terça-feira, 25 de dezembro de 2018

Os presidiários




Por algum motivo que desconheço demorei 34 anos da minha vida para ler os que hoje considero meus dois livros favoritos: Irmãos Karamazov e A Montanha Mágica. Tem horas em que acho isto bom, uma vez que tenho atualmente muito mais maturidade do que tinha há 10 anos. Provavelmente aos 24 anos eu reclamaria que a ação demora muito para acontecer em Karamazov, por exemplo. Se alguém lendo isto se interessar em ler Dostoievski, aliás, saiba que as coisas demoram MUITO para acontecer. É outra noção de tempo. Noção de tempo que é, aliás, o tema principal da Montanha Mágica. Eu aos 24 anos provavelmente acharia as digressões em 900 páginas a partir da história de Hans Castorp uma chatice. Aos 34, achei a coisa mais genial que já li.
Fiodor Dostoievski passou nove anos de sua vida na prisão. Foi preso acusado de conspiração contra a monarquia russa e exilado para um campo de trabalho forçado na Sibéria. Condenado à morte, foi perdoado pelo czar um pouco antes de sua morte, mas teve a execução simulada a mando do mesmo czar. Caminhou para a morte e saiu vivo, passando a enxergar e apreciar a vida de outra maneira. Sua experiência com a quase morte é relatada em O Idiota e sua vida na cadeia foi a base para a obra Memória da Casa dos Mortos, que infelizmente li na pior versão possível, a da LPM. Os dois principais livros de Dostoievsi, Crime e Castigo e Irmãos Karamazov têm como principal mote a redenção. No primeiro, Rodion Raskolnikov comete um grave erro, redimindo-se através da culpa e do amor da personagem Sonia. No segundo, o pai Karamazov, não à toa chamado Fiodor, é assassinado tendo como principal suspeito o filho mais velho. Se no primeiro livro a redenção vem através da culpa e do amor, no último a fé substitui a culpa como companheira do amor.
Na obra de Thomas Mann quase não há espaço para a redenção. Suas grandes obras anteriores à ascensão do nazismo na Alemanha já terminam em destruição. Em Os Buddenbroks, Mann narra a saga de uma família entre o seu apogeu e sua destruição no período de um século. A Montanha Mágica termina com um suicídio e com a ida do personagem principal para a Primeira Guerra. Hitler chegou a poder na Alemanha cinco anos após a publicação da Montanha e teve em Mann, desde o início, um de seus principais críticos. Já em 1933 Mann teve que fugir para a Suíça, fruto da perseguição que sofria da recém surgida Juventude Nazista. Em 1938, teve que emigrar da Suíça para os Estados Unidos, uma vez que a Suíça já não era mais tão neutra assim. Passou toda a guerra fazendo programas de rádio transmitidos clandestinamente na Alemanha em que conclamava seu povo à razão. Já na década de 1950, de volta à Suíça, publicou a obra-prima Dr. Fausto, em que através do personagem Adrian Leverkühn, cria uma alegoria da situação alemã no período nazista.
Meus dois autores favoritos, desta forma, foram presos e exilados em algum momento da vida.
Assisti em 2018 também um documentário sul-africano sobre o julgamento de Nelson Mandela. Não há imagens do julgamento e o diretor teve a ideia de refazê-lo através de uma animação. A coisa mais impressionante sobre o julgamento de Mandela é que foi criado todo um ritual pelo governo racista da África do Sul para de certa forma legitimá-lo. Mandela e seus companheiros tiveram, por exemplo, o direito a um advogado de defesa e falaram no julgamento, mesmo que eles mesmos já soubessem que estavam pré- condenados. Os réus, sabendo disso, utilizaram o julgamento para a realização de propaganda política, uma vez que o evento era transmitido radiofonicamente para todo o país. O juiz e o promotor agiam em conluio e eram tratados como ídolos pela imprensa branca sul-africana. Uma parte interessante do documentário é que eles entrevistaram o filho ou o neto do promotor que acusou Mandela, não lembro exatamente qual o grau de parentesco e peço desculpas por isso. Ele contava sobre o peso que era viver com a culpa do que havia sido feito pelos seus antepassados e chorava ao ouvir as falas de seu pai ou avô durante o julgamento. “Mandela trazia desordem, um comunista e era um risco à estabilidade da África do Sul branca” dizia o promotor, pedindo a pena de morte ao réu. Mandela seria condenado a prisão perpétua e libertado após 27 anos graças a uma grande pressão internacional.
Nelson Mandela e Marthin Luther King talvez tenham sido os mais celebrados nomes políticos do séc. XX. A luta de King ganhou proporção nacional em dezembro de 1955, quando Rosa Park, uma mulher negra, recusou-se a ceder seu lugar num ônibus para uma mulher branca e foi presa. King, principal pastor da cidade em que isto ocorrera, Montgomery no Alabama, liderou um boicote à empresa de ônibus, que foi à falência e resultou em sua prisão. Vencedor do Nobel da Paz em 1963, King era monitorado pelo FBI e detestado pela América branca quando foi assassinado, em 1968.
Tenho diversos ídolos que em algum momento tiveram problemas com a justiça. Muhammed Ali perdeu o título mundial e ficou seis anos sem poder lutar por se recusar a matar pessoas no Vietnã. John Lennon foi quase expulso dos EUA e passou a boa parte dos anos 1970 sendo monitorado pelo governo. Graciliano Ramos é possivelmente o melhor autor brasileiro e passou alguns anos na cadeia. Foi deste período que surgiu Memórias do Cárcere, sua obra-prima. Minha autora contemporânea favorita, Herta Müller, teve que fugir da Romênia.
Em fevereiro de 2018, o Brasil possuía 727 mil presos. Não sei o quanto este número mudou até dezembro. Em 2014, eram 623 mim presos. Na semana passada, o ministro Marco Aurélio Mello soltou uma liminar que ordenava a soltura daqueles que ainda não tivessem sido condenados em última instância. Segundo a mídia, a decisão poderia beneficiar 190 mil pessoas. Algo entre um terço e um quarto dos presidiários brasileiros, afinal, estão presos tendo alguma possibilidade de recurso. A grande maioria por pequenos delitos. Conheci uma defensora pública que me contava que a principal dificuldade da sua profissão era impedir que os juízes esquecessem dos processos. Se o advogado não ficar em cima, me disse ela, o juiz joga na gaveta e não tira. Algo entre um terço e um quarto dos presidiários brasileiros são pessoas que, segundo a Constituição, estão presas sem que ainda sejam, segundo a lei, consideradas culpadas do que fizeram.
Racismo, teoricamente, é crime no Brasil. Segundo a Constituição, aliás, é um dos únicos crimes inafiançáveis e imprescritíveis, junto, se não me engano, com traição à pátria. Não tenho certeza. O crime de racismo não pegou no Brasil. A sociedade elegeu uma pessoa racista para a Presidência. Não só isso, não conheço ninguém dentre este mundaréu de presos que esteja preso por este crime. William Waack, por exemplo, segue sua vida normalmente e com patrocínio de um banco de investimentos. Chegava a ser bizarro ver os defensores do candidato fascista dizendo que ele “não é bandido” sendo que há diversas gravações demonstrando seu racismo.
A principal crítica que os eleitores do racista faziam a seu opositor é que ele visitava um presidiário durante a campanha. Lula, uma das 190 mil pessoas presas que seriam beneficiadas pela liminar de Mello, foi a principal causa para que os eleitores do racista reclamassem da mesma. Fodam-se os outros 189.999, desde que Lula se foda. E assim foi.
Poucas coisas na vida são piores do que a perda da liberdade. A forma que a sociedade encontrou para punir aqueles que julgam desrespeitar suas regras foi tomando-lhes tempo. Sem entrar em critério de ser a melhor forma de punição, a forma como lido com presidiários é respeitando-lhes. Há casos em que tenho ponto de vista de que a prisão é injusta, como a de Lula, e nestes casos denuncio e reclamo, mesmo que não possa fazer mais do que isto a respeito. Em outras situações, que considero justas, exemplificando com Sérgio Cabral, mantenho o silêncio. Acredito que espezinhar com o sofrimento de um ser humano que se encontra numa situação frágil é a mais covarde das atitudes. Cada vez que vejo matérias irônicas sobre situações humilhantes que o ex-governador vive na prisão e a forma como a sociedade se regozija disto, mas vejo um sintoma do quanto estamos doentes.
Outro dia assisti um debate liderado por Monica Waldvogel na Globonews em que ela e um professor que defendiam uma sociedade mais punitivista discutiam com um outro professor, que argumentava que uma sociedade melhor e mais justa se fazia com o uso maior de penas alternativas e prisões apenas em situações extremas. Não me lembro o nome deste professor, peço mais uma vez desculpas. No final do programa ele dizia que daqui a cem anos, é muito provável que nossa sociedade sentisse vergonha de olhar para 2018 e ver que tantas pessoas eram jogadas em calabouços superlotados e sem condições, tratadas de forma desumanas e sem um tratamento minimamente justo de um judiciário que visa unicamente manter seus privilégios. Eu estou em 2018 e já sinto vergonha disso. A nossa sociedade será julgada pela injustiça que comete com Lula. E pela desumanidade com que trata os que estão presos, independentemente de serem culpados.

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