sexta-feira, 28 de dezembro de 2018

O Lobo da Estepe e os dois porres que tomei no começo de outubro



Um dos meus passeios favoritos em SP é visitar os sebos de centro da cidade. São basicamente criadouros de mofo, eu sei, mas há duas qualidades neles que me atraem profundamente. Em primeiro lugar, são caoticamente organizados, ou organizadamente caóticos. São quase completamente bagunçados, mas com alguém tentando organizar. Eu estou longe de ser a pessoa mais organizada do mundo e me identifico com isto. Em segundo lugar, porque eu adoro comprar livros usados que alguém grifou. Para mim, esta é uma espécie de diálogo entre duas pessoas que não se conhecem, não se conhecerão, mas que partilham do mesmo gosto. Quando você grifa um livro e depois o passa para frente, é como se fosse estivesse indicando para um completo desconhecido que virá depois o que acha importante na obra. Adoro. A última vez que fui a um sebo, comprei uma edição velha e grifada de O Lobo da Estepe de Hermann Hesse que fez com que eu verdadeiramente me apaixonasse platonicamente por esta pessoa X que possuía este livro e o passou para frente. Uma dica, aliás. Se você está conhecendo uma pessoa e quer saber se vale a pena investir seu tempo nela, descubra o que ela lê. A maioria das pessoas faz isto com música, bobagem. Muita gente imbecil gosta de música boa. Muita gente não faz a menor ideia do que está ouvindo. Peguemos o que aconteceu nos shows do Roger Waters como exemplo. A pessoa pagou caro num show do Roger Waters mesmo sem saber que o antifascismo é tipo a base da sua obra. “Ah, mas eu não posso gostar de Pink Floyd e votar no Bolsonaro ao mesmo tempo?” Bom, se você entendeu algo do que o Pink Floyd diz, a resposta não. Se você não faz a menor ideia do que está sendo dito e acha que Another Brick in the Wall é sobre tijolo, siga em frente. Com livros isto não acontece. “Ninguém lê coisas ruins impunemente”, diz Victor Hugo numa parte dos Miseráveis em que tenta explicar a burrice de um personagem. Podemos dizer também que ninguém lê coisas boas impunemente.
A última vez que fui a um sebo, no dia em que comprei a apaixonante versão de O Lobo da Estepe, foi também o sábado anterior ao primeiro turno das eleições. Durante o caminho, vi duas mulheres distribuindo santinhos e apareceu um cara perguntando se os santinhos eram do Bolsonaro. As duas mulheres disseram que não, o homem resmungou e disse “Então não quero”. Após a compra, fui comer algo no bar Estadão, tradicional aqui no centro de SP. A conversa sobre política por lá envolvia um cliente e o atendente. O cliente ia votar em Bolsonaro porque para ele o maior problema do Brasil era a maconha. Um maço de Marlboro estava no bolso de sua camisa. O atendente gostava do Lula. O principal motivo apontado por ele era que o preço do botijão de gás era barato no seu governo. Mas já que Lula não era candidato, ele queria que todo mundo se fodesse e ia votar no Bolsonaro. Ao ouvir isto pensei, “bom, realmente fodeu”.
Uma semana antes, exatamente no sábado anterior, eu tinha ido na passeata do Ele Não no Largo da Batata. Foi linda, emocionante. Muita gente, mensagem bonita, um apelo à liberdade. Eu estava feliz. Ainda no Largo da Batata, tomei um porre. No meu caso, a bebida acaba servindo para intensificar o estado de espírito em que estou quando sóbrio. No ápice da alegria, profetizei que, com o sucesso daquela passeata, provavelmente Bolsonaro despencaria e o segundo turno seria entre Haddad e Alckmin. Sim, sou o pior analista político do mundo quando bêbado feliz. Aconteceu exatamente o contrário. As pessoas que querem que todo mundo se foda ficaram preocupadas com aquilo e se uniram a Bolsonaro. A última semana do primeiro turno foi desesperadora, com o número de pessoas se mostrando fascistas, racistas, homofóbicas etc crescendo percentualmente dia-a-dia. Foi a semana em que pessoas que eu considerava próximas tiraram as máscaras. Um ex-amigo da faculdade mudou de Alckmin para Bolsonaro para “foder com o PT” e seu argumento era relativização da tortura. Ele disse não se importava se um bandido fosse torturado, pois que faz coisa errada tem mais é que se foder. Se eu fui amigo de um cara destes, algo errado também há comigo, pensei. Coisas semelhantes aconteciam com outras pessoas. Minha família é originalmente de Santa Catarina e uma prima minha de lá postou, no dia seguinte à eleição, a seguinte mensagem: “Nordestino vota no PT e depois vem pro Sul atrás de emprego”. Ela mora em Tubarão, cidade do interior de SC. Eu quase tentei explicar para ela que, com todo respeito, ninguém quer sair de lugar algum para ir a Tubarão. Absolutamente ninguém. SC tem um litoral lindo. Quem tiver gosto, indico a cidade de Imbituba. É maravilhosa. Mas o interior é horroroso. Extremamente feio. Ninguém vai para o interior de SC do mesmo jeito que quase ninguém está indo para o Sul em geral. O RS é, depois do RJ, possivelmente o estado mais quebrado da federação. Esta turma vive num completo estado de fantasia. A BA é mais rica em números absolutos do que SC, embora tenha um PIB per capita menor. Uma boa parte da minha família de lá sonha ou sonhou em emigrar para os Estados Unidos. Sabe por quê? Porque SC é pobre. Uma prima conseguiu, após passar alguns anos comendo o pão que o diabo amassou na ilegalidade. Fico feliz que ela tenha realizado seus sonhos. Durante as eleições de 2016, postava ela coisas contra Trump em sua página em redes sociais. Incomodava-se ela com a postura anti-latina do candidato republicana. Ótimo. Dois anos depois, na eleição brasileira, lá estava ela fazendo campanha por Bolsonaro e dizendo que o Brasil deveria dificultar a entrada de estrangeiros no país. Como o fã fascista de Pink Floyd, ela é realmente incapaz de entender qualquer coisa. Bolsonaro teve 75% no primeiro turno em Tubarão.
Eu e um amigo, quase tão desesperado quanto eu naquele dia, fomos acompanhar a apuração bebendo uma cerveja. As primeiras notícias eram tenebrosas. Wilson Witzel, candidato pró-Bolsonaro no RJ, havia subido de 12% para 40% naquele dia. Sua principal “proposta” era a contratação de snipers que iriam atirar na cabeça de quaisquer pessoas que considerassem suspeitas. Os números que saíam enquanto aguardávamos a apuração presidencial eram tenebrosos. Bolsonaro terminou com 46%. Estava com 30% na semana anterior. Teríamos um segundo turno, mas no fundo sabíamos que a casa já tinha caído. A maioria da sociedade quer, assim como o atendente do Estadão, que todos se fodam.
O porre depressivo é bem diferente do porre alegre. Chegando em casa, bêbado, escrevi a seguinte mensagem em uma rede social, que realmente saiu do fundo da minha alma: “Mais uma vez peço desculpas por ter demorado tanto tempo para perceber o quanto este país, especialmente a cidade em que vivo, é racista, machista e homofóbico. Peço desculpas por ter me deixado cegar pelo fato de eu ser um homem branco hetero de merda incapaz de enxergar o que há do lado. Estou com vergonha do que aconteceu hoje. 
As pessoas que votaram em Bolsonaro são imbecis. Todas. São pessoas que se baseiam basicamente em mentiras que recebem por WhatsApp e Facebook. São totalmente incapazes de reconhecer o que é fato. Fazem de tudo para justificar o ódio que sentem. Não tem nada a ver com antipetismo. Nada. Tínhamos trocentas opções antipetistas decentes. Elas escolheram a única que não era decente. O cara não tem plano algum para nada. Não há plano econômico, para saúde e para educação. Nada. Ele e seus eleitores odeiam cultura. Cultura agride quem é incapaz de pensar. É gente que um estado psicopata. Quer um estado que torture, mate, discrimine. Ainda há uma pequena chance de derrotar esta gente. Será difícil. Vamos nos esforçar este mês. Como? Eu não sei. Eles são muitos e muito burros. Mas não nos resta nada que não seja tentar. Três semanas para evitar.
Já que uma das palavras do momento é autocrítica, esta foi em parte a minha. Demorei muito tempo para entender a sociedade em que vivo. Em boa parte porque meus privilégios me cegavam. Fui dormir e acordei com mensagens de bolsonetes ofendidos. As mesmas pessoas que chamam racismo, homofobia e demais preconceitos de mimimi, estavam bravas porque eu  as havia chamado de burras. Tomei um remédio para ressaca e abri o Lobo da Estepe. Eis o trecho que o meu amor platônico grifou:
“Venho manifestando já por vezes minha opinião de que cada povo e até cada indivíduo, em vez de sonhar com falsas “responsabilidades” políticas, devia refletir sobre a parte de culpa que lhe cabe da guerra e de outras misérias humanas, quer por sua atuação, por sua omissão ou por seus maus costumes; este seria provavelmente o único meio de se evitar a próxima guerra. E por isso, não me perdoam, pois se julgam todos, sem dúvida, inocentes: o Kaiser, os generais, os grandes industriais, os políticos, os jornalistas – nenhum deles tem absolutamente culpa alguma ! Poder-se-ia até pensar que tudo foi melhor assim para o mundo, embora alguns milhões de mortos estejam embaixo da terra. E saiba, Hermínia, embora esses artigos ignominiosos não me possam atingir, às vezes me entristecem. Dois terços da gente do meu país leem esta espécie de jornal; leem de manhã e à noite coisas escritas neste tom, são trabalhados permanentemente, incitados, açulados; semeia-se neles o descontentamento e a maldade e a meta final é outra vez a guerra, a próxima guerra, que já está chegando e que sem dúvida será muito mais horrenda do que a última. Tudo isto é claro e simples, qualquer pessoa pode compreendê-lo; com uma hora de meditação todos poderiam chegar ao mesmo resultado. Mas ninguém quer agir assim, ninguém quer evitar a próxima guerra, quer livrar-se nem livrar a seus filhos da morte aos milhares, nem quer parar um instante e pensar voluntariamente. Uma hora de reflexão, um momento de entrar em si mesmo e perguntar a parte de culpa que lhe cabe nesta desordem e na maldade que impera no mundo – mas ninguém quer fazê-lo! E assim tudo continua como estava e a próxima guerra vai-se preparando cada dia que passa, com o auxílio de milhares e milhares de pessoas diligentes. Estas coisas sempre me desesperam: para mim não existe “pátria”, não existe “ideal” algum. Tudo isto não passa de frases inculcadas por aqueles que preparam a próxima carnificina. Não tem sentido pensar ou escrever algo que seja humano, de nada vale ter boas ideias na mente – são duas ou três pessoas que agem assim; em compensação, há milhares de jornais, de revistas, de conferências, reuniões públicas ou secretas que, dia após dia, insistem no contrário e acabarão por alcança-lo”.

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