Por algum motivo que desconheço
demorei 34 anos da minha vida para ler os que hoje considero meus dois livros
favoritos: Irmãos Karamazov e A Montanha Mágica. Tem horas em que acho
isto bom, uma vez que tenho atualmente muito mais maturidade do que tinha há 10
anos. Provavelmente aos 24 anos eu reclamaria que a ação demora muito para
acontecer em Karamazov, por exemplo.
Se alguém lendo isto se interessar em ler Dostoievski, aliás, saiba que as
coisas demoram MUITO para acontecer. É outra noção de tempo. Noção de tempo que
é, aliás, o tema principal da Montanha
Mágica. Eu aos 24 anos provavelmente acharia as digressões em 900 páginas a
partir da história de Hans Castorp uma chatice. Aos 34, achei a coisa mais
genial que já li.
Fiodor Dostoievski passou nove
anos de sua vida na prisão. Foi preso acusado de conspiração contra a monarquia
russa e exilado para um campo de trabalho forçado na Sibéria. Condenado à
morte, foi perdoado pelo czar um pouco antes de sua morte, mas teve a execução
simulada a mando do mesmo czar. Caminhou para a morte e saiu vivo, passando a
enxergar e apreciar a vida de outra maneira. Sua experiência com a quase morte
é relatada em O Idiota e sua vida na
cadeia foi a base para a obra Memória da
Casa dos Mortos, que infelizmente li na pior versão possível, a da LPM. Os
dois principais livros de Dostoievsi, Crime
e Castigo e Irmãos Karamazov têm
como principal mote a redenção. No primeiro, Rodion Raskolnikov comete um grave
erro, redimindo-se através da culpa e do amor da personagem Sonia. No segundo,
o pai Karamazov, não à toa chamado Fiodor, é assassinado tendo como principal
suspeito o filho mais velho. Se no primeiro livro a redenção vem através da culpa
e do amor, no último a fé substitui a culpa como companheira do amor.
Na obra de Thomas Mann quase não
há espaço para a redenção. Suas grandes obras anteriores à ascensão do nazismo
na Alemanha já terminam em destruição. Em Os
Buddenbroks, Mann narra a saga de uma família entre o seu apogeu e sua
destruição no período de um século. A
Montanha Mágica termina com um suicídio e com a ida do personagem principal
para a Primeira Guerra. Hitler chegou a poder na Alemanha cinco anos após a
publicação da Montanha e teve em
Mann, desde o início, um de seus principais críticos. Já em 1933 Mann teve que
fugir para a Suíça, fruto da perseguição que sofria da recém surgida Juventude
Nazista. Em 1938, teve que emigrar da Suíça para os Estados Unidos, uma vez que
a Suíça já não era mais tão neutra assim. Passou toda a guerra fazendo
programas de rádio transmitidos clandestinamente na Alemanha em que conclamava
seu povo à razão. Já na década de 1950, de volta à Suíça, publicou a obra-prima
Dr. Fausto, em que através do
personagem Adrian Leverkühn, cria uma alegoria da situação alemã no período
nazista.
Meus dois autores favoritos,
desta forma, foram presos e exilados em algum momento da vida.
Assisti em 2018 também um
documentário sul-africano sobre o julgamento de Nelson Mandela. Não há imagens
do julgamento e o diretor teve a ideia de refazê-lo através de uma animação. A
coisa mais impressionante sobre o julgamento de Mandela é que foi criado todo
um ritual pelo governo racista da África do Sul para de certa forma
legitimá-lo. Mandela e seus companheiros tiveram, por exemplo, o direito a um
advogado de defesa e falaram no julgamento, mesmo que eles mesmos já soubessem
que estavam pré- condenados. Os réus, sabendo disso, utilizaram o julgamento
para a realização de propaganda política, uma vez que o evento era transmitido
radiofonicamente para todo o país. O juiz e o promotor agiam em conluio e eram
tratados como ídolos pela imprensa branca sul-africana. Uma parte interessante
do documentário é que eles entrevistaram o filho ou o neto do promotor que
acusou Mandela, não lembro exatamente qual o grau de parentesco e peço
desculpas por isso. Ele contava sobre o peso que era viver com a culpa do que
havia sido feito pelos seus antepassados e chorava ao ouvir as falas de seu pai
ou avô durante o julgamento. “Mandela trazia desordem, um comunista e era um
risco à estabilidade da África do Sul branca” dizia o promotor, pedindo a pena
de morte ao réu. Mandela seria condenado a prisão perpétua e libertado após 27
anos graças a uma grande pressão internacional.
Nelson Mandela e Marthin Luther
King talvez tenham sido os mais celebrados nomes políticos do séc. XX. A luta
de King ganhou proporção nacional em dezembro de 1955, quando Rosa Park, uma
mulher negra, recusou-se a ceder seu lugar num ônibus para uma mulher branca e
foi presa. King, principal pastor da cidade em que isto ocorrera, Montgomery no
Alabama, liderou um boicote à empresa de ônibus, que foi à falência e resultou
em sua prisão. Vencedor do Nobel da Paz em 1963, King era monitorado pelo FBI e
detestado pela América branca quando foi assassinado, em 1968.
Tenho diversos ídolos que em
algum momento tiveram problemas com a justiça. Muhammed Ali perdeu o título
mundial e ficou seis anos sem poder lutar por se recusar a matar pessoas no
Vietnã. John Lennon foi quase expulso dos EUA e passou a boa parte dos anos
1970 sendo monitorado pelo governo. Graciliano Ramos é possivelmente o melhor
autor brasileiro e passou alguns anos na cadeia. Foi deste período que surgiu Memórias do Cárcere, sua obra-prima.
Minha autora contemporânea favorita, Herta Müller, teve que fugir da Romênia.
Em fevereiro de 2018, o Brasil
possuía 727 mil presos. Não sei o quanto este número mudou até dezembro. Em
2014, eram 623 mim presos. Na semana passada, o ministro Marco Aurélio Mello
soltou uma liminar que ordenava a soltura daqueles que ainda não tivessem sido
condenados em última instância. Segundo a mídia, a decisão poderia beneficiar
190 mil pessoas. Algo entre um terço e um quarto dos presidiários brasileiros,
afinal, estão presos tendo alguma possibilidade de recurso. A grande maioria
por pequenos delitos. Conheci uma defensora pública que me contava que a
principal dificuldade da sua profissão era impedir que os juízes esquecessem
dos processos. Se o advogado não ficar em cima, me disse ela, o juiz joga na
gaveta e não tira. Algo entre um terço e um quarto dos presidiários brasileiros
são pessoas que, segundo a Constituição, estão presas sem que ainda sejam,
segundo a lei, consideradas culpadas do que fizeram.
Racismo, teoricamente, é crime no
Brasil. Segundo a Constituição, aliás, é um dos únicos crimes inafiançáveis e
imprescritíveis, junto, se não me engano, com traição à pátria. Não tenho
certeza. O crime de racismo não pegou no Brasil. A sociedade elegeu uma pessoa
racista para a Presidência. Não só isso, não conheço ninguém dentre este
mundaréu de presos que esteja preso por este crime. William Waack, por exemplo,
segue sua vida normalmente e com patrocínio de um banco de investimentos. Chegava
a ser bizarro ver os defensores do candidato fascista dizendo que ele “não é
bandido” sendo que há diversas gravações demonstrando seu racismo.
A principal crítica que os
eleitores do racista faziam a seu opositor é que ele visitava um presidiário
durante a campanha. Lula, uma das 190 mil pessoas presas que seriam
beneficiadas pela liminar de Mello, foi a principal causa para que os eleitores
do racista reclamassem da mesma. Fodam-se os outros 189.999, desde que Lula se
foda. E assim foi.
Poucas coisas na vida são piores
do que a perda da liberdade. A forma que a sociedade encontrou para punir
aqueles que julgam desrespeitar suas regras foi tomando-lhes tempo. Sem entrar
em critério de ser a melhor forma de punição, a forma como lido com
presidiários é respeitando-lhes. Há casos em que tenho ponto de vista de que a
prisão é injusta, como a de Lula, e nestes casos denuncio e reclamo, mesmo que
não possa fazer mais do que isto a respeito. Em outras situações, que considero
justas, exemplificando com Sérgio Cabral, mantenho o silêncio. Acredito que
espezinhar com o sofrimento de um ser humano que se encontra numa situação
frágil é a mais covarde das atitudes. Cada vez que vejo matérias irônicas sobre
situações humilhantes que o ex-governador vive na prisão e a forma como a
sociedade se regozija disto, mas vejo um sintoma do quanto estamos doentes.
Outro dia assisti um debate
liderado por Monica Waldvogel na Globonews em que ela e um professor que
defendiam uma sociedade mais punitivista discutiam com um outro professor, que
argumentava que uma sociedade melhor e mais justa se fazia com o uso maior de
penas alternativas e prisões apenas em situações extremas. Não me lembro o nome
deste professor, peço mais uma vez desculpas. No final do programa ele dizia
que daqui a cem anos, é muito provável que nossa sociedade sentisse vergonha de
olhar para 2018 e ver que tantas pessoas eram jogadas em calabouços
superlotados e sem condições, tratadas de forma desumanas e sem um tratamento
minimamente justo de um judiciário que visa unicamente manter seus privilégios.
Eu estou em 2018 e já sinto vergonha disso. A nossa sociedade será julgada pela injustiça que comete com Lula. E pela desumanidade com que trata os que estão presos, independentemente de serem culpados.
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