Eu realmente não aguento mais
dizer o número do meu CPF. Não sei qual foi a última vez que passei um
intervalo de três dias sem dizer a sequência de onze dígitos que basicamente
define quem eu sou. A impressão paranoica que tenho é que existe algum
supercomputador central em algum lugar em que todas as minhas informações estão
registradas a partir deste número. Todos os meus inúmeros cadastros, senhas,
compras, visitas, tudo. Durante uma semana resolvi tentar contar o número de
vezes em que falava o meu CPF para comparar o número de vezes em que falava o
meu nome. Bom, esqueci que estava fazendo isto no segundo dia. É difícil se
concentrar numa missão besta como estas afinal. Mas sim, eu falo muito mais
vezes o número 316 do que o meu nome.
Por um momento em minha vida eu
era do tipo que falava o número do CPF para qualquer compra que fizesse. A nota
fiscal paulista, com sua devolução de um centavo para uma compra de, sei lá, duzentos
reais tocava fundo no coração de um jovem recém-formado em economia metido a
sábio poupador. Ganhei também três sorteios no valor de dez reais nos últimos
dez anos, o que quer dizer que falar o meu CPF em todas as compras que fazia me
rendeu trinta reais.
Por algum motivo enjoei e parei
de falar. A impressão que tenho é que isto aconteceu com muita gente, porque
neste momento os supermercados começaram a criar descontos para quem tivesse
cadastro. Faço parte do clube extra, sou cliente mais Carrefour e sei lá mais
de onde e voltei a falar o meu CPF cada vez que comprava uma bolacha, cujo
preço é uns trinta centavos mais barato se eu tiver a paciência de dizer os
onze dígitos.
Nenhum estabelecimento é mais bem-sucedido
na tarefa de me obrigar a dizer o número do CPF do que uma farmácia. Por
motivos familiares, eu frequento este ambiente mais de uma vez por semana e a
primeira coisa que perguntam, antes mesmo de saber o que eu quero, é se eu
tenho cadastro e qual meu CPF. O atendente em seguida pega o remédio e me fala
sempre de algum valor por algum valor. Ele sempre quer deixar bem claro o
quanto economizei por me identificar com um número de onze dígitos. Como minha
mãe tem convênio de saúde, este é o momento em que digo que quero passar a
compra no CPF dela, que dá mais desconto. Ótimo, diz o atendente enquanto me
ouve falar um novo código, dessa vez começado com 201. Saio para o caixa, que
digita o número do CPF da minha mãe, registra o desconto e pergunto se quero
manter este CPF na compra final. Digo que não, que ela deve ser registrada no
meu CPF, para que eu ganhe “pontos” que em uma década podem me render um
desodorante ou uma pasta de dente. Por que alguém se interessa tanto em registrar
as porcarias que compro? Não sei, mas dizem que este tipo de informação dá
algum poder. Para tudo que faço na internet tenho que registrar meu CPF.
Lembro-me que no ano passado fui fazer a declaração de óbito de uma pessoa e,
ao chegar em casa, começaram a pintar na tela do meu computador propagandas de
advogados que cuidam de herança e de funerárias. O “supercomputador central”
sabe o que o sr. 316 precisa.
A grande decisão do meu ano de
2018 foi sem dúvidas pedir demissão. Eu nunca tinha feito isto na vida. Pessoas
enchem o saco quando você faz isto. Estamos em crise e você nunca mais vai
arrumar um emprego na vida diziam uns. Foda-se que você está infeliz no tal
emprego, alguém deposita um dinheiro na sua conta todo fim do mês, então está
tudo bem. A pessoa que mais me influenciou nesta decisão foi um ex-colega que
chamarei aqui de senhor M. O senhor M. odeia com todo vigor o trabalho que faz
e a empresa em que trabalha. O senhor M. morre de medo de ser mandado embora e
sempre chora e passa o dia fofocando quando cortes aparecem. O senhor M. leva
este comportamento profissional para todas as áreas da vida. Uma coisa
importante, aliás, é que as pessoas têm que parar com essa história de que uma
pessoa é de um jeito no trabalho e de outro na vida “pessoal”. É tudo vida
pessoal, ou você é legal ou é filha da puta ou está no meio termo, como acontece
com quase todo mundo. O senhor M. odeia o casamento. Quando não está fofocando
sobre o trabalho, reclama da esposa. Cada instante passado com a esposa é descrito
com enorme infelicidade. O senhor M. morre de medo de se separar. Fica
desesperado quando aparece algum indício de que a esposa pode deixa-lo. O senhor
M é extremamente infeliz e faz o possível para manter a infelicidade. Tem um
emprego que odeia para poder comprar coisas que não precisa e parcelar uma
viagem anual. A engrenagem tem que continuar funcionando. Talvez o senhor M só
continue assim porque sabe que muita gente vai encher o saco se ele resolver
sair do ciclo. Um belo dia olhei em minha volta e só vi Senhores Ms. Hora de
fazer algo a respeito.
Na nossa sociedade precisamos
culpar os outros pelas nossas infelicidades. Quase sempre é assim. A última
eleição presidencial se resolveu desta forma, afinal. Criou-se um bode
expiatório responsável por todos os problemas do mundo. As críticas a este bode
raramente apresentavam dados, o que havia era uma série de paranoias
fantasiosas que ajudaram a levar um deputado insignificante e imbecil à presidência,
num processo coordenado por um juiz jeca com fortes tendências autoritárias. Vai
dar merda, mas no fundo quem votou nele só quer ver as outras pessoas sentindo
as mesmas frustrações que sente no dia a dia. Quem votou no deputado
insignificante não o fez por algo bom que ele possa fazer, mas sim porque quer
ver outras pessoas se foderem. O senhor M odeia qualquer pessoa que tente sair
do ciclo de infelicidade. Os senhores Ms escolheram o atual presidente. Somos
um país de senhores Ms.
Aos 34 anos resolvi tentar
transformar algo que gosto em profissão. Estou dando aulas de idiomas. Para
conseguir um emprego, estou quase fazendo algo que havia prometido nunca fazer,
abrir uma firma. Tornar-me uma empresa. A grande sacada de quem inventou essa
baboseira de pessoas virarem PJ é que ela faz com que o trabalhador se sinta
falsamente igualado àquele que o contrata. Deixa de ser uma relação
patrão-trabalhador para se tornar uma relação empresa-empresa, em que
ilusoriamente não há a ideia de ilusão. Este processo foi fundamental para que
a sociedade enxergasse os direitos trabalhistas como supérfluos. Eu vou emitir
nota e contratar um contador. É um completo absurdo que uma pessoa tenha que
fazer isto. A sociedade nos engole, eu disse num texto passado. Sinto isto
abrindo a firma e falando meu CPF. Mas resolvi ao menos ficar engasgado. Nunca
me tornarei um senhor M.
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