Na última terça-feira, o
candidato Jair Bolsonaro foi entrevistado pela bancada do JN. Questionado pelo
âncora William Bonner sobre a negação que faz do termo golpe para se referir ao
Golpe de 1964, Bolsonaro citou o apoio que o dono da emissora em que era
entrevistado deu ao mesmo golpe. O âncora não o rebateu, com medo de manchar a
imagem fictícia de democrata criada para o ex-patrão já falecido. O Brasil, em
geral, é indiferente à sua própria história e incapaz de analisar de forma mais
ampla seus próprios erros, para desta forma corrigi-los. A imagem da tragédia
do Museu Nacional do Rio sendo destruído pelas chamas é extremamente simbólica
disto. Nossa história é queimada diariamente pela indiferença.
“Uma sociedade que não conhece
sua história tende a repetir seus erros”. A frase, que sinceramente não sei se
está descrita aqui ao pé da letra, está escrita no Memorial de Auschwitz.
Impedir a repetição de erros é a principal função do trabalho histórico. O
grande evento da história do Brasil é, sem dúvida, a escravidão. Nenhum outro
evento foi tão importante na definição do funcionamento da nossa sociedade
quanto ela. A origem das nossas desigualdades e de como as nossas relações de
trabalhos foram desenvolvidas. Não há em SP nenhum museu dedicado
exclusivamente a este assunto. Dizia Joaquim Nabuco no final do séc. XIX que cada
brasileiro carregaria em sua pele as marcas deste período histórico, seja por
ter feito parte do grupo que escravizou, seja por fazer parte do grupo
escravizado. Completava ele que ao final da escravidão seria seguido um período
de ainda maior duração e de igual dificuldade, que seria o das consequências dela.
Uma sociedade hierarquizada e com pouquíssimas chances de ascensão social, que
ocorre basicamente através do esporte e da arte. A inumanidade terminou com a
Lei Áurea em 13/11/1888, mas foi substituída por outra, a do esquecimento. A
elite brasileira daquele momento, formada basicamente por grandes proprietários
de terra escravistas, cujos herdeiros representam boa parte da nossa elite até hoje, passou a trazer brancos europeus para a realização das
atividades braçais, com o objetivo de embranquecer a população. Tratavam-os,
porém, de forma semelhante ao que estavam acostumados durante a escravidão. Uma
elite preguiçosa, cuja riqueza vem exclusivamente da posse e criada com a
mentalidade escravista de que o trabalho só poderia ser obtido com o uso da
força. Foi para combater isto que surgiu a CLT, no final dos anos 1940. Um país
recém-saído da escravidão e tentando, pela primeira vez, dignificar minimamente
as relações de trabalho e botar algum tipo de coibição na forma como uma elite
ainda tratava aqueles responsáveis pelo trabalho. A mesma CLT que no ano
passado foi achincalhada por “especialistas” e “modernizada”. Hoje vemos
candidatos propondo a destruição final da CLT, opondo basicamente direitos e
empregos. Menos direitos para mais empregos, diz Bolsonaro. Coisa semelhante
diz Amoedo, do Partido “Novo”. Um país sem memória aceita propostas que tirem
do Estado sua função primordial, reconhecer e reparar injustiças e
desigualdades.
A história oficial do Brasil
basicamente apagou a questão negra após a Abolição. Abra qualquer livro de
história escolar e talvez o único momento em que ela é abordada será na Revolta
da Chibata. Poucos trabalhos históricos sobre este período saem do meio
acadêmico e chegam ao grande público. Tenho 34 anos e a primeira vez em que
visitei uma réplica de Senzala foi aos 32 anos, numa viagem para Ouro Preto. É
uma experiência duríssima e fundamental para entender o que aconteceu neste
país em boa parte da nossa história.
Além da escravidão, outro evento
que marca de forma inapagável nossa história é o genocídio. Não apenas contra o
povo negro, mas também contra o povo indígena, que foi basicamente exterminado
do nosso território. Temos em SP um gigantesco monumento em homenagem aos
genocidas em frente ao principal parque da cidade. Na véspera da última eleição
municipal, um grupo fez uma manifestação lembrando isto, pintando o monumento
de vermelho. Foram tachados de “depredadores do patrimônio público”. O palácio
onde mora o governador do Estado tem seu nome como uma referência ao grupo de
pessoas que praticaram este genocídio. Nenhum monumento às vítimas na cidade,
ao menos que eu conheça, de forma a lembrar que a nossa história foi feita à
base de assassinatos e correntes. O que existe é a uma tentativa de glorificar
os assassinos.
O Brasil queima sua história.
General Mourão, vice de Bolsonaro, disse que o brasileiro herdou “a indolência
do índio e a malandragem do africano”. É a mentalidade do assassino. Porque ao
não tratarmos o período de forma séria e ao não nos esforçarmos para corrigir
os enormes problemas sociais que estes erros causam, estamos sendo cúmplices
dos assassinatos.
O Brasil não teve uma comissão da
verdade para tratar dos crimes cometidos pelo Estado durante o Regime Militar,
tão defendido por Bolsonaro e Mourão. Nossa população é extremamente ignorante
sobre o assunto e cai em ladainhas do tipo “seu pai foi torturado?” para
diminuir o tamanho do estrago que foi aquilo. O mesmo General Mourão ameaçou um
golpe de Estado quando o Supremo julgava a legalidade da prisão em segunda
instância, cuja negação poderia soltar o ex-presidente Lula.
O maior inimigo da sociedade
atual é o fascismo. A forma como ele simplifica os problemas, dando soluções
fáceis e autoritárias para problemas complicados. O Brasil é um país que
historicamente lida mal com conflitos e acaba optando por uma via autoritária
todas as vezes em que eles são impostos. Os governos petistas foram os
primeiros, desde Vargas, a tratar com alguma seriedade as injustiças históricas
cometidas contra negros e índios. A política de cotas foi um primeiro e
importante passo. Uma boa parcela da elite não as aceita, considerando que o
governo petista “inventou” o conflito. Inventou o “nós contra eles”. A falta de
conhecimento histórico permite este tipo de discurso. Também permite chamar a crise atual de "pior crise da história". Em um país que teve escravidão, NADA será a maior crise da história, porque NADA foi pior do que aquilo.
Enfrentar o fascismo é a
principal missão da nossa geração. E a melhor forma de fazê-lo é através da
propagação de conhecimento. Através da verdade. A verdade é que a história do
Brasil é feita de exploração e sangue e todos somos frutos disto. O incêndio do
Museu no Rio é uma tragédia sem tamanhos. E é um símbolo de uma sociedade que
renega sua própria história.
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