quarta-feira, 12 de dezembro de 2018

O CPF, a demissão e o senhor M.



Eu realmente não aguento mais dizer o número do meu CPF. Não sei qual foi a última vez que passei um intervalo de três dias sem dizer a sequência de onze dígitos que basicamente define quem eu sou. A impressão paranoica que tenho é que existe algum supercomputador central em algum lugar em que todas as minhas informações estão registradas a partir deste número. Todos os meus inúmeros cadastros, senhas, compras, visitas, tudo. Durante uma semana resolvi tentar contar o número de vezes em que falava o meu CPF para comparar o número de vezes em que falava o meu nome. Bom, esqueci que estava fazendo isto no segundo dia. É difícil se concentrar numa missão besta como estas afinal. Mas sim, eu falo muito mais vezes o número 316 do que o meu nome.
Por um momento em minha vida eu era do tipo que falava o número do CPF para qualquer compra que fizesse. A nota fiscal paulista, com sua devolução de um centavo para uma compra de, sei lá, duzentos reais tocava fundo no coração de um jovem recém-formado em economia metido a sábio poupador. Ganhei também três sorteios no valor de dez reais nos últimos dez anos, o que quer dizer que falar o meu CPF em todas as compras que fazia me rendeu trinta reais.
Por algum motivo enjoei e parei de falar. A impressão que tenho é que isto aconteceu com muita gente, porque neste momento os supermercados começaram a criar descontos para quem tivesse cadastro. Faço parte do clube extra, sou cliente mais Carrefour e sei lá mais de onde e voltei a falar o meu CPF cada vez que comprava uma bolacha, cujo preço é uns trinta centavos mais barato se eu tiver a paciência de dizer os onze dígitos.
Nenhum estabelecimento é mais bem-sucedido na tarefa de me obrigar a dizer o número do CPF do que uma farmácia. Por motivos familiares, eu frequento este ambiente mais de uma vez por semana e a primeira coisa que perguntam, antes mesmo de saber o que eu quero, é se eu tenho cadastro e qual meu CPF. O atendente em seguida pega o remédio e me fala sempre de algum valor por algum valor. Ele sempre quer deixar bem claro o quanto economizei por me identificar com um número de onze dígitos. Como minha mãe tem convênio de saúde, este é o momento em que digo que quero passar a compra no CPF dela, que dá mais desconto. Ótimo, diz o atendente enquanto me ouve falar um novo código, dessa vez começado com 201. Saio para o caixa, que digita o número do CPF da minha mãe, registra o desconto e pergunto se quero manter este CPF na compra final. Digo que não, que ela deve ser registrada no meu CPF, para que eu ganhe “pontos” que em uma década podem me render um desodorante ou uma pasta de dente. Por que alguém se interessa tanto em registrar as porcarias que compro? Não sei, mas dizem que este tipo de informação dá algum poder. Para tudo que faço na internet tenho que registrar meu CPF. Lembro-me que no ano passado fui fazer a declaração de óbito de uma pessoa e, ao chegar em casa, começaram a pintar na tela do meu computador propagandas de advogados que cuidam de herança e de funerárias. O “supercomputador central” sabe o que o sr. 316 precisa.
A grande decisão do meu ano de 2018 foi sem dúvidas pedir demissão. Eu nunca tinha feito isto na vida. Pessoas enchem o saco quando você faz isto. Estamos em crise e você nunca mais vai arrumar um emprego na vida diziam uns. Foda-se que você está infeliz no tal emprego, alguém deposita um dinheiro na sua conta todo fim do mês, então está tudo bem. A pessoa que mais me influenciou nesta decisão foi um ex-colega que chamarei aqui de senhor M. O senhor M. odeia com todo vigor o trabalho que faz e a empresa em que trabalha. O senhor M. morre de medo de ser mandado embora e sempre chora e passa o dia fofocando quando cortes aparecem. O senhor M. leva este comportamento profissional para todas as áreas da vida. Uma coisa importante, aliás, é que as pessoas têm que parar com essa história de que uma pessoa é de um jeito no trabalho e de outro na vida “pessoal”. É tudo vida pessoal, ou você é legal ou é filha da puta ou está no meio termo, como acontece com quase todo mundo. O senhor M. odeia o casamento. Quando não está fofocando sobre o trabalho, reclama da esposa. Cada instante passado com a esposa é descrito com enorme infelicidade. O senhor M. morre de medo de se separar. Fica desesperado quando aparece algum indício de que a esposa pode deixa-lo. O senhor M é extremamente infeliz e faz o possível para manter a infelicidade. Tem um emprego que odeia para poder comprar coisas que não precisa e parcelar uma viagem anual. A engrenagem tem que continuar funcionando. Talvez o senhor M só continue assim porque sabe que muita gente vai encher o saco se ele resolver sair do ciclo. Um belo dia olhei em minha volta e só vi Senhores Ms. Hora de fazer algo a respeito.
Na nossa sociedade precisamos culpar os outros pelas nossas infelicidades. Quase sempre é assim. A última eleição presidencial se resolveu desta forma, afinal. Criou-se um bode expiatório responsável por todos os problemas do mundo. As críticas a este bode raramente apresentavam dados, o que havia era uma série de paranoias fantasiosas que ajudaram a levar um deputado insignificante e imbecil à presidência, num processo coordenado por um juiz jeca com fortes tendências autoritárias. Vai dar merda, mas no fundo quem votou nele só quer ver as outras pessoas sentindo as mesmas frustrações que sente no dia a dia. Quem votou no deputado insignificante não o fez por algo bom que ele possa fazer, mas sim porque quer ver outras pessoas se foderem. O senhor M odeia qualquer pessoa que tente sair do ciclo de infelicidade. Os senhores Ms escolheram o atual presidente. Somos um país de senhores Ms.
Aos 34 anos resolvi tentar transformar algo que gosto em profissão. Estou dando aulas de idiomas. Para conseguir um emprego, estou quase fazendo algo que havia prometido nunca fazer, abrir uma firma. Tornar-me uma empresa. A grande sacada de quem inventou essa baboseira de pessoas virarem PJ é que ela faz com que o trabalhador se sinta falsamente igualado àquele que o contrata. Deixa de ser uma relação patrão-trabalhador para se tornar uma relação empresa-empresa, em que ilusoriamente não há a ideia de ilusão. Este processo foi fundamental para que a sociedade enxergasse os direitos trabalhistas como supérfluos. Eu vou emitir nota e contratar um contador. É um completo absurdo que uma pessoa tenha que fazer isto. A sociedade nos engole, eu disse num texto passado. Sinto isto abrindo a firma e falando meu CPF. Mas resolvi ao menos ficar engasgado. Nunca me tornarei um senhor M.

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