terça-feira, 17 de julho de 2018

Quando ondas autoritárias se tornam irreversíveis?




Um debate entre Bill Maher e Michael Moore na TV americana me trouxe uma possível reflexão sobre o Brasil. Debatendo a situação americana e os possíveis reflexos que o governo Trump pode ter para o futuro da democracia americana, o cineasta se perguntou qual foi o momento em que ficou claro que não havia mais volta. Ditaduras surgem como parte de um processo, mas algumas vezes há marcos que tiram suas máscaras. O incêndio do Reichstag, o assassinato de Sergei Kirov e o AI5 podem ser três exemplos. A reflexão que tive sobre o Brasil atual é se isto já aconteceu ou se ainda há alguma chance de volta.
As instituições brasileiras estão em frangalhos. O grande ídolo de uma parcela significativa da população é um juiz autoritário que sucessivas vezes desrespeita a lei. Sua idolatria com esta parcela da população só aumenta cada vez que ele toma estas atitudes. O maior líder popular e democrático dos últimos 40 anos está preso num processo fajuto de uma reforma que iria acontecer num apartamento que ele não quis comprar. Numa eleição sem ele, o líder nas pesquisas é um candidato com claras tendências fascistas, que defende entre outras coisas a prática de torturas, a violência contra homossexuais e a criminalização de movimentos sociais.  De certa forma nos acostumamos com isto. Ninguém parece muito chocado com o fato de um candidato destes ser líder e ter chance de ganhar.
A explosão deste movimento reacionário do Brasil se deu no dia do segundo turno em 2014. A reeleição de Dilma acordou monstros. Assim que sua vitória foi anunciada, especialmente em São Paulo, muitas pessoas usaram redes sociais para atacar a região Nordeste. Uma delas foi Coronel Telhada, deputado estadual mais votado pelo PSDB no Estado. Uma semana depois da eleição, um recém-fundado grupo de jovens que se dizem liberais, o MBL, marcou a primeira passeata pedindo o impeachment da presidenta que nem havia tomado posse ainda. O líder deste movimento, Kim Kataguiri, ganhou um espaço completamente desproporcional à sua importância na mídia, recebendo uma coluna na Folha de São Paulo e participando de diversos programas de TV para expor suas “ideias”. No segundo mês do segundo governo Dilma, a Câmara dos Deputados elegia Eduardo Cunha, um notório ladrão com pitadas de fanatismo religioso, para sua presidência. Em março, setenta e cinco dias após a posse de Dilma, uma manifestação gigantesca aconteceu em São Paulo. Apoiada pela mídia, que a anunciava a cada meia hora, e liderada pelo MBL, mais de um milhão de pessoas saíram às ruas na maior cidade do país. Diversas faixas de “Intervenção Militar Já”, “Volta da Monarquia” e até símbolos nazistas eram vistos e aceitos passivamente pela multidão, que provavelmente agrediria alguém que lá aparecesse com uma bandeira petista. O PT já era visto como uma ameaça maior por esta turma do que uma ditadura. Uma advogada obscura deste estado, ultra-direitista e fanática religiosa,  Janaína Paschoal, foi contratada pelo partido derrotado em 2014 (o PSDB de Coronel Telhada) para achar algum motivo que justificasse a abertura de um processo de impeachment. Descobriu uma possível assinatura de um decreto de gastos suplementares sem a aprovação do Congresso. Foi suficiente. Com a aprovação da abertura de processo pelo deputado ladrão e fanático religioso, a advogada fanática religiosa conseguiu levar a frente seu processo. Uma nova passeata foi marcada para março de 2016. Duas semanas antes desta passeata, o juiz Sérgio Moro liderou uma condução coercitiva do ex-presidente Lula. Seria a primeira vez que este juiz descumpriria abertamente a lei, uma vez que o ex-presidente não havia se recusado a atender a Justiça e não poderia ser vítima de uma condução coercitiva naquele momento. Preocupado com a perseguição ao ex-presidente e tentando salvar seu governo, a presidenta Dilma nomeou Lula para o ministério da Casa Civil. Revoltado com o fato de perder o caso que o estava tornando famoso, Moro simplesmente liberou na mídia várias conversas que havia grampeado do ex-presidente, entre elas uma dele com a presidenta, realizada após Lula já ter foro especial. Seria a segunda vez que o juiz descumpriria a lei. No final de semana da passeata, a revista Isto É trazia em sua capa a delação de Delcídio Amaral, em que ele “contava tudo”. Mais de um ano depois, provou-se que o “tudo” delatado pelo ex-senador era mentira, mas ninguém se importou com isto. A passeata foi um sucesso. Novamente mais de um milhão de pessoas em SP, entre elas gente pedindo intervenção militar, etc. A sessão do impeachment foi uma tortura. Deus, família e paranoias se destacaram nos discursos dos deputados.
Após o afastamento de Dilma, a segunda etapa seria impedir a candidatura de Lula. No final de 2016, o Supremo alterou a interpretação da Constituição para permitir que um juiz de primeira instância prendesse uma pessoa após sua condenação em segunda instância, mesmo que a Constituição diga o contrário. No primeiro semestre de 2017, numa acusação sem provas e baseada em delações obtidas a partir de prisões preventivas ilegais, Moro condenou Lula. Num processo com velocidade muito maior do que os demais, o Tribunal da Segunda Instância condenou também o ex-presidente, de forma unânime e com a mesma pena. A questão de ser unânime e com a mesma pena é fundamental neste caso, uma vez que qualquer divergência entre os magistrados permitiria um novo recurso da defesa de Lula. Antes mesmo que esta defesa apresentasse qualquer tipo de recurso na segunda instância, Moro decretou a prisão de Lula, afastando assim o ex-presidente do processo eleitoral que ele lidera.
A força de Bolsonaro vem deste processo. O fascismo destrói instituições. As instituições brasileiras não sobreviveram à onda paranoica e de ódio que derrubou uma presidenta incompetente, mas inocente, e prendeu o maior líder do país num processo farsesco, transformando o juiz que o conduziu em ídolo. Em algum momento, quando estivermos debatendo esta onda fascista no futuro, talvez encontremos, no caso brasileiro, o momento que Maher e Moore procuram quando debatem a situação americana.
Não é o meu caso. Há um dado pouco debatido no Brasil que é para mim a base para entendermos o que ocorre por aqui. Bolsonaro, mesmo no cenário com Lula, lidera entre os mais escolarizados. É o líder entre os que têm diploma de nível universitário. A educação no Brasil fracassou. Ao invés de formarmos pessoas dispostas a debater e melhorar o país, formamos uma elite egoísta, mesquinha e violenta. Pessoas mimadas que estão dispostas a tudo para ver suas vontades atendidas. A educação no Brasil se contenta em formar consumidores e não cidadãos. Pessoas que em geral não estão nem aí para valores democráticos. Há duas semanas, Bolsonaro foi aplaudido numa sessão com industriais ao dizer que transferiria o comando da economia a eles. Quem aplaude Bolsonaro por isso também aplaude o resto. A elite não se preocupa com o resto, até prefere um governo autoritário que tire do debate os “esquerdopatas que só enchem o saco”. Os que aplaudem Bolsonaro são os mesmos que aplaudem Moro. Talvez em algum destes aplausos esteja o momento-chave.

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