quarta-feira, 5 de setembro de 2018

A política e a ode à barbárie



Tudo aconteceu no dia 12 de maio deste ano, véspera do dia das mães. A policial Kátia da Silva Sartre participava de um evento em uma escola quando um bandido puxou uma arma anunciando um assalto. Kátia então puxou uma e atirou no bandido, que morreria um pouco depois. Não há dúvidas de que a policial fez o certo naquele momento, uma vez que agiu em legítima defesa. Isto, porém, não diminui o fato de que o que ocorreu foi uma tragédia.
Sociedades decentes tratam da forma mais decente possível mesmo as pessoas que agem da forma mais indecente. Mesmo cometendo um erro muito grave, o bandido morto ainda era um ser humano. O que se assistiu após sua morte foi um show de horrores. A mídia transmitia sem parar a imagem de sua morte, glorificando a atitude da policial que, segundo alguns apresentadores, deveria ser repetida e servir como exemplo para outros policiais. “Mate!”. No dia seguinte ao ato, da forma mais irresponsável possível, o governador Márcio França tentou obter ganhos políticos da tragédia. Foi até o Batalhão onde Kátia trabalha para realizar uma homenagem à policial. Chamou a mídia para isto e propôs uma bonificação à profissional. Expôs não apenas a policial a uma possível vingança, mas também falou onde ela trabalhava, indicando quem ela era áte onde trabalhava. Também incentivou mais policiais a agirem da mesma forma. Um verdadeiro urubu buscando ganhos pessoais numa tragédia que terminou com uma vida.
Pois bem, assistia eu o horário político na última quarta-feira quando me surpreendi com a imagem da tragédia. O PR, mesmo partido que tem como trunfo a candidatura de Tiririca, transmitiu sem cortes o momento em que uma vida era perdida. Em seguida, a policial Kátia apareceu, apresentando sua candidatura à deputada federal, dizendo basicamente que faria tudo novamente. O áudio do vídeo em que Kátia age contra o bandido havia sido refeito, de forma que a policial deixa mais claro o que falou ou lembra que falou no fatídico momento.
Sociedades caminham para a barbárie quando perdem gradualmente a humanidade. Vivemos um momento de glorificação da morte. Policiais não são mais vistos como agentes públicos que devem defender a ordem e usar a força apenas quando necessário (O que Kátia fez, aliás. Deixo mais uma vez claro que a policial agiu corretamente naquele caso, o problema é o que veio depois). Toda morte é uma tragédia, mesmo a daqueles que cometeram graves erros. Uma sociedade que se vangloria de uma morte como estas e repete à exaustão o vídeo em que ela ocorre, tendo algum tipo de prazer em assistir este tipo de coisa, tem sérios problemas. Kátia não chega perto de fazer nenhum tipo de proposta durante seu tempo no horário político. O objetivo é simplesmente obter ganho político da morte do bandido numa sociedade com medo e sedenta por sangue. Ganho para ela e para os outros políticos do PR, que pensam em chegar ao Congresso puxados pelos votos da tragédia. A propaganda de Kátia será intercalada com a de Tiririca nos próximos dias. Piada e tragédia andam juntos na sociedade do espetáculo. Paródia e sangue. Escárnio e barbárie.
Dois dos três principais candidatos ao governo do Estado têm policiais militares como vices. Policiais são provavelmente a classe mais vitimada pelo estado de guerra que vivemos. Pessoas em sua grande maioria que vem das classes com menor renda, enviadas para uma falsa guerra contra pessoas que normalmente são também de baixa renda para proteção de um Estado que não dá nenhum valor à vida destas pessoas. Os mesmos governadores que continuarão a pagar salários pífios para pessoas que arriscam suas vidas trazem postes fardados para simular preocupação com o que ocorre. No primeiro debate ao governo estadual, o mesmo Márcio França citou a homenagem que fez à policial como prova do compromisso que tem com segurança. À época, não citou o nome da profissional, provavelmente porque o esqueceu.
A exploração e glorificação da violência é um dos principais motivos da onda fascista que leva um candidato como Jair Bolsonaro a ter chances de vitória. O candidato segue ensinando crianças a fazerem sinais de armas com os dedos. Em carreata nesta semana, simulou estar com uma metralhadora dizendo que era necessário “metralhar a petralhada”. Um quarto dos brasileiros se mostra disposta a votar num candidato que diz isto. Que acha tortura algo admissível e que propõe um bônus financeiro para policiais que matem bandidos em confrontos. Vivemos um momento de ode à morte e de estímulo ao ódio.  Esta ode saiu das telinhas, onde a anos vem sendo estimulada por figuras como Datena, para as urnas. Não à toa, os partidos políticos sonham tanto em trazer o apresentador sedento por sangue para a política. Kátia é fruto de um país que se transformou numa tragédia e caminha rumo à barbárie. Fruto da espetacularização da violência. Fruto da falta de debate e reflexão sobre o assunto. Uma sociedade que glorifica a tragédia.



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