quarta-feira, 26 de dezembro de 2018

IDEOLOGIA É A DOS OUTROS



A retórica bolsonariana foi o grande ponto diferencial dessas eleições. Embora com alguma dificuldade na eloquência e no raciocínio, por algum motivo o discurso criado para convencer eleitores funcionou. It’s done.
O que mais me chamou a atenção na retórica vencedora foi a afirmação de que, em um futuro governo de Jair, o país deixaria de ser governado por ideologias. Nunca entendi muito bem o que nosso presidente quis dizer, mas no mundo de pós verdades em que vivemos não são necessárias muitas explicações sobre o conteúdo, o que importa é a forma. Tentando entender o motivo desse discurso chego em duas possibilidades, uma ardilosa e inteligente e outra apenas ignorante: ou o staff do presidente utiliza o argumento que os petistas governaram unicamente para pares intelectuais, fazendo com que os eleitores já contaminados pelo antipetismo e pela desinformação de parte da mídia ligassem Haddad a Maduro ou, o que eu entendo como mais perigoso, a ignorância triunfa e a mentira é repetida tantas vezes que passou a se tornar verdade na cabeça de quem a conta.

Dentro dos setores esquerdistas o PT é muito criticado, e de todas as formas. O partido é reprovado por ter sucumbido à corrupção como os outros, ter se afastado da causa operária que o fundou, ter se alinhado aos interesses do capital e ter acreditado na burguesia, tentando conciliar classes, sendo que esse último erro é mais particularmente atribuido a Lula. O ex-presidente, hoje preso, é duramente apedrejado por não ter propiciado mudanças estruturais na política do país durante os seus anos de ouro, quando possuía aprovação acima de 80%. A esquerda não perdoa Lula por deixar de mudar as regras do jogo quando pode e por se gabar de que banqueiros nunca ganharam tanto dinheiro quanto em seu governo. A conciliação de classes falhou.
É claro que o governo do PT, como qualquer outro, tenha suas ações em política externa alinhadas ao seu pensamento ideológico. O PT fez empréstimos e facilitou a entrada de empresas brasileiras em países com governos de esquerda e não há problemas nisso. É comum que, embora as alianças naturais sejam levadas em consideração na política externa, as relações comerciais entre estados não sejam contaminadas por políticas de governo, que são transitórias.
Não quero entrar em chatices com números, mas há nos governos do PT um enorme salto brasileiro na balança comercial. Lula surfou na onda do boom das commodities, porém esse bom resultado não se deve apenas a negócios com Cuba, Angola ou Venezuela. Lula, como bom conciliador, sempre pregou a neutralidade em questões comerciais.

Voltando ao presente, o presidente Jair, mesmo após eleito, ratificou que as relações exteriores brasileiras não seriam baseadas em ideologias e está aí o seu primeiro estelionato eleitoral. Mesmo antes de iniciar o inquilinato no Palácio do Planalto, Jair e sua equipe distribuiram declarações irresponsáveis que mudaram desde já as relações comerciais com alguns parceiros importantes.
Jair ama Trump. Acho muito pitoresca a relação de subordinação escancarada que o novo governo possui com os EUA. O filho de Jair já fez uma viagem ao país do norte onde desfilou com terno, gravata e um boné Trump 2020. Jair prestou continência ao civil John Bolton, assessor do presidente americano. Jair indicou que mudará a embaixada brasileira de Tel-aviv para Jerusalém, justamente como fez Trump. Jair engrossou o tom com a China, assim como fez Trump. Jair diz que irá retirar o Brasil do Acordo de Paris, assim como Trump. Jair quer melhorar as relações comerciais com Israel, assim como os EUA. Paulo Guedes diz que o Mercosul não é prioridade. O mundo de Jair é um triângulo amoroso entre Brasil, EUA e Israel, nada mais.

Se isso não é governar por ideologias, não sei o que é.

O amor de Jair já criou desafetos entre nossos parceiros comerciais. A Liga Árabe repudiou oficialmente a mudança de embaixada em Israel, mudança que pode prejudicar o comércio entre Brasil, países árabes e outros países muçulmanos, principalmente na venda de carne. A retirada do Brasil do Acordo de Paris pode prejudicar o comércio de produtos agrícolas – principal produto de exportação brasileiro – com a Europa. A China, o nosso principal parceiro comercial, com a qual possuímos um superávit nesse ano de 26 bilhões de dólares, já alertou para o risco do relacionamento com o “Trump dos trópicos”, expressão que embora tenha sido utilizada pelos chineses para desabonar, deve soar como elogio nos ouvidos de Jair. A Argentina é provavelmente o único – ou ao menos é o principal – país com o qual o Brasil possui superávit em produtos manufaturados, mas a primeira visita oficial do presidente eleito, que historicamente é para a Argentina, dessa vez será no Chile do também conservador Sebastián Piñera.

Em política externa a palavra alinhamento tem quase o sinônimo de submissão. O governo brasileiro, alinhado aos EUA de Trump, indica que todo caminho seguido pelos norte-americanos terá o Brasil a reboque. Além da falta de visão global de Jair, o que mais me incomoda é a falta de contrapartida. Não há NENHUM SINAL de que Trump se importe com a América do Sul ou que esteja disposto a fazer grandes concessões ao Brasil. Pelo contrário, o presidente americano sofre pressões para proteger os produtores agrícolas estadunidenses dos nossos produtos. O fato do filho do presidente eleito passear pelos EUA com um boné de campanha de Donald Trump é de uma vassalagem inaceitável. Todas as atitudes do novo presidente são dadas de graça a Trump, que pode ou não agradecer pelas redes sociais. É como se a NET ligasse na minha casa e me oferecesse um pacote completo, sem nenhum aumento na mensalidade: eu aceito, agradeço e faço um elogio no Twitter.
Uma pequena amostra de como o Brasil dá muito mais importância ao relacionamento do que os EUA foi dada nesse mês. Ao negociar uma trégua comercial, Trump e Xi Jinping acordaram que os chineses comprariam mais soja dos norte-americanos. A soja corresponde a 44% de tudo o que exportamos para a China em 2018.

As últimas notícias evidenciam o caráter totalmente ideológico das ações do novo governo. Cuba e Venezuela foram desconvidadas para a posse em 1º de janeiro por não serem países democráticos. Segundo as palavras do próprio Jair “regimes que violam as liberdades de seus povos e atuam abertamente contra o futuro governo do Brasil por afinidade ideológica com o grupo derrotado nas eleições, não estarão na posse presidencial em 2019. Defendemos e respeitamos verdadeiramente a democracia”. Já o governo totalitário da Arábia Saudita, aliado histórico dos EUA, que matou em solo turco um jornalista opositor do regime, poderá comparecer. Observando o discurso até que vejo coerência entre o que é dito e o que é feito: Jair diz que regimes que violam a liberdade de seus povos e atuam abertamente contra o futuro governo não estarão na posse, deixando aberta a porta para regimes que violam a liberdade de seus povos, porém não atuam abertamente contra o futuro governo. Jair, o congruente.

Jair deveria aprender mais como seu mestre e entender que rusgas com a China não impedem que os EUA lhes venda soja. Brigas com a Venezuela não impedem que os EUA comprem petróleo venezuelano. Jair precisa enxergar que a União Européia está em crescentes conversas com Cuba por conta da abertura que vive o país caribenho, assim como o Reino Unido, que já organizou uma reunião entre Miguel Díaz-Canel e 30 grandes empresários britânicos interessados em investir na ilha. Jair deveria entender que os relacionamentos internacionais duram mais que quatro anos de governo e devem ser vistos como política de estado. A aproximação com os EUA e Israel não precisa excluir a China e países árabes, até porque historicamente o Brasil é visto como país neutro, mediador de conflitos, uma nação a margem de convicções excludentes. Ao contrário do que muitos dizem, Lula não conseguiu – nem tentou – pregar no Brasil a “pecha” de país comunista, negociou com o Mercosul, UE, BRICS e EUA sempre com o objetivo de ampliar fronteiras comerciais. Jair parece fazer questão de rotular o Brasil como país de extrema-direita, cristão e conservador, que negociará apenas com o seu grupinho de maçonaria via áudio de Whatsapp. Jair se tornou tudo o que mais dizia que odiava: um presidente que, como nenhum outro, governa apenas por ideologias.

Jair precisa sair urgentemente da campanha. Deve entender que já angariou os votos que precisava, mas que agora tem que centrar os seus pensamentos em fazer o país prosperar. Lula não teve nenhum remorso em 2003 de manter o que achava bom na política FHC, com a intenção de acalmar os mercados e não afugentar investimentos. Jair não pode tratar tudo o que foi feito pelos seus antecessores como ruim, essa é a retórica de uma campanha que não existe mais.

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