A retórica bolsonariana foi o
grande ponto diferencial dessas eleições. Embora com alguma dificuldade na
eloquência e no raciocínio, por algum motivo o discurso criado para convencer
eleitores funcionou. It’s done.
O que mais me chamou a atenção na
retórica vencedora foi a afirmação de que, em um futuro governo de Jair, o país
deixaria de ser governado por ideologias. Nunca entendi muito bem o que nosso
presidente quis dizer, mas no mundo de pós verdades em que vivemos não são
necessárias muitas explicações sobre o conteúdo, o que importa é a forma.
Tentando entender o motivo desse discurso chego em duas possibilidades, uma
ardilosa e inteligente e outra apenas ignorante: ou o staff do presidente
utiliza o argumento que os petistas governaram unicamente para pares
intelectuais, fazendo com que os eleitores já contaminados pelo antipetismo e
pela desinformação de parte da mídia ligassem Haddad a Maduro ou, o que eu
entendo como mais perigoso, a ignorância triunfa e a mentira é repetida tantas
vezes que passou a se tornar verdade na cabeça de quem a conta.
Dentro dos setores esquerdistas o
PT é muito criticado, e de todas as formas. O partido é reprovado por ter
sucumbido à corrupção como os outros, ter se afastado da causa operária que o
fundou, ter se alinhado aos interesses do capital e ter acreditado na
burguesia, tentando conciliar classes, sendo que esse último erro é mais
particularmente atribuido a Lula. O ex-presidente, hoje preso, é duramente
apedrejado por não ter propiciado mudanças estruturais na política do país
durante os seus anos de ouro, quando possuía aprovação acima de 80%. A esquerda
não perdoa Lula por deixar de mudar as regras do jogo quando pode e por se
gabar de que banqueiros nunca ganharam tanto dinheiro quanto em seu governo. A
conciliação de classes falhou.
É claro que o governo do PT, como
qualquer outro, tenha suas ações em política externa alinhadas ao seu pensamento
ideológico. O PT fez empréstimos e facilitou a entrada de empresas brasileiras
em países com governos de esquerda e não há problemas nisso. É comum que,
embora as alianças naturais sejam levadas em consideração na política externa,
as relações comerciais entre estados não sejam contaminadas por políticas de
governo, que são transitórias.
Não quero entrar em chatices com
números, mas há nos governos do PT um enorme salto brasileiro na balança
comercial. Lula surfou na onda do boom das commodities, porém esse bom
resultado não se deve apenas a negócios com Cuba, Angola ou Venezuela. Lula,
como bom conciliador, sempre pregou a neutralidade em questões comerciais.
Voltando ao presente, o
presidente Jair, mesmo após eleito, ratificou que as relações exteriores
brasileiras não seriam baseadas em ideologias e está aí o seu primeiro
estelionato eleitoral. Mesmo antes de iniciar o inquilinato no Palácio do
Planalto, Jair e sua equipe distribuiram declarações irresponsáveis que mudaram
desde já as relações comerciais com alguns parceiros importantes.
Jair
ama Trump. Acho muito pitoresca a relação de subordinação escancarada que o novo
governo possui com os EUA. O filho de Jair já fez uma viagem ao país do norte
onde desfilou com terno, gravata e um boné Trump 2020. Jair prestou continência
ao civil John Bolton, assessor do presidente americano. Jair indicou que mudará
a embaixada brasileira de Tel-aviv para Jerusalém, justamente como fez Trump. Jair
engrossou o tom com a China, assim como fez Trump. Jair diz que irá retirar o
Brasil do Acordo de Paris, assim como Trump. Jair quer melhorar as relações
comerciais com Israel, assim como os EUA. Paulo Guedes diz que o Mercosul não é
prioridade. O mundo de Jair é um triângulo amoroso entre Brasil, EUA e Israel,
nada mais.
Se
isso não é governar por ideologias, não sei o que é.
O
amor de Jair já criou desafetos entre nossos parceiros comerciais. A Liga Árabe
repudiou oficialmente a mudança de embaixada em Israel, mudança que pode
prejudicar o comércio entre Brasil, países árabes e outros países muçulmanos,
principalmente na venda de carne. A retirada do Brasil do Acordo de Paris pode prejudicar
o comércio de produtos agrícolas – principal produto de exportação brasileiro –
com a Europa. A China, o nosso principal parceiro comercial, com a qual
possuímos um superávit nesse ano de 26 bilhões de dólares, já alertou para o
risco do relacionamento com o “Trump dos trópicos”, expressão que embora tenha
sido utilizada pelos chineses para desabonar, deve soar como elogio nos ouvidos
de Jair. A Argentina é provavelmente o único – ou ao menos é o principal – país
com o qual o Brasil possui superávit em produtos manufaturados, mas a primeira
visita oficial do presidente eleito, que historicamente é para a Argentina,
dessa vez será no Chile do também conservador Sebastián Piñera.
Em
política externa a palavra alinhamento tem quase o sinônimo de submissão. O
governo brasileiro, alinhado aos EUA de Trump, indica que todo caminho seguido
pelos norte-americanos terá o Brasil a reboque. Além da falta de visão global
de Jair, o que mais me incomoda é a falta de contrapartida. Não há NENHUM SINAL
de que Trump se importe com a América do Sul ou que esteja disposto a fazer
grandes concessões ao Brasil. Pelo contrário, o presidente americano sofre
pressões para proteger os produtores agrícolas estadunidenses dos nossos
produtos. O fato do filho do presidente eleito passear pelos EUA com um boné de
campanha de Donald Trump é de uma vassalagem inaceitável. Todas as atitudes do novo
presidente são dadas de graça a Trump, que pode ou não agradecer pelas redes
sociais. É como se a NET ligasse na minha casa e me oferecesse um pacote
completo, sem nenhum aumento na mensalidade: eu aceito, agradeço e faço um
elogio no Twitter.
Uma
pequena amostra de como o Brasil dá muito mais importância ao relacionamento do
que os EUA foi dada nesse mês. Ao negociar uma trégua comercial, Trump e Xi
Jinping acordaram que os chineses comprariam mais soja dos norte-americanos. A
soja corresponde a 44% de tudo o que exportamos para a China em 2018.
As
últimas notícias evidenciam o caráter totalmente ideológico das ações do novo
governo. Cuba e Venezuela foram desconvidadas para a posse em 1º de janeiro por
não serem países democráticos. Segundo as palavras do próprio Jair “regimes que
violam as liberdades de seus povos e atuam abertamente contra o futuro governo
do Brasil por afinidade ideológica com o grupo derrotado nas eleições, não
estarão na posse presidencial em 2019. Defendemos e respeitamos verdadeiramente
a democracia”. Já o governo totalitário da Arábia Saudita, aliado
histórico dos EUA, que matou em solo turco um jornalista opositor do regime,
poderá comparecer. Observando o discurso até que vejo coerência entre o que é
dito e o que é feito: Jair diz que regimes que violam a liberdade de seus povos
e atuam abertamente contra o
futuro governo não estarão na posse, deixando aberta a porta para regimes que
violam a liberdade de seus povos, porém
não atuam abertamente contra o futuro governo. Jair, o congruente.
Jair
deveria aprender mais como seu mestre e entender que rusgas com a China não
impedem que os EUA lhes venda soja. Brigas com a Venezuela não impedem que os
EUA comprem petróleo venezuelano. Jair precisa enxergar que a União Européia
está em crescentes conversas com Cuba por conta da abertura que vive o país
caribenho, assim como o Reino Unido, que já organizou uma reunião entre Miguel
Díaz-Canel e 30 grandes empresários britânicos interessados em investir na ilha.
Jair deveria entender que os relacionamentos internacionais duram mais que
quatro anos de governo e devem ser vistos como política de estado. A
aproximação com os EUA e Israel não precisa excluir a China e países árabes,
até porque historicamente o Brasil é visto como país neutro, mediador de
conflitos, uma nação a margem de convicções excludentes. Ao contrário do que muitos
dizem, Lula não conseguiu – nem tentou – pregar no Brasil a “pecha” de país
comunista, negociou com o Mercosul, UE, BRICS e EUA sempre com o objetivo de ampliar
fronteiras comerciais. Jair parece fazer questão de rotular o Brasil como país
de extrema-direita, cristão e conservador, que negociará apenas com o seu
grupinho de maçonaria via áudio de Whatsapp. Jair se tornou tudo o que mais
dizia que odiava: um presidente que, como nenhum outro, governa apenas por
ideologias.
Jair
precisa sair urgentemente da campanha. Deve entender que já angariou os votos
que precisava, mas que agora tem que centrar os seus pensamentos em fazer o
país prosperar. Lula não teve nenhum remorso em 2003 de manter o que achava bom
na política FHC, com a intenção de acalmar os mercados e não afugentar
investimentos. Jair não pode tratar tudo o que foi feito pelos seus
antecessores como ruim, essa é a retórica de uma campanha que não existe mais.
Nenhum comentário:
Postar um comentário