racismo. Durante uma aula, ele usa o termo “spooks” para se referir a um aluno
que não comparece com frequência às aulas. “Spooks”, descobri no livro, era um
termo utilizado nos anos 60 como gíria para fantasma, mas que, no mesmo
período, ganhou uma conotação racista no Sul dos EUA. Negando que tenha usado o
termo com esta conotação, uma vez que não sabia a cor da pele do aluno que não aparecia nas aulas, Coleman é afastado da faculdade e vê sua esposa ter
um ataque cardíaco e morrer durante o processo de expulsão. Envolve-se, então, com uma faxineira
analfabeta da mesma universidade, causando um novo escândalo no meio
universitário e perdendo o contato com os filhos. Um pouco antes da metade do
livro, descobrimos que Coleman possui um segredo. Ele é negro. Com a pele mais
clara do que o restante da família, resolve se definir como branco num
formulário para ingresso na Marinha (à época ainda não integrada) e mantêm este
segredo até o final da vida. No final do livro, quando uma irmã dele aparece
para seu funeral (Ernestine), ficamos sabendo que a prática era comum entre
pessoas negras de pele mais clara nos EUA antes do movimento pelos direitos
civis. Perguntada pelo autor sobre qual o julgamento que ela faz da atitude do
irmão, Ernestine diz que não era o momento de julgar. Uma personagem muito
importante do livro é Delphine Roux, professora jovem cuja ação é fundamental
no processo de expulsão de Coleman da universidade. Em um dado momento, esta professora começa a enviar cartas anônimas para Coleman o ameaçando em decorrência do relacionamento dele com a faxineira. Mais para a frente,
Delphine, a jovem liberal, decide enviar uma carta para um jornal em busca de
um namorado e tenta encontrar algum jeito de deixar claro de forma implícita
que está procurando alguém branco. Como as marcas que hoje se afastam do youtuber, Delphine só combate o racismo quando isto é de alguma forma útil para sua carreira. O afastamento de Coleman foi fundamental para sua ascensão na universidade.
O youtuber Julio é racista e
somos uma sociedade de Delphines. Somos expostos diariamente a situações
racistas e nada fazemos. O racismo silencioso. A atual novela das oito se passa
na Bahia, onde 80% da população é negra. Na novela, quase todos os atores são
brancos. Em quase todos os bares que vou, os clientes são brancos e os
atendentes são negros. Nos lugares em que trabalhei, a maioria absoluta dos
funcionários eram brancos, ao mesmo tempo em que a inscrição na parede de uma
delas era “valorizamos a diversidade”. Quase toda vez que eu tentava abordar
este assunto com meus colegas de trabalho brancos, eu era rechaçado. “Estava
viajando.” Na minha turma de faculdade (pré-cotas), se não me engano, havia um
aluno negro, numa turma de noventa. A maioria absoluta dos meus colegas brancos
é contra as cotas. Costumam usar o exemplo deste um colega negro para dizer que
“é possível”.
Brancos em geral adoram o exemplo
do “um negro que consegue” para justificar a ausência de políticas que diminuam
a gigantesca e visível desigualdade racial no país. O sucesso de Fernando
Holiday entre eleitores brancos reacionários está aí para provar isto. De certa
forma, tentam naturalizar o fato de que uma pessoa deve se esforçar mais do que
a outra para conseguir a mesma coisa. Um negro dizendo que racismo é “frescura”
é fundamental para justificar a situação triste que vivemos e serve como um bom
argumento de autoridade para quem defende a sua manutenção.
Várias personalidades já
apareceram para defender o youtuber Júlio do que chamam de “linchamento”.
Danilo Gentili e Rafinha Bastos são dois exemplos. Racismo é um crime
inafiançável segundo nossa Constituição. A lei não pegou. O brasileiro em geral
não reconhece o racismo como crime. “É uma brincadeira”. Ninguém pede prisão
para William Waack. O máximo que acontece com pessoas que cometem este tipo de
crime é perder emprego ou patrocinadores. A emissora que demitiu Waack é a
mesma, aliás, que faz uma novela na Bahia com atores negros. E que possui
atualmente apenas um apresentador negro em toda sua programação atual. Alexandre
Garcia, um dos poucos jornalistas que, como Waack tinha, tem liberdade quase
total de opinar nos telejornais da Globo, disse durante o ocaso do governo
Dilma que a gestão petista havia “inventado” o conceito de raça no Brasil,
através do sistema de cotas. Disse isto sobre um país que por mais de 300 anos
conviveu diretamente com a escravidão. Não houve nenhuma retratação oficial da
emissora. O sistema de cotas que permite que as universidades sejam hoje,
felizmente, lugares muito mais diversos do que aquelas da época em que estudei.
Raças não existem biologicamente.
Mas existem historicamente. A desigualdade racial no Brasil é gritante e
visível. Para combatê-la, é fundamental que a parcela branca da população enxergue
os privilégios históricos decorrentes de sua cor de pele. É necessário abrir os
olhos e ser capaz de enxergar minimamente a sociedade que nos cerca. É
fundamental que a sociedade esteja a disposta a corrigir no presente os erros
do passado. Uma sociedade que não o faz, apenas perpetua seus erros. Para que
isto ocorra, precisamos combater com força não apenas Júlio Cocielo, mas também
Alexandre Garcia. Exigir que o crime inafiançável seja tratado como crime
inafiançável. E nos esforçarmos para não sermos como Delphine Roux.
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